Contra todas as evidências
O teatro nos palcos de hoje em Portugal
Na rarefacção do tecido teatral – que, infelizmente, se vai verificando entre nós – não deixa de ser uma boa notícia ver que ainda é possível encontrar alguns títulos cativantes em cartaz, profissionais competentes e criativos, bem como algumas notícias sobre o teatro que por cá se vai mostrando nas salas que ainda estão operativas, apesar de não ser já tão fácil encontrar – nos meios de comunicação mais generalizados – críticas ou notícias regulares sobre o teatro que se oferece ao público nas grandes cidades.
Faltam, é certo, cartazes vistosos, notícias publicadas em letra gorda, uma maior cobertura jornalística (desejavelmente também radiofónica e televisiva) do que vai sendo levado à cena, mas a verdade é que o espectador interessado tem ainda à sua disposição uma lista razoável de opções artísticas, sobretudo se olharmos para os teatros em Lisboa e Porto, para lá de outros importantes destaques como é o caso de Almada, uma das cidades portuguesas que mais sobressai na importância que confere às artes de palco, seja em tempo do seu – anual e marcante – Festival de Teatro em Julho, seja em cartaz ao longo de todo o ano, sobretudo na grande sala que, com a maior justiça, tem o nome do seu dinamizador – Joaquim Benite -, revelando ainda uma notável abertura à apresentação de companhias e encenadores tanto nacionais como estrangeiros e a quem propõe, em alguns casos, uma caminhada conjunta, para lá de situações pontuais de convergências artísticas.
É possível, contudo, registar a continuidade de várias companhias que “nasceram” nos anos sessenta (do século passado) e que foram designadas como “teatro independente”, fundamentalmente, por não se integrarem no então “ teatro comercial”. Mas já foi diminuída a sua presença recentemente com o fim do Teatro da Cornucópia que deu por terminado o seu brilhante historial quando o encenador e actor Luís Miguel Cintra, por razões de saúde, declarou o fim da sua carreira em cena e, por isso também, a impossibilidade de prosseguir a sua actividade enquanto colectivo estando tão fortemente diminuído (em 2015). Outras companhias – ainda a operar – vão espaçando as estreias e muitas vezes limitam os seus espectáculos a uma curta carreira em cartaz, que poderá por vezes deslocar-se a outra cidade, embora essas digressões se tenham tornado menos frequentes, a não ser que venham a apresentar-se num Festival importante, como tem sido o Festival de Almada, entre outros menos abrangentes, mas que são sempre uma riqueza maior para públicos mais dispersos. É o caso, por exemplo, do FITEI (Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica) no Porto, que este ano completou 40 anos, o Altitudes, na Serra de Montemuro, o CITEMOR, em Montemor-o-Velho, a Bienal Internacional de Marionetes (BIME) em Évora, o Festival Internacional de Teatro de Setúbal, entre alguns outros que poderíamos ainda referir.
Uma curiosa situação para distinguir novos dramaturgos (em Portugal) vem ocorrendo numa interessante convergência entre o teatro que João Lourenço dirige – o Teatro Aberto – e a SPA (Sociedade Portuguesa de Autores) que se iniciou em 1997: “O grande prémio de teatro português”. Nesse contexto, em Março passado essa sinergia resultou na encenação – por Levi Martins e Maria Mascarenhas – de Tentativas para matar o amor, de Marta Figueiredo. É, sem dúvida alguma, bem-vinda esta sinergia que em muito favorece a escrita e a encenação de novos textos para o palco.
A Comuna, criada em 1972, saíra do Teatro Laboratório de Lisboa, iniciando a sua carreira com uma dramaturgia própria – Para onde is? – a partir de peças de Gil Vicente e prosseguindo o seu historial com uma forma de teatro que, de algum modo, se aproximava do teatro de Peter Brook (com quem João Mota se iniciara nas artes cénicas): uma cena despojada, um trabalho muito físico com os actores, a recusa do palco elevado, preferindo antes a colocação dos actores num mesmo plano que os espectadores, que se reuniriam à sua volta.
São ainda de registar as companhias que, fora de Lisboa e Porto (aqui sobretudo o TEP – Teatro Experimental do Porto e a Seiva Trupe), vão mantendo “a chama acesa” do teatro com espectáculos de qualidade. Há ainda o caso de Braga (o Tear), Caldas da Rainha (Teatro da Rainha), Évora (CENDREV), bem como os que prosseguem o seu trabalho cénico em Santarém, Faro, entre várias outras – que vão, felizmente, mantendo uma presença constante nestas cidades longe dos dois grandes centros urbanos, tendo algumas delas, felizmente, algum apoio municipal. É uma forma também de marcar a consistência cultural e artística dessas cidades, permitindo não apenas a representação de espectáculos, mas também o gosto que se estende a todas as artes que participam da criação teatral: da cenografia à música, da figuração humana ao diálogo, da coreografia à partitura das vozes dos actores, da literatura dramática à sua expressividade acústica. E, claro, a formação de espectadores, a par de possíveis “conquistas” de novos públicos e talvez mesmo a possibilidade de despertarem potencialidades criativas entre alguns desses espectadores.
Uma rápida anotação – do que se mostrou recentemente nos palcos da zona da grande Lisboa – revela algumas criações de qualidade. Foi o caso de Jardim zoológico de vidro (sobre texto de Tennessee Williams), pelos Artistas Unidos, encenado por Jorge Silva Melo no Teatro da Politécnica, ao Rato. Trata-se de uma sala recuperada para o teatro, partilhando o jardim do que foi a antiga Faculdade de Ciências de Lisboa. Para lá dos espectáculos que levam à cena, vêm publicando – em português – muitos dos textos para teatro que foram representando – ou tão só editando – na curiosa e atraente colecção Livrinhos de Teatro, de tamanho pequeno e grafia bem legível, e que já ultrapassou as várias dezenas de volumes. Destacaria também o brilhante texto de Jorge Silva Melo – António, um rapaz de Lisboa – que não só se apresentou em palco no Teatro Nacional (em 1997), como resultou ainda num filme em 2000: em ambos os casos com realizações artísticas de grande qualidade.
Relativamente a outras companhias que integram os chamados “teatros independentes” – lembramos algumas das que têm uma carreira mais longa como é o caso a Comuna – desde 1972 – que João Mota criou e que ainda dirige, apresentando os seus espectáculos num edifício da Praça de Espanha, onde funcionara em tempos o Colégio Alemão. Outra importante companhia, a Barraca, formada em 1976 em torno de Maria do Céu Guerra e Helder Costa, bem como do cenógrafo Mário Alberto, teve durante alguns anos a importante colaboração artística do excepcional criador cénico brasileiro que é Augusto Boal. Actualmente apresenta os seus espectáculos numa antiga sala de cinema – o Cinearte – no Largo de Santos em Lisboa, e tem aí de momento em cena um espectáculo extraordinário em torno de Mariana Pineda, de Garcia Lorca, encenado por Maria do Céu Guerra e com um conjunto artístico de grande valor, de que se destaca a actriz Rita Lello no papel principal e uma emotiva participação musical de José Pato. É, sem dúvida alguma, um espectáculo que ficará bem gravado na memória de quem o veja.
Entre outras companhias de mais longa história conta-se ainda o Teatro Experimental de Cascais (TEC), que Carlos Avilez dirige, e que tem mantido uma intervenção artística destacada na cidade, movimentando não apenas elencos relativamente numerosos e cativando os espectadores da “linha de Cascais”, mas atraindo também públicos de Lisboa e de outras proveniências: sempre com um grande cuidado cénico, uma ideia de conjunto bem integrado e dirigido com mestria, aberto quase sempre à experiência emotiva. Para os mais pequenos, podemos ver de momento no seu Teatro – o Mirita Casimiro, no Monte Estoril – um Peter Pan numa versão de Miguel Graça, encenada por Carlos Avilez. É uma interessante produção do Teatro Experimental de Cascais e que tem em cena o conhecido actor Ruy de Carvalho.
O encenador José Peixoto vai criando nos Recreios da Amadora com a sua companhia – os Aloés – bons espectáculos, muitas vezes dirigidos a públicos escolares, como é o mais recente: O cavaleiro da Dinamarca, sobre texto de Sofia de Mello Breyner Andresen. Encontramos um outro pólo criativo perto da capital, mas noutra direcção: trata-se do Teatro Armando Cortez que, na Estrada da Pontinha, aos sábados e domingos, apresenta o Soldadinho de chumbo, com texto – bem clássico já – de Hans Christian Andersen, mas que é aqui mostrado em forma de um musical que junta a fantasia a um registo de comicidade.
Um outro criador imaginativo, que procurou um lugar mais consentâneo com a sua abertura a uma arte de periferias, é João Brites que, tendo começado por eleger os espectadores mais novos quando fundou o Bando, veio a desenvolver uma arte do teatro que cruza não só diferentes idades e gostos, mas que também visou criar um espaço de convivência único – em Palmela, Vale de Barris – que, por si só, é um enquadramento criativo e de apelo à partilha: de gosto, emoções e até de convivência fraternal.
Uma questão interessante é a nova “face” com que o Teatro Nacional D. Maria II se apresenta com a nova direcção, de Tiago Rodrigues, mantendo uma dinâmica especial que ultrapassa em muito o que poderia ser um “teatro regular”.
Experimentalismo, política e utopia
Saiu recentemente um excelente livro, coordenado por Rui Pina Coelho – numa edição conjunta do Teatro Nacional D. Maria II e da editora Bichodomato – que tem por título sugestivo e justo – Teatro Português Contemporâneo: Experimentalismo, Política e Utopia [Título Provisório], datado de 2017. E é assim que, apesar de alguma rarefacção da notícia e da crítica jornalística, podemos “descobrir” alguns dos mais interessantes projectos teatrais do momento, em grande parte optando pelo “experimentalismo, política e utopia” como destaca o seu [título provisório].
Para melhor revelar esse novo patamar, o livro começa por lembrar as transformações maiores que foram sendo implementadas desde o início do século passado (o séc. XX) a que procede o organizador da publicação ao examinar o “Experimentalismo, política e Utopia” na abertura a esta publicação.
São vários os colaboradores que, ao longo das suas quase 200 páginas, procedem à caracterização de várias companhias que se colocam claramente num procedimento artístico que desafia o lugar-comum. Os experimentalismos são de diversificada progénie, mas para cada um apontam-se traços marcantes, como são os casos de “poéticas do desassossego”, “espaços de transdisciplinaridade”, “lazer, trabalho e afectos”, entre várias outras formulações, assim cobrindo muitos dos mais jovens grupos de teatro que percorrem esses territórios criativos. É o caso do Circolando, Comédias do Minho, As Boas Raparigas, Karnart, Visões Úteis, Teatro do Vestido, Teatro do Eléctrico, entre outros.
É, sem dúvida alguma, a melhor, e a mais abrangente e cuidada investigação sobre alguns dos mais interessantes novos grupos de teatro em Portugal, contando com investigadores competentes – e com uma excepcional capacidade crítica que Rui Pina Coelho soube coordenar – e que revelam a importância decisiva do Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa para a investigação, o estudo, e a avaliação do que se mostra em teatro no nosso país.
Pena é que a base de dados sobre o Teatro em Portugal, a CETbase – http://ww3.fl.ul.pt/CETbase/ – que o Centro vem, laboriosamente “alimentando” ao longo dos anos e que é de consulta pública aberta – esteja de momento inoperante: não falta o esforço, o saber e a vontade dos investigadores que têm vindo a “enriquecer” esse fundamental instrumento de pesquisa sobre o teatro em Portugal, registando não apenas tudo o que diz respeito aos espectáculos, autores, teatros, companhias, actores, encenadores, músicos, mas até – quando se conhece – incluindo os apoios financeiros e institucionais que são muitas vezes escassos e manifestamente insuficientes.
E essa insuficiência reflecte-se também neste projecto da CETbase por não ser possível manter investigadores para a pesquisa e introdução de dados dos espectáculos que subiram ao palco em Portugal: não apenas os de hoje, mas também os do passado, nem sempre estudados com rigor – mas que foram “alimentando” a cultura e as artes entre nós. Devemos preservar esse testemunho também com as novas tecnologias até para recordar os que ao longo dos séculos foram criando e desenvolvendo entre nós as artes do palco.
Maria Helena Serôdio
Professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa