Cartas de Afonso Duarte para Manuel Mendes: O Afastamento do Ensino e a Publicação da Obra Pedagógica e Etnográfica

Afonso Duarte (Ereira, 1884 – Coimbra, 1958) nasceu para ser na vida duas coisas: professor e poeta. Poeta foi-o a vida toda. Professor só o deixaram ser uma dúzia de anos, na Escola Normal Primária de Coimbra (no Largo da Sé Velha), entre 1919 e 1932, ano em que foi afastado do ensino quando a pedagogia do “Deus, Pátria e Família” expulsou a pedagogia da “Educação Nova”.

O seu afastamento da Escola, pondo termo a uma experiência pedagógica inovadora, com méritos internacionalmente reconhecidos, nas áreas do desenho infantil e da etnografia, foi um dos maiores golpes da vida de Afonso Duarte.

A “papelada da Escola” recolheu-a no andar alugado num velho prédio da Rua do Dr. João Jacinto, modestamente mobilado.

A privação do seu vencimento como professor e as limitações físicas decorrentes do ataque de paraplegia, que o atingiu durante a incorporação militar em Lisboa (1917-1918), e que “me cortou ao meio”, criaram-lhe dificuldades económicas que determinaram a penosa decisão de estabelecer a residência principal na Ereira. Mas Coimbra fazia-lhe falta: os jornais, as livrarias, o convívio com os amigos e com as sucessivas gerações de jovens que procuravam a sua opinião.

Quando estava em Coimbra, depois das tardes na sua “cátedra de poesia” nos cafés da Baixa, raramente saía à noite: “Lia, escrevia, folheava as suas pastas de desenhos infantis abertas em cima da mesinha franciscana” (Carlos de Oliveira).

Perante o olhar indagador de Jacinto Soares de Albergaria sobre uns objetos de arte regional dependurados na parede da sala, Afonso Duarte descreveu: Eram algumas das peças do museu de etnografia que eu estava a organizar quando me puseram fora. “A sua voz tinha uma tremulência, notava-se desgosto e compreendi ainda melhor este seu verso O meu espírito agreste de luta, porque ele nascera para lutar nos seus trabalhos e na sua poesia. A vida e a incompreensão da sua obra pedagógica tornara-o um lutador”.

Do acervo de cartas de Afonso Duarte para Manuel Mendes1, selecionamos algumas que contêm referências suas ao estado do ensino, ao desgosto pela interrupção da sua atividade como professor e aos persistentes esforços que fez, ao longo da vida, para promover a edição dos trabalhos etnográficos e pedagógicos.

Constituem também um sofrido retrato da sua vida repartida entre o isolamento da Ereira (com a alegria da aparição de amigos, logo seguida da tristeza pela curta duração dessas visitas) e as idas a Coimbra, onde nem nos momentos de maior sofrimento e revolta se apaga a fina ironia ou esmorece o espírito de luta.

1 – Coimbra, 10/1/1931

Meu querido Amigo

Bem-haja sempre pelas suas notícias – que eu desejo que não sejam cerimoniosas. Uma vez só nos encontrámos, é verdade, mas eu quero tê-lo como um dos meus íntimos. Sei que esteve aqui o nosso A. [Augusto] Casimiro. Veio como diplomata ou como homem de força? Olhai que eles são habilidosos até à ambidextria! Recebem oficialmente um Keyserling2 e um Ferrière3 e dão bolsas de estudo a um [José Rodrigues] Miguéis, mas por outra parte vão entregando metodicamente todo o ensino às Congregações ou a outrem por Elas! É uma mistificação tudo o que aí vai…

(…) Abraços do Afonso Duarte

Afonso Duarte com Adolfo Casais Monteiro e Miguel Torga

2 – Ereira, sem data (c. 1935)

Querido Amigo,

A sua carta não me encontrou em Coimbra mas aqui no Campo – às audições do Atlântico e dos mosquitos.

À cidade vou apenas uma vez por semana apesar de lá conservar ainda todos os meus papéis.

E não me acostumei ainda a trabalhar sob esta música de mosquitos.

Já vê que não é só a falta da Escola e a ofensiva que mão invisível vem desencadeando contra mim, vai já em 3 anos, é a luta também contra as melgas trombeteiras, o Diabo dos Campos de arrozais.

Amigo: eu creio preferível, mas preferível, acabar num Campo de Concentração como o Antonio Machado – Poeta que soube morrer! (…)

Termino aqui. Exatamente neste momento batem à minha porta.

Dou-me com Horácio Cunha, Domingues e Crato! Homem: eu podia lá esperar semelhante Aparição!

Depois fiquei entristecido. Partiram logo.

Ah, Meu Amigo, aqui estou. Todo o meu trabalho é procurar o estado quase de inconsciência em que vive esta gentinha da aldeia que passa a vida atrás duma bezerrinha, ou dum porquinho, que é toda a sua confiança no Futuro. Eu tenho 4 galinhas que põem ovos.

E aqui estou e com todos os meus papéis ainda em Coimbra. Dia a dia, há 3 anos, à espera da resolução do meu caso, sempre prometida, e nada!

É uma vida de alevanto constante desde que me faltou a Escola. Mas isto há de parar!

Lecionar num Colégio? Matar o tempo? Mas não posso.

E aqui estou à espera.

Já vê, Amigo, quanto lhe agradeço a sua carta, como compreendo a sua carta.

Amigo: um apertado abraço, muito apertado, do Afonso Duarte.

3 – Coimbra, 21/3/1940

Querido Amigo:

Recebi na aldeia, remetida de Coimbra, a sua carta. Quis escrever-lhe logo mas só hoje me foi possível – o que parece impossível – e aqui de Coimbra onde vim depois de uma ausência de 3 semanas. Ereira afogada todo este tempo. Só hoje a estrada descobriu para me deixar passar a pé enxuto. Nem carteiro nem pão cá têm vindo. Acresce a tudo isto a partida de um irmão para África e a doença de uma velhinha de 80 anos, minha mãe.

E acresce a isto a própria inquietação do Campo, onde também não tenho encontrado tranquilidade desde que me despedaçaram a Escola.

Não posso com tal isolamento. Penso minuto a minuto nos meus papéis, que passei a monte da Escola para o meu quarto de Coimbra.

A companheira-cozinheira que se dá aqui como franga na silveira espanta-se comigo quando lhe grito que eu não matei ninguém para estar aqui.

Mal-estar que toca a todos nós?

Não sei. Há os literatos que são felizes com as suas rimas, a sua métrica.

Fale-me V., querido Amigo, que sente comigo, que vive comigo – eu o sinto! – de uns fragmentos que publiquei em Presença4e a que chamei psicanálises. Tinham-me esquecido mas lembro agora que o G. [Guilherme] Filipe os quis publicar em Espanha e que a Censura lá os cortou.

Nemésio, é verdade, passou aqui um dia comigo – por sinal um dia de vento muito agressivo, mas que lhe deu palavras de bom amigo para a Revista de Portugal5 e por sinal que um dos meus frangos – o branco – saltou para os ombros da esposa do Nemésio e ia-lhe engolindo uma pérola de um brinco da orelha.

O A. Casimiro prometeu vir até cá, mas o Engenheiro-chefe não o dispensou do trabalho.

Quere V., meu Caro Manuel Mendes, passar uns dias aqui no Campo – o mesmo Campo que viu nascer o Fernão Mendes Pinto, da Peregrinação, e o Jorge, da Diana?

O tempo agora vai bom e há pescaria dos rios da melhor – lampreia, sável, etc.

E não sairei de cá e direi bem do Campo todo este tempo.

Adeus. Abraços do Afonso Duarte.

4 – Coimbra, 2/3/1943

Querido Amigo:

Continuo em Coimbra e apetece-me dizer-lhe: venha até cá; tem aqui uma choupana, e uma saída daqui para além é, por vezes, bom processo de retorcer o rabo à porca da vida! (…)

Presentemente estou a trabalhar (?) para uns amigos do Brasil da Revista das Academias de Letras. Há um ano que me não deixam por via de coisas do nosso folclore: querem trovas, muitas trovas do nosso povo acompanhadas de um estudo meu. Cá estou, portanto, em pleno Laboratório étnico – como diria o Jousse. Imagine que nas Férias (?) do Natal tive a habilidade de sacar da boca de um homenzinho iletrado da minha aldeia – 850 quadras, afora outras coisas! Tenho-as já cotejadas com as do Cancioneiro de Vila Real (Trás-os-Montes) e Souto da Casa (Beira Baixa) – e vou seguir para o do Minho, etc. Coisa dos diabos! E que não está feita – apesar da praga de folcloristas que há neste país de mil diabos! Como não sei jogo nenhum, nem de cartas, nem tenho parceiro algum, gozo isto como um jogo. Depois zango-me comigo mesmo, é claro. Mas há tanta coisa por fazer neste país – e neste campo – que não é sem vantagem um empurrão de um poeta… E saiba que depois de ver a Carolina, o Leite de Vasconcelos, o J. Nunes, o Lapa – porque eu meti-me com os Cancioneiros e poesia medieval – quero mais ao apedrejado Teófilo que a nenhum outro. Como pode ser? É! Mas fica para outra vez – que lhe estou a tomar já tempo de mais com as minhas magiquices…

Até à vida, não? Um abraço, a perdoar-me, Afonso Duarte.

5 – Ereira, 29/11/1944

Queridos Amigos Manuel Mendes e Lopes Graça:

Na verdade, o Cochofel falou-me na possibilidade de a Cosmos publicar o Caderno de desenhos decorativos inspirados em motivos populares, composições de escolares da Normal de Coimbra, acompanhado de palavras minhas (Carta metodológica, etc.). Mas eu duvido que à Cosmos convenha a edição em virtude de meter muita gravura. A princípio chamei a este trabalho Uma experiência pedagógica portuguesa (título geral), mas como já foi tomada por umas coisas que publicou a editorial Inquérito, estou em dar-lhe o título geral de O folclore na educação. Lá que o assunto é atual, é. E que tem ótimas referências do 3.º Congresso Internacional de Educação-Nova, tem. Mas… Sempre o mas… Antes de Outubro também não poderei mexer nessa papelada. Tenho entre mãos 2 cancioneiros populares (Beira Litoral e Beira baixa) mas 1 deles está prometido à Revista das Academias de Letras do Brasil e falta-me escrever o prefácio (?). Há 3 meses que estou agarrado a esta dor da aldeia, sem um dia de meu.

Vivo isto e isto não me dá para escrever. Talvez haja quem o não compreenda. Cavo e rego o meu quintal a olhar para tudo isto espavorido… E não escrevo uma linha!

Amigos: Um abraço muito apertado e de muitos agradecimentos do Afonso Duarte.

6 – Ereira, 23/1/1945

Queridos Amigos,

Bem hajam por se terem lembrado de mim, que é o único verdadeiro bem que se pode ter, este bocado de calor que nos vem de almas irmãs.

Estive também para lhes escrever mas sobre uns assuntos muito terrenos: A edição dos meus versos e de um trabalho sobre o cancioneiro popular: os meus velhos versos e o meu velho tema do cancioneiro do povo.

O Guilherme de Oliveira, atual gerente (Diretor) da Livraria Atlântida soube que eu tinha para publicar estas obrinhas e teima em editá-las.

Disse-lhe que nada podia resolver porque uma estava prometida ao Manuel Mendes e a outra ao Fernando Lopes Graça para a Cosmos.

Deverei continuar a dizer isto ao meu bom Guilherme de Oliveira?

À Cosmos convirá uma obrazinha deste género? Uma colectânea de cantos populares dos Campos de Coimbra (Ereira) com um esquema de cancioneiro popular – estudo meu que mandei para a Revista das Academias de Letras do Brasil, há cerca de 1 mês? Que me dizem?

Até à Páscoa desejo pôr isto com dono se o tempo – melhorar.

Abraços apertados do Afonso Duarte.

Afonso Duarte com João José Cachofel e esposa, Maria da Graça Simões de Carvalho Dória [Cochofel]

7 – Ereira, de 9/11/1946

Querido Amigo:

Logo que recebi carta do Cochofel fiz conta de ir a Coimbra para resolver o caso dos meus originais com o Saraiva (Coimbra Editora). E ainda hoje, apesar do estímulo da sua carta, tenho de deixar o caso para a próxima semana. Não são só os originais dos Novos poemas, há também um trabalho sobre o cancioneiro popular – Um esquema do cancioneiro popular português, seguido dos cantares de Ereira (Campos de Coimbra) e que desejaria ver publicado ao mesmo tempo. Foi um estudo que me pediram uns amigos da Federação das Academias de Letras do Brasil e que a minha preguiça deixou ficar por cá.

Só poderei resolver isto quando regressar a Coimbra, meado da semana que vem, e então lhe darei conta do recado como devo à sua amizade, tão viva sempre no meu coração.

Edição simples, sóbria, como mandar inteiramente o seu bom gosto.

Abraços aos nossos amigos da Seara.

Seu sempre muito grato, Afonso Duarte.

8 – Coimbra, de 22/11/1946

Querido Amigo:

Só na 3.ª-feira, dia em que cheguei à cidade, safei os originais da Coimbra Editora. Demorei estes 2 dias à espera que mos dactilografassem conforme me pediu. Seguem neste mesmo correio para a Seara. O que preciso agora é de arranjar editor para o outro trabalho – Um esquema do cancioneiro popular português seguido dos cantares de Ereira (Campos de Coimbra) – (cerca de 300 págs.).

Terei de me entender com a editorial Barcelos, que publicou o Ciclo de Natal e o vendeu muito bem – se não arranjar outra mais vantajosa.

O João Cochofel disse-me que o Câmara Reys me daria 20% sobre a capa conforme fosse vendendo a edição. Será como for possível à Seara – apesar dos canudos desta vida. Espero que V., meu Caro Manuel Mendes, em tudo mande sem me ouvir – mesmo sobre a ordem dos poemas, arranjo gráfico, etc.

Fico rogando aos Deuses para que assim seja.

Abraços do seu velho e muito dedicado amigo, Afonso Duarte.

9 – Coimbra, de 23/2/1947

Querido Amigo:        

Esperava que voltasse por cá.

Queria vê-lo cá, já que eu não posso ir ver Lisboa. Ainda há bem poucos dias estivemos com o seu Herculano, eu e o Carlos de Oliveira. Hoje, aqui, na mesma Central, com o seu Oliveira Martins. Graças por esta leitura – viva, de homem para homem.

Eu continuo com especialidades farmacêuticas que me receitou, e bem, o nosso Torga, – o grande nosso Amigo.

Em breve, apesar de tudo, deverei estar na Ilha de Ereira – que, a estas horas, deve estar com as suas casas sem gente e os currais sem gado, no geral.

Cumprimentos ao Câmara Reys e ao Lopes Graça.

Do seu velho Afonso Duarte.

PS: Quando estará pronto o livro? Oxalá que venha e eu ainda em Coimbra. Tenho o meu trabalho sobre o Cancioneiro popular pronto há 4 anos e ainda não sei a quem o entregar. Talvez a Barcelos

1Espólio de Manuel Mendes, depositado no Museu Nacional de Arte Contemporânea e digitalizado na página “Casa Comum” da Fundação Mário Soares.

2Hermann von Keyserling (1880-1946), escritor e filósofo alemão, fundador, em 1919, da “Escola de Sabedoria” ou “Sociedade de Filosofia Livre”, visitou Portugal em Abril de 1930, proferindo conferências em Lisboa e no Porto, mantendo contactos com Joaquim de Carvalho, Afonso Lopes Vieira, Agostinho de Campos, Fernando Pessoa, Vitorino Nemésio, Leonardo Coimbra e Sant’Anna Dionísio, entre outros.

3Adolphe Ferrière (1879-1960), o principal teorizador do movimento da Educação Nova, esteve em Portugal em 1930, visitando a Escola Normal Primária de Coimbra.

4Afonso Duarte, “Algumas notas pedagógicas”, Presença, n.º 36, Coimbra, novembro 1932, pp. 1-3.

5Manuel de Borba (Pseudónimo de Vitorino Nemésio), “Dados sobre Afonso Duarte”, Revista de Portugal, n.º 8, Coimbra, julho de 1939, pp. 543-549.