Os avanços do fascismo como sistema natural do neoliberalismo
A realidade está latente nos nossos quotidianos, mais sentida por uns do que outros, consoante a situação social e ou a localização geográfica, mas deixou de ser uma simples advertência: a sociedade dos nossos dias está a organizar-se gradualmente segundo parâmetros fascistas, alguns com renovadas expressões e exteriorizações, outros restaurando comportamentos nazi-fascistas puros e duros.
Como é possível que isto esteja a acontecer apenas setenta anos depois da maior hecatombe mundial? Ou não será esta leitura da realidade um exagero resultante de uma sobrevalorização de fenómenos talvez apenas conjunturais?
Duas perguntas ainda sem respostas, porque olhar o mundo não é um exercício de adivinhação, tão pouco de futurologia, embora sejam detectáveis dados objectivos que expõem razões para temer os cenários mais inquietantes. A única das quais, ao contrário do que possa supor quem se deixa conduzir pela comunicação social oficiosa e monolítica, não é o ping-pong de terror que se joga entre os Estados Unidos da América e a Coreia do Norte.
Na procura de explicações para as razões ameaçadores, que são muitas e diversificadas, façamos uma incursão até ao início da década de oitenta do século passado.
Foi a partir daí que a política se submeteu, sem reservas, aos interesses da economia e das finanças; isto é, que a vida dos cidadãos se tornou refém do mundo dos negócios e, de maneira cada vez mais indisfarçada, das teias insaciáveis da especulação financeira. A este processo chamaram, recatadamente, mas com suporte em dogmas fundamentalistas, o respeito pela “liberdade do mercado”.
Nos Estados Unidos da América e no Reino Unido pontificavam então dois gémeos ideológicos: o presidente Ronald Reagan e a primeira-ministra Margaret Thatcher. Durante os seus consulados instaurou-se em termos legislativos, policiais e militares, um combate cerrado contra direitos sociais e laborais que custaram milhares de vidas humanas e dezenas de anos a conquistar. Essa autêntica guerra, que ainda não acabou, trava-se em múltiplas frentes: contra o Estado como suposto garante dos interesses sociais e humanos da generalidade dos cidadãos; contra a posse de estruturas empresariais e sociais pelo Estado; pela privatização por inteiro das estruturas do “Estado social”, incluindo a segurança social, transformadas em fontes de lucros para os tentaculares grupos privados transnacionais, à custa da marginalização e da discriminação dos cidadãos.
Em breve, a “liberdade de mercado”, transformada numa doutrina política fundamentalista, inquisitorial em termos de comunicação, abalou as liberdades e os direitos humanos – por isso cada vez mais invocados e menos respeitados; instaurou a maldição do Estado, inimigo público empenhado em travar a modernização social, a livre e leal concorrência, a criatividade e a livre iniciativa; em breve, em suma, a massa monetária em circulação no mundo passou a ser formada por uma parcela minoritária correspondente a bens reais produzidos pelo trabalho; e por uma parcela maioritária e incontrolável, resultante da especulação financeira. Isto é, a maior parte do valor do dinheiro em circulação planetária tornou-se volátil, virtual.
A tudo isto chamaram “a revolução conservadora”. E as correntes de pensamento que denunciaram e combatem as transformações nela contempladas foram qualificadas como reaccionárias, conservadoras, arcaicas, incapazes de se adaptar aos novos tempos. De acordo com a mentalidade dogmática e inquisitorial do regime resultante de tal “revolução”, foram postuladas como contra-revolucionárias e imobilistas quaisquer análises que pusessem a nu a delapidação e transferência dos países do antigo bloco de influência soviética directamente da economia planificada para o sistema da “liberdade de mercado”, sem terem chegado a provar o sabor da democracia; ou a sua integração na NATO e na União Europeia logo que foram extintos o Tratado de Varsóvia e o Conselho de Ajuda Mútua Económica (CAME ou Comecom), hipotecando num ápice a sua suposta “independência”.
De Pinochet ao euro
Ronald Reagan e Margaret Thatcher nunca esconderam a sua admiração pelo “milagre económico” alcançado no Chile sob o terror fascista do ditador Augusto Pinochet e executado pelos agentes neoliberais de Chicago, os “Chicago Boys”; os quais beneficiaram da submissão sangrenta a que os chilenos foram condenados para aplicarem a primeira experiência moderna de mercado absolutamente “livre”, a partir de 1973.
Tirando proveito da imobilidade social – a estabilidade social por excelência – garantida pelo regime fascista, instaurado por acção directa dos Estados Unidos, os “Chicago Boys” montaram um laboratório neoliberal, testando em cobaias humanas as experiências que se transformaram, ao longo de mais de quatro décadas, nas realidades socialmente retrógradas com as quais convivemos hoje na União Europeia, entretanto formatada, tal como a moeda única, segundo as guias doutrinárias do neoliberalismo como regime que interpreta a essência do “mercado livre”.
Entre as experiências realizadas no Chile, implicando o sacrifício da vida de milhares de seres humanos, avultam a redução drástica das liberdades e direitos sindicais; a precariedade laboral; a “flexibilização” do mercado de trabalho ao sabor das vontades e interesses do patronato mais poderoso; o desrespeito por horários e condições de trabalho; os despedimentos arbitrários; as privatizações de bens públicos, incluindo os estratégicos, lesivas para os Estados e os cidadãos; a privatização da segurança social ou a adopção de modalidades equivalentes; a vulgarização de formas de trabalho temporário; a repressão de direitos laborais como a greve, a contratação, o funcionamento das estruturas representativas dos trabalhadores nas empresas; enfim, as reformas estruturais nos aparelhos de Estado, transformando-os em correias de transmissão dos grandes interesses económicos e financeiros privados, no limite a privatização dos próprios Estados.
Na Europa, estas realidades aceleraram-se com a transformação da Comunidade Europeia em União Europeia, construída esta de acordo com a cartilha dogmática neoliberal, absorvendo a maior parte dos países que faziam parte do antigo bloco de influência soviética e também nações emergentes da antiga Jugoslávia, destruída a golpes de guerra pela NATO – ficando outros territórios da região como protectorados comunitários e do atlantismo.
A imposição do euro como moeda única na maioria dos Estados da União, estendendo até eles os mecanismos monetários alemães, e a transferência de instrumentos estratégicos de soberania para Bruxelas, no âmbito de um enquadramento federalista em desenvolvimento, embora não assumido, reforçaram o cenário de submissão crescente dos povos europeus a uma imobilidade social que remete para o quadro experimentado no Chile fascista de Pinochet e aplicado por Reagan e Thatcher em sistemas formalmente democráticos.
A degradação da democracia
A submissão da política aos interesses económicos e financeiros, à custa dos direitos dos cidadãos, limitou a plenitude da expressão democrática.
A imposição do neoliberalismo como regime de sustentação de um conceito de “mercado livre” que revoga liberdades humanas foi, por isso, acompanhada pela instauração de restrições em termos de opções ideológicas, liberdade política, liberdade de opinião, direitos de expressão e manifestação. Embora o quadro político permaneça formalmente assente nas liberdades fundamentais, a resultante prática não lhe corresponde.
Ao compasso de graves incidências internacionais como os atentados de 11 de Setembro de 2001 e outras expressões do ambivalente fenómeno terrorista, das guerras provocadas no Médio Oriente e Eurásia e das crises económicas e financeiras associadas à ganância e especulação, os Estados mais influentes no plano mundial foram derivando para caminhos autoritários. Ao reforço das espionagens nacional e global, das medidas securitárias limitadoras da privacidade, das restrições impostas à vida em sociedade e à multiplicação de situações de excepção, algumas das quais transferidas para a lei comum, como em França, somaram-se os condicionalismos impostos aos cidadãos para generalizar a austeridade social – única medida adoptada para combater supostas crises. E que teve como objectivo fundamental obrigar a comunidade e os cidadãos a ressarcir os verdadeiros responsáveis pelos desmandos e desvarios que provocaram essas crises.
Os condicionalismos ideológicos, não assumidos mas reais porque discriminam por diversas vias – entre elas as limitações de expressão e de intervenção política plena – as correntes que não se identificam com o neoliberalismo, degradaram a democracia. Nas democracias representativas deixou de haver alternativa política real, passando a existir apenas alternância ou colaboração entre entidades sintonizadas com os dogmas do “mercado livre”, mesmo que usando discursos sociais diferentes. Em regra, o regime neoliberal passou a ser interpretado por partidos conservadores ou de extrema-direita, por um lado, e socialistas ou social-democratas reciclados segundo a “terceira via” – o thatcherismo na versão de Tony Blair – por outro. No fundo, uma abordagem social não coincidente para uma prática política única em termos de economia e finanças. Duas facetas para uma resultante política idêntica, uma espécie de partido neoliberal único. Ou, segundo conhecidas versões propagandísticas, o “arco da governação” como universo dos políticos e organizações com “direito a governar”.
O formato político enraizado nos Estados Unidos da América como mecanismo de gestão tecnocrata dos interesses nacionais e internacionais do complexo militar, industrial e tecnológico foi assim exportado e internacionalizado como sistema de governo do neoliberalismo global, generalizado pelo dinamismo avassalador das tecnologias de comunicação.
E os fascismos avançam
A degeneração da democracia, porém, não dá sinais de estabilizar, na medida em que o neoliberalismo prossegue a saga por caminhos que sirvam para aplacar a sua permanente insatisfação com as resistências remanescentes ao nível da organização social e da relação de forças internacional, e também com a persistência de obstáculos susceptíveis de perturbar o acesso aos proveitos plenos de uma ganância afinal sem limites.
Atentem-se nas ocorrências específicas e nas transformações registadas na última década ao nível mundial. Por exemplo, a crise financeira que explodiu em 2008/2009; o modo como as entidades da agiotagem internacional exploraram e exploram as supostas crises das dívidas soberanas para reforçarem os condicionalismos políticos e sociais; a intensificação do aparelho militar agressivo no Leste da Europa a pretexto da suposta “ameaça russa”; a multiplicação de guerras no Médio Oriente para garantirem o domínio das principais fontes regionais de petróleo e gás natural por três países – Estados Unidos, Israel e Arábia Saudita; as operações desestabilizadoras fascizantes contra o Brasil e, sobretudo, contra a Venezuela, o país que possui as maiores reservas mundiais de petróleo; os dividendos securitários, nocivos para a democracia e as liberdades individuais, extraídos do sempre mal explicado fenómeno do terrorismo dito “islâmico”; a maneira como são empolados, a níveis muito próximos da confrontação com recurso a meios extremos, os velhos problemas na Península da Coreia e no Golfo Árabe-Pérsico; o tratamento cruel e os múltiplos aproveitamentos da tragédia dos refugiados, sobretudo na Europa, uma consequência perversa de guerras desestabilizadoras e de rapina impostas pelos Estados Unidos e as principais potências da União Europeia.
Ao cabo deste conjunto de episódios, todos eles permanecendo como problemas latentes e sem resposta satisfatória de uma comunidade internacional onde pontificam entidades à beira da credibilidade zero, como a ONU, o G7, o G20 ou quaisquer outros “G’s”, o cenário não poderia ser mais assustador.
No topo dos Estados Unidos e da NATO, o sistema de guerra mais poderoso e desestabilizador, está agora um presidente fascista emitindo frequentes e repetidos sinais de uma aterradora irresponsabilidade. Em coligação com ele, numa simultaneidade de mau prenúncio e potenciando uma convergência aterradora, está o sionismo fascista, aparentemente consolidado no governo e sempre acima da legalidade internacional, graças a uma teia universal de cumplicidades.
A União Europeia, ferida pelo Brexit, ainda titubeante entre as sequelas da crise e um crescimento anémico que a ninguém convence, embrenhou-se numa fuga para a frente e não assumida em busca do federalismo económico e militar, cada vez mais distante dos povos dos Estados membros, em relação à qual raramente são consultados e pouco ou nada se identificam.
Porém, é no interior e nas fronteiras da União Europeia, com total cumplicidade desta, que os fascismos vêm ascendendo aos governos nacionais, uns atrás dos outros; umas vezes directamente, outras alcançando presenças parlamentares determinantes, outras ainda, como acontece em França e na Holanda, através de executivos que aplicam os principais pontos da agenda neofascista, sob o pretexto de evitar a ascensão do fascismo.
Recentemente, a 16 de Dezembro, foi empossado na Áustria um governo de coligação entre os “conservadores” reciclados em partido xenófobo e anti-imigrantes e o “Partido da Liberdade”, nostálgico e seguidor de Adolf Hitler. Uma das primeiras medidas anunciadas pelo novo executivo foi a de transferir a embaixada austríaca de Telavive para Jerusalém, na peugada de Trump e para gáudio de Netanyahu, demonstrando que os fascismos se reconhecem sem hesitações. Seguidores de Hitler e simultaneamente admiradores de Israel? É a prova de que o fascismo e uma versão perversa de antissemitismo em funções em Israel, que segrega outros judeus além da generalidade dos povos semitas do Médio Oriente, se harmonizam perfeitamente; tal como as hordas de Hitler, em seu tempo, treinaram grupos terroristas sionistas para combater o mandato britânico na Palestina e cujos chefes vieram depois a ser primeiros-ministros de Israel.
Um dos aspectos sintomáticos do novo governo austríaco é o facto de coligar tendências ideologicamente neofascistas empenhadas na busca de respostas xenófobas, nacionalistas e populistas para aspectos específicos da realidade actual – as comunidades de imigrantes, os refugiados, os efeitos do terrorismo – com o fascismo revivalista, que recupera figuras criminosas e argumentos de há oitenta anos, através de um elaborado revisionismo histórico em desenvolvimento nos países do Leste da Europa.
O exemplo pioneiro da faceta saudosista é o resultado do golpe de 2014 na Ucrânia, desenvolvido pelos Estados Unidos e pela União Europeia, que culminou com a instauração não apenas de um governo mas também de um Estado fascista em Kiev. Mais de três anos depois, Bruxelas e mesmo dirigentes e eurodeputados que se dizem sensíveis à democracia e aos direitos humanos, continuam a ignorar a terrível realidade ucraniana, onde o criminoso hitleriano Stepan Bandera foi erguido a herói nacional, insistindo que tudo se passou de acordo com a absoluta necessidade de fazer vingar os princípios democráticos. No mesmo sentido, militares norte-americanos na reserva, mas com acordo da anterior e actual administrações de Washington, treinam as milícias de assalto nazis, entretanto integradas na Guarda Nacional, novo corpo repressivo criado pelo regime ucraniano.
É do conhecimento geral, e também de Bruxelas, o que se passa na Hungria, onde o executivo fascizante de Viktor Orban vai neutralizando, passo a passo, as capacidades de intervenção das oposições e os direitos básicos dos cidadãos. Enquanto isso, o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, trata Orban com palmadas afectuosas acompanhadas por ditos jocosos em que lhe chama “ditador”, correspondidos por sorrisos dos circunstantes, nesse caso chefes de governos da União.
O caso da Hungria remete-nos para o da Polónia, onde o actual governo autocrata progride na criação de um Estado fascista; e para os da Letónia e Estónia, governadas por nacionalismos saudosos dos tempos da ocupação hitleriana, que impõem segregações políticas e institucionais de comunidades como a russa, sem que esta modalidade de apartheid incomode a União Europeia – onde são cada vez mais os dirigentes oriundos dos regimes de Leste em posições de relevo.
De autocracia em autocracia pré-fascista passamos pela República Checa, Bulgária, Roménia e Croácia para nações onde forças fascistas continuam a ganhar posições – apesar de aparentes derrotas – com base em doutrinas xenófobas, populistas e ultranacionalistas, de que são exemplo a Grécia, a Holanda, a Comunidade Flamenga belga, o Reino Unido, sem esquecer a Espanha nas mãos do comprovadamente neofranquista Rajoy. E, naturalmente, a França e a Alemanha, que formam a chamada “locomotiva europeia”, onde Le Pen e a Alternativa para a Alemanha são afloramentos de correntes autoritárias, no limite fascistas, de que se desconhece ainda a pujança global.
Pelo que são muitos – demasiados – os sinais de que a democracia formal, mesmo deteriorada aos níveis em que se encontra na União Europeia, parece não ser já suficiente para a gestão do neoliberalismo. Pressente-se que o mercado necessita de mais para ser verdadeiramente “livre”, para se cumprir por inteiro. O que transforma num mito sem pés nem cabeça o argumento ideológico de que o neoliberalismo e o fascismo são incompatíveis. Como se atrás de Hitler não tivessem estado os grandes impérios económicos e financeiros, os mesmos e outros equivalentes – mas ainda muito mais poderosos – que hoje se alimentam das sociedades formatadas segundo os termos e as conveniências da anarquia capitalista estreada no Chile sob a protecção do criminoso fascista Augusto Pinochet.
Como é possível que isto esteja a acontecer apenas setenta anos depois da maior hecatombe mundial? Uma explicação parece plausível: a ganância capitalista é insaciável, principalmente agora que o sistema está em vias de atingir o estado supremo buscado desde a nascença: o da liberdade total dos jogos do dinheiro, o da anarquia absoluta do capital. Uma situação na qual os Estados, a democracia e os direitos humanos já não tenham condições para atrapalhar. Porém, só a instauração de uma escravocracia, garantida pelo fascismo, permitirá eliminar de vez os formalismos remanescentes. Muitos passos foram já dados nessa direcção; e abundam os sinais de que o processo continua em movimento.