Sal da Terra – “DE CABINA EM CABINA”

Bela e ancestral Lisboa, «esta Lisboa prezada» de Fernão Lopes, a velha Lísbia dos nossos amores, tão justamente celebrada e cantada nos mais desencontrados estilos e homenagens, pelas eras fora. E bem que o merece, em seus passos de grandezas e misérias, brilhando sempre e enternecendo que baste, acima dos tempos.

Venho hoje recordar uma Lisboa especial, do meu passado, em grande parte já desaparecida e pontuada por artefactos que foram ficando para trás, noutra época. Ou que, porventura, ainda subsistem, mas apenas como resíduo venerando, efeito lúdico, enfeite urbano: as inocentes cabinas telefónicas. Uma Lisboa que pode ser assinalada e descoberta através das suas cabinas telefónicas.

Estranharão uma abordagem tão comezinha e aparentemente arbitrária, numa cidade deslumbrante. Parecerá até menos interessante que o roteiro dos chafarizes, das engraxadorias e das lojas seculares. Mas, naqueles tempos, havia boas razões para as cabinas telefónicas integrarem os itinerários da clandestinidade.

Eram paralelepípedos de madeira envidraçada, copiados do modelo inglês, mas apresentando, em vez do vermelho vivo, uma cor amarela, suave, com vidros debruados brevemente a encarnado. A sua elegância distinguia-se ao longe, em ruas e praças salteadas, e frequentavam-nas os cidadãos sem acesso a telefone privado. Poucos não seriam, nesses tempos de miséria e abandono. Assim possuíssem eles moedas para fazer funcionar os engenhos.

Não quero exagerar, mas creio que houve uma altura em que eu conhecia praticamente todas as cabinas telefónicas de Lisboa, que, sendo preciso, logo me acudiam ao espírito em qualquer azimute. Podia enumerar, circunspectamente, as vantagens e os defeitos de qualquer delas. Concepção resultante duma experiência pessoal, claro, que se prestava sempre a ser discutida e rebatida. Essas minudências, mesmo em surdina, tinham de ser encaradas muito a sério, porque estavam em jogo valores fundamentais.

Tratava-se da vida clandestina, vida duplicada, daqueles que, nesses tempos, se embrenhavam quotidianamente na organização da resistência ao fascismo. Os erros, então, pagavam-se caro, com a prisão, a tortura e a perseguição política. Os aspectos de defesa e segurança mereciam uma atenção minuciosa, reforçada por anos e anos de prática, nem sempre bem-sucedida. E no meio de tudo isto haveria porventura, até, preferências e tinetas pessoais, sendo as decisões tomadas por gente, não por máquinas.

Era preciso seleccionar cautelosamente os locais dos encontros clandestinos, as mais das vezes entre militantes que nem se conheciam pessoalmente. Nomes falsos, pseudónimos, conversas contidas, limitadas ao momento político e às «tarefas». As cabinas telefónicas podiam ser óptimos pontos de referência, a dispensar mapas e detalhadas explicações. Ninguém estranharia que ali houvesse gente parada, nas imediações, à espera de vez. Também se poderia entrar e fingir que se marcava um número, permanecendo em conversa telefónica simulada, enquanto se aguardava. De resto, as esperas, nessas ocasiões, teriam um alcance máximo de três, cinco minutos…Hábitos de férrea pontualidade que, em muitos casos, ficaram para a vida.

Excelente a cabina do Caramão da Ajuda: permitia ver de longe quem estava e não estava, quem se aproximava, quem cirandava nos arredores. E se havia ou não automóveis a reincidir nas passagens… Outra que eu muito usei era a da Rua da Senhora da Glória, à Graça, afundada entre ladeiras. Boa visibilidade, sossego. Dava-se logo por qualquer coisa estranha ou mal colocada. Já a do Largo da Graça, propriamente dita, tinha excesso de movimento, era difícil discernir e identificar quem fazia o quê e que carros seriam aqueles. Como as do Largo do Calvário, aliás. Das do Rossio, nem falar…

Era todo um ritual, arriscado e aventureiro, de contacto com o desconhecido, na hipótese sempre iminente, de o imprevisto acontecer. Alguma aura romântica tocaria estes encontros, quase sempre nocturnos, em que o perigo rondava e o mistério pairava. Calculavam-se as probabilidades de saída em fuga (por onde?) na eventualidade de a polícia política aparecer.

Mas era tão importante saber que não estávamos sós, que para lá da escuridão, dos perigos e dos segredos, outros amigos comungavam do mesmo desejo de liberdade e paz, organizando-se para nos deixarem uma palavra de esperança e estenderem uma mão solidária.

Quem seria aquela moça surgida do nada, do fundo da noite, que passeava connosco, como namorando, mas a discutir a conjuntura política e a dar e recolher informações? Por mais que nos esforçássemos para a conter, a nossa fantasia não deixava de trabalhar.

Ocorrem-me os versos do poeta Daniel Filipe, que também passou por estes transes, nos seus escassos dias: Uma palavra antiga/ Mais nada/ Eh, amiga! Camarada.

Foi um nosso contributo para um mundo melhor, modesto, sem dúvida, mas gratificante.

Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a
colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano.
A Redacção