A Segunda Guerra Mundial começou em Espanha (a propósito de uma Resolução do Parlamento Europeu)

O revisionismo histórico, promovido por forças da direita, atingiu um ponto inacreditável. Com data de 19 de Setembro de 2019, foi aprovada no Parlamento Europeu a Resolução 2819 proclamando que a Segunda Guerra Mundial teria sido desencadeada pela assinatura do Pacto Germano-Soviético de não-agressão em 23 de Agosto de 1939. Apoiada no PE pelo S&D, socialistas de várias tendências, (incluindo o Partido Trabalhista britânico), os Cristãos-Democratas, os Liberais e os Conservadores albergados na sigla ECR, European Conservatives and Reformists, teve igualmente, como era de esperar, a concordância dos partidos de extrema-direita que proliferam no centro e norte da Europa. Pretende-se fazer acreditar que o pacto também conhecido por Molotov-Ribbentrop foi o pretexto para o desencadear da Segunda Guerra Mundial, com os seis anos de atrocidades que se seguiram, como se nada mais tivesse originado aquele desenlace histórico. E isto com o objectivo de equiparar comunismo e nazi-fascismo, como pretendem há muito os revisionistas históricos de direita e extrema-direita, também existentes em Portugal.

O aproveitamento da passagem dos 80 anos do pacto pelas forças de extrema-direita existentes nos países bálticos, Finlândia, Polónia, Hungria e Ucrânia, que pretendem esconder a colaboração dos seus países no estabelecimento da ordem nazi na Europa e na invasão da União Soviética, a partir de Junho de 1941, tem como objectivo o branqueamento dessa colaboração e o ataque a todas as forças antifascistas europeias, fazendo crer também que os países onde foram implantados o comunismo e o nazismo estiveram sujeitos ao mesmo tipo de sistema totalitário.

Foi esta falsificação histórica que passou no Parlamento Europeu, com a aprovação dos partidos socialistas e sociais-democratas, liberais e conservadores de muitos países europeus. E poucos têm sido os que a contestaram. O apoio dos partidos de extrema-direita, neofascistas, não surpreende. Hoje, a Europa do norte, central e de leste está cheia de vestígios desse revisionismo histórico, promovido por esses partidos, alguns dos quais conseguiram chegar ao poder, que pretendem apagar o contributo do movimento antifascista contra os crimes horrendos que a partir dos anos 20 do século passado proliferaram na Europa, culminando nas atrocidades do período da Segunda Guerra Mundial.

O apagamento de todos os símbolos do socialismo e do comunismo e enaltecimento dos elementos nazis e fascistas que lutaram ao lado das hordas de Hitler têm sido prática corrente. Nazi-fascismo como resposta à Revolução Soviética de Outubro de 1917, que pela primeira vez pretendeu libertar as mais amplas camadas da população, num dos países mais extensos do mundo, onde a maioria nem sequer estatuto de cidadão tinha, mantida na mais abjecta servidão, como na Idade Média. E a que se seguiu um movimento mundial, na Europa, Ásia, África e Américas, de criação de partidos comunistas que se propunham igualmente libertar os seus povos dispersos pelos vários continentes. Em muitos casos provenientes de cisões com os partidos socialistas já existentes, alguns desde finais do século XIX como resposta à chamada “Questão Social”.

Quando se deu a consciencialização da selvajaria a que estavam sujeitos homens, mulheres e crianças pelos empreendedores capitalistas, na primeira fase desse sistema de exploração económica e social, que até a Igreja Católica, pela voz do Papa Leão XIII, não deixou de condenar. Pois é a essa grande revolução na história da humanidade, na qual Lenine teve a clarividência de não deixar passar a oportunidade de tomar o poder, que se vão opor os fascismos em Itália e na Alemanha e em alguns outros países europeus. Na Alemanha incluindo uma ideologia de supremacia da raça branca e ariana, com origem em ideólogos de língua germânica de finais do século XIX. O facto de Lenine ter entre os seus próximos vários judeus ajudou a cimentar a ideia, junto dos nazis, de que a batalha a travar era contra uns bolcheviques judaizantes que pretendiam dominar o mundo. A obra do italiano Enzo Traverso, Les marxistes et la question juive, Éditions Kimé, analisa bem a relação entre marxismo e judaísmo.

É esta batalha que se vai travar em toda a primeira metade do século XX, a que Ernst Nolte chamou a Guerra Civil Europeia 1917-1945. De notar que este historiador alemão, considerado também revisionista por ter tentado justificar os crimes do nazismo como resposta aos do estalinismo, faz no entanto uma separação clara nessa sua obra entre a luta, “biológica”, do nazismo pela eliminação de outras raças, e a tentativa de eliminação da classe burguesa pelo comunismo, com o objectivo de tornar a sociedade mais justa e “racional”.

Na edição francesa da obra, pela Édition des Syrtes, refere que a contrarrevolução na Rússia, a partir de 1918, com a participação de cerca de 20 países, que se encontravam na Europa e na Ásia na sequência da Primeira Guerra Mundial, foi objecto de uma resposta justificada dos bolcheviques na defesa da sua revolução.

O que não aconteceu com o nazismo, que, sem qualquer justificação ou simplesmente pela necessidade de “espaço vital”, ou Lebens Raum, para os povos de língua germânica, parte para a eliminação de outras raças que considerava inferiores. A tese de Nolte de que os crimes do nazismo eram justificados pelos crimes do estalinismo deu origem à chamada querela dos filósofos, que durou algum tempo na Alemanha no final da década de 1980, onde se destacou Jürgen Habermas no seu repúdio.

A revolução em Espanha

Na sequência da expansão das ideias da Revolução de Outubro de 1917 por todo o mundo, chegou também a Espanha, especialmente à Catalunha, o seu espírito, assim como as ideias anarquistas introduzidas pelo revolucionário russo Kropotkin numa das suas passagens por Espanha.

Essas ideias foram bem recebidas pelo operariado catalão e por aqueles que tinham mais consciência das miseráveis condições em que viviam a maioria dos povos ibéricos, como ficou bem exemplificado no conhecido documentário de Luis Buñuel, Terra sem Pão, de 1932.

No seguimento da abdicação do Rei Alfonso XIII, em Abril de 1931, é proclamada a Segunda República Espanhola, que pela unidade das forças mais progressivas dá início a políticas tendentes a minorar as condições de extrema pobreza em que vivia o povo espanhol, incluindo o processo das autonomias das várias nações ibéricas. Inicia-se a reforma agrária dos imensos latifúndios principalmente no sul de Espanha, limitação e apropriação de alguns bens da Igreja Católica pelo Estado, desenvolvimento do ensino público às mais vastas camadas da população, democratização das forças armadas com a promoção de oficiais fiéis à república, etc.

De 1931 a 1936, ano em que começou a guerra civil, passam vários partidos pelo governo, fruto de eleições que se vão realizando. Com destaque para as de Novembro de 1933, em que a CEDA, Confederação Espanhola de Direitas Autónomas, foi o partido mais votado mas sem atingir a maioria no Parlamento. O Presidente Alcalá-Zamora nomeou então como primeiro-ministro Alejandro Lerroux, do Partido Republicano Radical, que fez entrar para o governo três ministros da CEDA e começou a reverter todas as medidas reformistas realizadas até então. O que originou revoltas populares que culminaram na greve insurrecional, em Outubro de 1934, dos mineiros das Astúrias contra as políticas ultradireitistas do partido CEDA, inspiradas nos fascismos italiano e alemão. A revolta é reprimida duramente com vários milhares de mortos e centenas de presos políticos. Ao mesmo tempo, na Catalunha, o Presidente da Generalitat, Lluís Companys, proclama o Estado Catalão, no contexto do movimento insurrecional nacional contra o governo central e as suas políticas tendentes a restabelecer a situação anterior à Segunda República. Companys é preso, o Estado Catalão é abolido e o seu presidente levado para Madrid, onde é condenado, em Junho de 1935, a 30 anos de prisão. Só seria libertado em Fevereiro de 1936, aquando da vitória da Frente Popular em novas eleições. Depois da sublevação dos militares em Julho do mesmo ano e da tomada de Barcelona pelas tropas franquistas, em Fevereiro de 1939, exila-se em França. Em Agosto de 1940 é preso por agentes da Gestapo e entregue às autoridades franquistas, que o fuzilam em 15 de Outubro de 1940.

Pietro Nenni, (1891-1980), Secretário-Geral do Partido Socialista Italiano em diversos períodos, nas suas memórias sobre a Guerra Civil de Espanha, onde combateu pela República, publicadas em Portugal em 1975, dá-nos um testemunho directo das razões do esmagamento da Segunda República Espanhola. Participante dos acontecimentos e em encontros de alto nível que dariam origem ao abandono da Espanha pelas potências ocidentais, França e Reino Unido, Nenni testemunha a entrada em força dos nazi-fascistas italianos e alemães, sem os quais os sediciosos militares chefiados por Franco nunca teriam ganho a guerra.

Conhecedor das intenções de Mussolini, desde a participação deste no Partido Socialista Italiano, que pretendia apropriar-se de alguns territórios espanhóis no Mediterrâneo, revela que o levantamento liderado por Franco a partir do Marrocos espanhol tinha tido a colaboração dos italianos na sua preparação e logística. Poucos dias depois do 18 de Julho de 1936, os italianos e os alemães proclamaram a sua solidariedade com Franco, tendo enviado tropas, que no caso italiano chegaram a 120.000 homens, dos quais houve 4.000 mortos e 16.000 feridos. Dos alemães, afirma Nenni, com menos homens, o apoio consistiu no envio da Legião Condor, que viria a destruir a cidade basca de Guernica, na organização e direcção da aviação franquista, das defesas antiaéreas e fornecimento de aviões, tanques, canhões DCA e antitanques.

Enquanto isto, o governo conservador britânico e o francês de Léon Blum, da Frente Popular, um potencial aliado da República Espanhola, faziam uma proposta de não-intervenção logo em Agosto, a que aderiram 27 nações europeias, quando já existiam tropas italianas a combater em Espanha. Pacto de Não-Intervenção que italianos e alemães também assinaram, mas sem qualquer intenção de o cumprir, o que impediu a República Espanhola de se abastecer de armas em França e noutros países europeus a fim de combater a invasão ítalo-alemã.

A Segunda Guerra Mundial começava então, precocemente, em Espanha, entre o nazi-fascismo alemão e italiano e as democracias ocidentais, que tentavam a todo o transe não hostilizar os fascistas, a quem entregariam em Munique, dois anos mais tarde, uma parte da Checoslováquia.

Sacrificando a Espanha republicana e democrática às mãos dos nazi-fascistas em 1936, a França estava a cavar a sua própria sepultura, e veria Hitler entrar em Paris a 23 de Junho de 1940.