Recordando a Revolta de Fevereiro de 1927 no Porto contra a Ditadura Militar
O golpe militar de 28 de Maio de 1926, que interrompeu o curso da I República, resultou da convergência oportunista de várias forças políticas e sociais e da conjugação de diversas conspirações que lavravam, todas com o objectivo de afastar do poder o Partido Republicano Português. A falhada revolta militar de 18 de Abril de 1925 constituiu um alerta alarmante. A derrota do movimento foi ensombrada pelo julgamento da Sala do Risco, num ambiente de inusitada compreensão para com os revoltosos, alvo de elogios que escandalizaram. Nesse afã de alijar do poder os herdeiros políticos de Afonso Costa participaram elementos ligados à Cruzada Nun’Álvares, ao Integralismo Lusitano, ao Partido Republicano Nacionalista, ao Partido Republicano Radical, à Acção Realista Portuguesa, à União Liberal Republicana, ao antigo Núcleo Republicano Reformador, alguns monárquicos constitucionais e membros do Centro Católico Português. A morte do general Alves Roçadas, putativo chefe do movimento, fez emergir o general Gomes da Costa e o capitão-de-fragata Filomeno da Câmara (chefe do comité revolucionário do Porto). Em Lisboa, o capitão-de-mar-e-guerra José Mendes Cabeçadas Júnior dirigia o respectivo comité revolucionário, integrando ainda o comandante Armando da Gama Ochôa e os capitães Jaime Baptista e Carlos Vilhena.
Apenas motivada pela aversão a um inimigo comum, a convergência que levou ao triunfo do golpe deu lugar à luta pelo poder entre os grupos vencedores, militares e civis, com o afastamento de Cabeçadas e depois de Gomes da Costa, assinalando o triunfo dos sectores mais reaccionários representados pelo general Carmona, mas com Sinel de Cordes na sombra. Esta luta fratrícida, protagonizada por aqueles que tanto criticaram a instabilidade política da República e prometiam o regresso rápido à normalidade constitucional depois de reposta a ordem e a tranquilidade, levou a que diversos republicanos conservadores se desligassem progressivamente da Ditadura, adoptando posições muito críticas em relação a medidas tomadas, como a interdição de agrupamentos políticos, a prisão e deportação de elementos considerados potencialmente perigosos e a instauração da censura. Muitos republicanos, uns ligados aos partidos republicanos tradicionais, outros inicialmente comprometidos com o 28 de Maio mas desiludidos, concluiram pela necessidade de intervir rapidamente através de uma revolução que derrubasse a Ditadura Militar e possibilitasse o regresso à normalidade constitucional. Este desiderato adivinhava-se difícil, dadas as divisões decorrentes de fidelidades partidárias e as hostilidades pessoais. Com muitas dificuldades de articulação, estruturou-se uma vasta rede conspirativa por todo o País, compreendendo elementos militares e civis, com o objectivo de repetir o que ocorrera em 14 de Maio de 1915, quando foi derrubado o governo dirigido pelo general Pimenta de Castro.
Vejamos de forma sintética como ocorreu a primeira dessas revoltas, em Fevereiro de 1927, no Porto.
Revolta por fases
Planeada para eclodir em várias regiões do País, a falta de coordenação e as dificuldades de comunicações provocaram não um movimento simultâneo que poderia ter posto em cheque a Ditadura, mas uma revolta por fases que lhe retirou eficácia. A sublevação começou no dia 3 de Fevereiro de 1927, no Porto, com a saída do Regimento de Caçadores n.º 9, a que se reuniu o Regimento de Cavalaria n.º 6, vindo de Penafiel. A essas forças juntaram-se um grupo de militares provenientes de outros regimentos da cidade, uma companhia da Guarda Nacional Republicana, aquartelada na Bela Vista e, no dia seguinte, elementos do Regimento de Artilharia de Amarante. Como comandante supremo do movimento surgia o general Sousa Dias, que fora exonerado do comando da 3.ª Divisão após o 28 de Maio, coadjuvado pelo coronel Fernando Freiria, pelo capitão Nuno Cruz, que virá a morrer anos depois no exílio madrileno, e pelo oficial médico da Armada, Jaime de Morais, que assinou uma mensagem dirigida ao Governo em Lisboa, exigindo o restabelecimento da legalidade constitucional. Dos civis com um papel relevante destacamos o antigo chefe de governo e dirigente da Esquerda Democrática José Domingos dos Santos, Jaime Cortesão, membro destacado da Seara Nova, antigo deputado e capitão-médico do Corpo Expedicionário Português, que foi nomeado Governador Civil do Porto. Outro seareiro com papel cimento na revolta foi Raúl Proença, que ali se bateu de armas na mão. Os revoltosos ocuparam o Quartel-General, o Governo Civil e os Correios, capturaram o general Ernesto Sampaio, comandante da Região Militar, o governador civil do Porto e outras autoridades militares e civis. Ainda receberam novos reforços dispersos provenientes de Penafiel, Póvoa do Varzim, Famalicão, Guimarães, Valença, Vila Real, Régua e Lamego. De Amarante chegou alguma artilharia que foi colocada nas imediações de Monte Pedral. Simultaneamente ocorreram movimentos rebeldes em Viana do Castelo e Figueira da Foz, embora sem grande expressão.
No Porto, os revoltosos ocuparam o centro da cidade, a Praça da Batalha e ruas contíguas, apoiados no rio Douro, no Cemitério Prado do Repouso, Campo 24 de Agosto, Praça Marquês de Pombal, Campo da República. Improvisaram-se barricadas nas ruas 31 de Janeiro, Santa Catarina, Santo Ildefonso, Alexandre Herculano e Entreparedes, guarnecidas com algumas metralhadoras. No dia 4 tentaram, sem êxito, ocupar a estação de radiotelegrafia instalada no Bom Pastor.
Lisboa não respondeu
O facto de Lisboa não ter secundado a revolta e a neutralização dos focos revolucionários em Vila Real, Guimarães, Faro e Barreiro, permitiu ao governo responder com alguma rapidez. Forças de Infantaria n.º 20 e de Artilharia n.º 2, da Figueira da Foz, que se tinham revoltado no dia 3 e seguiram pela Linha da Beira Alta, foram obrigadas a render-se perto da Mealhada. O Governo recorreu em primeiro lugar às forças fiéis que permaneciam no Porto, comandadas pelo coronel Raúl Peres, que se posicionaram na zona da Praça da Batalha, com duas peças de artilharia. Ainda na tarde do dia 3, contingentes fiéis do Regimento de Infantaria n.º 18, do Regimento de Cavalaria n.º 9 e do Regimento de Artilharia n.º 5, da Serra do Pilar, reuniram-se neste último local e a partir daquela posição fizeram fogo de artilharia contra os rebeldes. Ali se instalou o quartel-general das forças lealistas, às quais se vieram a reunir figuras cimeiras do Governo da Ditadura como os ministros da Guerra, das Colónias e da Justiça, respectivamente Passos e Sousa, João Belo e Manuel Rodrigues.
Algumas unidades – GNR e Exército – que inicialmente não tomaram posição permanecendo numa neutralidade cómoda, acabaram por pender para o lado governamental à medida que chegavam notícias da chegada de reforços de Aveiro. Ainda no dia 3, começaram a concentrar-se no Entroncamento tropas da 3.ª Região Militar, sob o comando do coronel Pimenta de Castro. Em Gaia, às ordens do coronel Craveiro Lopes, estava um destacamento de tropas de Coimbra e de Aveiro; no mesmo dia, no Bom Pastor e Arca de Água, formava-se outro destacamento com militares de Braga, Viana e Valença. O Governo ia concentrando efectivos em redor da cidade sublevada com o intuito de a estrangular. O desequílibro de forças era evidente e foi sublinhado com a chegada a Espinho, no dia 4, de aviões provenientes da Amadora, de S. Jacinto e de Tancos, que sobrevoariam a cidade numa atitude intimidatória. No dia 7, chegou ao porto de Leixões um destacamento misto de 600 homens sob o comando do coronel Farinha Beirão, transportados no vapor Infante de Sagres, que chegou a Leixões proveniente de Lisboa.
Nos dois primeiros dias, os revoltosos conseguiram manter as suas posições mas não tiveram possibilidade de as ampliar e de conquistar mais terreno. Conseguiram mesmo repelir um ataque de forças governamentais na ponte D. Luís I, feito por uma força de cavalaria comandada pelo tenente Morais Sarmento. Outras acções ofensivas governamentais tiveram lugar dentro da cidade, que foram neutralizadas pelo fogo das trincheiras. No entanto, os revoltosos começavam a lutar com a escassez de mantimentos e de munições, o que contrastava com o lado oposto, constantemente reforçado. Posicionadas em Gaia, os governamentais recebiam abastecimentos vindos dos depósitos do Entroncamento, de Pampilhosa e Espinho.
Alguns contingentes lealistas atravessaram o Douro em Valbom e encaminharam-se para o centro da cidade. O cerco aos revoltosos consolidava-se pelo Norte, com as tropas desembarcadas em Leixões, e pelo Leste, com as tropas vindas de Bragança e da Régua, comandadas pelo coronel Lopes Mateus. Em Vila Nova de Gaia concentraram-se mais de quatro mil homens, provenientes de vários pontos do País, bem armados e com artilharia.
Lisboa não se rebelou. O Porto permaneceu como Invicta
Esmagadas pela enorme desproporção de forças, sem possibilidade de receber auxílio do exterior, fustigadas pela artilharia governamental e batidas pelas constantes rajadas de metralhadora, as forças revolucionárias pediram um armistício, no final do dia 5, através do cônsul do Uruguai. Procuravam ganhar tempo, confiantes ainda que Lisboa se rebelasse. Os revoltosos foram representados pelo comandante Jaime de Morais, pelo major Inácio Severino e pelo capitão Aresta Branco, mas não havia lugar para negociações, apenas para a rendição sem condições, pelo que os emissários se retiraram na manhã do dia 6. Os combates ainda se prolongaram por mais dois dias. A artilharia governamental redobrou os seus ataques e os aviões sobrevoaram a cidade lançando panfletos apelando à rendição. Numerosos incêndios se declararam em casas particulares como resultado do impacto dos obuses. No dia 7, as forças governamentais avançaram para desferir o golpe de misericórdia. Sob o comando do coronel Duque, o destacamento da Granja atravessou o rio Douro em Avintes e dirigiu-se por Valbom para Ermesinde. Ficava assim fechada a derradeira via de acesso ainda aberta para a cidade, ocupando Campanhã. Farinha Beirão progredia a Oeste da cidade, reforçando as forças do Norte no Bom Pastor.
Na tarde do dia 7, o quartel-general rebelde, instalado no Teatro de S. João, desmobilizou os voluntários civis. O general Sousa Dias enviou ao Regimento de Artilharia n.º 5, em Vila Nova de Gaia, um documento no qual propunha a rendição, procurando salvaguardar a responsabilidade de sargentos, cabos e soldados. As consequências seriam assumidas somente pelos oficiais. A proposta foi recusada. Numa posição de força, a Ditadura apenas isentaria cabos e soldados, devendo os sargentos responder ao lado dos oficiais. Na madrugada do dia 8, o general Sousa Dias aceitou as imposições. Passos e Sousa entrou na cidade pela Ponte D. Luís. Para que não restassem dúvidas foram feitos avisos de que qualquer civil capturado com armas na mão seria imediatamente fuzilado sem mais formalidades.
Na manhã do dia 7 eclodia, finalmente, a tão esperada revolta em Lisboa. Demasiado tarde. Ainda antes da rendição formal do Porto, Passos e Sousa já começara a deslocar forças em direcção à capital para combater a Revolução.
O balanço dos combates no Porto foi pesado: cerca de uma centena de mortos e meio milhar de feridos, grandes destruições, com dezenas de casas atingidas pelo fogo da artilharia e pelos incêndios. As forças rebeldes seriam cerca de duas mil e quinhentas entre militares e civis revoltados, predominando os republicanos de várias formações partidárias; Partido Radical e Partido Republicano Português, Acção Republicana e Seara Nova, Esquerda Democrática, mas também sindicalistas com destaque para um grupo de ferroviários das linhas do Douro e Minho e Sul e Sueste. Os efectivos governamentais andariam pelos cinco mil homens. Seguiram-se as prisões, as demissões da função pública, as deportações e o exílio para centenas e centenas de democratas que participaram no movimento.
Falhou assim a primeira revolta armada contra a Ditadura Militar. As divisões entre republicanos e democratas, a falta de coordenação e a incapacidade de colocarem os interesses da República e do País acima dos interesses particulares ou de grupo facilitaram a consolidação da Ditadura, que se reforçou após cada tentativa falhada de revolta até 1931. Seria necessário aguardar longos anos até que, em Abril de 1974, outro movimento militar, prontamente secundado pelo Povo, conseguisse triunfar onde a revolta de Fevereiro de 1927, e outras falharam…
António Ventura
(1953)
Professor catedrático da Faculdade e Letras da Universidade de Lisboa