João Botelho, que considera ser a literatura mais poderosa que o cinema, tem vindo a realizar filmes do maior rigor e qualidade, adaptando ao cinema grandes textos de autores portugueses. Conservando a escrita genuína dos textos, o realizador procura dar a conhecer junto do grande público a riqueza das diferentes culturas da língua portuguesa.
As suas adaptações anteriores de o Livro do Desassossego e de Os Maias são a prova de quanto o autor se interessa em divulgar obras de relevo que constituem o nosso património cultural.
Desta vez a sua escolha caiu sobre um clássico do século XVI, a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto.
Não foi fácil para o cineasta adaptar um livro de mil páginas, recheado de peripécias e episódios múltiplos, a um guião de cinema que, mesmo assim, se condensou em 110 páginas.
Fernão Mendes Pinto, à procura de melhor sorte, partiu de Lisboa em 1537 em direcção a terras do Oriente e conta-nos na sua obra as aventuras que viveu como marinheiro, soldado, escravo, pirata “13 vezes cativo e 17 vendido”, durante os 21 anos da sua longa viagem.
Percorreu a China, o Japão, a Índia, a Etiópia, a Arábia. Enfrentou sozinho dificuldades extremas, sofreu os maiores infortúnios e conseguiu sobreviver a tudo isso.
Viajar para o desconhecido é ir ao encontro do outro, contactar com culturas diferentes e aprender, mas ao deslumbramento e à admiração que possa causar algo novo pode juntar-se também o sofrimento e a crueldade.
Memórias, relatos fantasiosos, inspirados em obras lidas, realidades duramente sentidas, tudo se conjuga no texto do narrador, que descreve com minúcia o que encontra nas terras longínquas do Oriente. O aventureiro pode descrever uma China, exageradamente idealizada, para pôr em confronto uma civilização urbana e tolerante com o procedimento dos portugueses, seus companheiros, capazes de praticarem as maiores atrocidades, movidos pela ganância do ouro e do poder.
As críticas que coloca na fala de muitas personagens orientais mostram uma visão da gente lusa bem diferente da que era enaltecida na epopeia de heróis empenhados na expansão da fé cristã pelo Oriente. Por não agradarem certamente estas críticas aos poderosos do Reino, a obra de Fernão Mendes Pinto foi completamente ignorada. Ver-se incompreendido pelos seus contemporâneos, que rejeitavam a Peregrinação foi um sentimento doloroso que acompanhou a segunda fase da sua vida, confinada à tranquilidade de uma quinta em Almada, tão diferente da movimentação anterior.
A Peregrinação só foi publicada em 1614, 30 anos após a sua morte. Rapidamente difundida pelo seu interesse e valor artístico o livro tornou-se numa das obras mais importantes da Literatura Mundial de Viagens.
Na adaptação da narrativa a filme, o cineasta aproveitou a primeira parte da obra e depois foi construindo diversos quadros, com hiatos, mas sempre numa sequência que nos faz compreender as peripécias do relato.
João Botelho tem a preocupação de manter o espírito crítico do autor. Resolve alguns problemas substituindo os inúmeros intérpretes da narrativa num só, um malaio que conhece todas as línguas. Relativamente à outra personagem que se evidencia, a de chefe militar, o corsário António Faria, servindo-se duma ideia de Aquilino Ribeiro que considera António Faria e Fernão a mesma pessoa, assim faz também, já que é o mesmo rosto de Cláudio da Silva que representa as duas figuras.
Toda esta produção é orquestrada por uma música surpreendente que, sendo inspirada em algumas das canções do disco de Fausto, Por este rio acima, se transforma numa polifonia do melhor efeito, com coros harmoniosos que cantam a felicidade e a desgraça e que pontuam o desenrolar da acção à semelhança dos coros das tragédias gregas.
Na interpretação distingue-se Cláudio da Silva na personagem de Fernão Mendes Pinto, numa composição difícil, de grande exigência, pois a personagem pode mudar num instante de registo passando da bondade à violência. Como timoneiro desta aventura, o actor não vacila, seguindo a rota do seu destino.
A Peregrinação é uma história fabulosa, intemporal à qual João Botelho dá a maior visualidade mantendo-se fiel às palavras do texto.
É de assinalar ainda o objectivo pedagógico que o cineasta atribui à sua produção. Para além do circuito normal da exibição, os filmes são levados às escolas para despertar nos jovens o interesse pela leitura das obras. Após essa itinerância de Os Mais, quadruplicaram as vendas do livro.
O que João Botelho pretende com os seus filmes é despertar o interesse do espectador pela leitura das obras que o inspiraram. Segundo ele é necessário que os portugueses leiam mais. Só assim poderão usufruir de toda a riqueza que encerra a nossa língua materna, praticando-a com regularidade.