Reflexões a propósito de uma fotografia. Silenciamento e memória

Trata-se de fotografia antiga – do tempo da famigerada I República – com perto de 100 anos. Um século pesado, sacudido por duas guerras mundiais, dividido em Portugal por uma longa ditadura no meio e duas quarteis democráticos um no início e outro no final. Um século em que se ergueu um poderoso movimento Negro que desembocou no fim do colonialismo português com a derrota das nossas forças armadas na Guiné e impulsionou um movimento de capitães de boa memória.

Uma fotografia estranha porque não reconhecemos nenhum dos retratados. Alguns mais instruídos poderão eventualmente apontar o único americano do grupo. Quanto aos outros a memória não nos ajuda. Não os vimos nos compêndios escolares, não os encontramos nas folhas da Universidade, nem se escrevem livros sobre eles. Não os vemos nos programas de televisão, nem de rádio, nem sequer, de longe em longe, num artigo de jornal. Não lemos os seus nomes na toponímica das nossas cidades, vilas ou aldeias, nem se fazem comemorações nas datas dos seus centenários. Corremos para o Google mas não encontramos nada de substancial que nos permita identificar os personagens, descrever-lhes as vidas, salientar-lhes as obras, justificar-lhes a existência. Um manto espesso e impenetrável de silêncio cobre-lhes a vida, a obra e a existência. E no entanto …

Vamos então tentar desvendar o mistério. Comecemos pelo americano. A figura ímpar e inconfundível de William Edward Burghardt Du Bois (1868-1963) no centro sentado não deixa dúvidas. Mas e os outros? Participantes dos Congressos Pan-Africano que organizou? Companheiros americanos das lutas antirracistas? Simples amigos?

Americanos não o são. Todos se reclamam de portugueses.

  1. Memória, heranças e silenciamento

A memória constitui parte essencial da identidade “Memory is a crucial component in creating and maintaining individual and communal identity” (Sem@s, 2011).

As memórias constituem uma herança que as gerações legam às seguintes. Não podendo ser uma memória exaustiva apenas pode ser incorporado como herança uma fração do passado. Esse processo implica, assim, uma forte componente de seleção levada a cabo com base em critérios atuais para servir uma visão de futuro – “heritage is the selective use of the past as a resource for the present (and future)” (Ashworth e Graham, 2005).

Percebemos então que essas memórias selecionadas e integradas numa herança histórica e cultural são as que melhor servem as classes dominantes em cada momento. Assim essa herança vai-se alterando à medida das necessidades e dos interesses em presença.

Veja-se por exemplo as diferentes heranças que nos chegam dos movimentos operários de resistência ao fascismo nos anos iniciais do fascismo em Portugal. Para os defensores do Estado Novo “agitação” e “desordens” que foi necessário combater “a bem da Nação” mas a que se dá relevo para assinalar a vitória obtida e contrastar com a pacificação operada. Para o regime atual memórias incomodas a que não convém dar importância. Para os comunistas importantes lutas que moldam a sua história e do povo português. No quadro de uma democracia como a nossa essas memórias das revoltas operárias foram já apagadas da memória coletiva, se bem que prevaleçam num pequeno núcleo ultra minoritário de pessoas, e o que se discute é a oportunidade de criar um Museu Salazar!

No caso da revolta da Marinha Grande em 1934 não faltam mesmo candidatos a reescrever a história, retirando-lhe o caracter revolucionário da ação do proletariado da indústria vidreira, como é o caso de Maria de Fátima Patriarca (Patriarca, 1993) e seus seguidores. Apesar disso não há dúvida que “Em 18 de janeiro de 1934, o movimento operário português saiu à rua em várias cidades e vilas de Portugal, entre as quais a Marinha Grande. Na origem do movimento revolucionário esteve a decisão do Presidente do Conselho, através da Constituição de 1933, de impedir o funcionamento de sindicatos livres. Contudo, aquela que se previa ser unicamente uma greve geral contra a decisão do regime acabou por ir mais além, sobretudo na cidade vidreira, onde o quartel da GNR foi tomado, tal como a estação dos Correios…” (Ferreira, 2012).

Que sabe hoje o português médio da revolta da Marinha Grande de 1934? Nada ou quase nada. Esse acontecimento foi varrido da herança histórica portuguesa e substituído por episódios como o choro de Eusébio na meia-final do campeonato do mundo de futebol, esse sim, um acontecimento que todos conhecemos.

Os regimes escolhem as suas heranças na medida em que estas ajudam a preservá-los no poder, na exata medida também em que as forças sociais opostas lhes permitem silenciar e apagar os acontecimentos, figuras ou ideias que os possam questionar ou impelir as pessoas em direções contrárias às que pretendem.

A sociedade portuguesa sempre foi diversa desde a sua fundação no século XII. No entanto o regime democrático tem vindo a criar um mito de uma sociedade exclusivamente branca, em que os Negros e outras minorias são considerados “segunda-geração” de imigrantes recentes, logo não parte integrante do todo nacional. Não é por acaso que Portugal se recusa a reconhecer minorias étnicas no seu ordenamento jurídico. Para que não tenham direitos, para que se não possam afirmar.

Para esta falsa construção identitária o silenciamento da História e das memórias das várias minorias étnico-raciais torna-se essencial.

Vejam-se os Ciganos parte da comunidade nacional há séculos e que não têm uma historiografia na academia portuguesa, a sua presença nunca mencionada na História do seu próprio país, o seu contributo esquecido, a sua marca apagada. Fantasmas sem passado e sem futuro. Como se de corpo estranho que não faz parte da nossa sociedade se tratasse.

O mesmo se passa com os Negros em larga medida apagados e apenas presentes como “escravos”, ou “selvagens”. Tudo o resto eclipsado.

Simultaneamente a escravatura e o colonialismo justificados e/ou tornados comuns. Recordemos uma passagem do trabalho de Marta Araújo e Silvia Rodriguez Maeso sobre a escravatura nos manuais escolares portugueses “Retirado do contexto de relações de poder históricas que o constituía, e ao qual está inter-relacionado, o sistema esclavagista torna-se natural através de três fórmulas narrativas: 1) a objetificação da figura do escravo; 2) a trivialização da escravatura como necessidade económica; 3) avançando com o argumento da ubiquidade – i.e. que a escravatura sempre existiu[1] (Araújo e Maeso, 2012).

Como noutros casos o processo de silenciamento procura invisibilizar os contributos, as lutas e as conquistas das minorias étnicas e impor uma falsa visão de uma sociedade sem diversidade em que das diversas minorias se espera apenas que se dissolvam na cultura dominante “uma estratégia política para criar um estado-nação homogéneo onde dos grupos tornados minoritários se espera que se assimilem[2] (Ahmed, 2016)

É preciso, pois, retomar a memória. Olhemos então atentamente a fotografia.

  1. O Movimento Negro da I República

Uma primeira constatação são todos Negros. Uma segunda constatação ao centro, talvez um pouco mais para a nossa esquerda, sentado está o maior vulto da História do movimento Negro W.E.B. Du Bois, o Homem que pensou e organizou o pan-africanismo, que impulsionou as independências africanas, que criou os maiores movimentos Negros norte-americanos, o comunista que renunciou à nacionalidade norte-americana e morreu ganês em Acra. Mas os que o rodeiam são todos portugueses. Dirigentes do movimento Negro português da I República.

Do movimento quê? Pergunta o leitor convencido que todos os Negros em Portugal são de segunda geração, imigrantes ou filhos de imigrantes recentes. Pergunta o leitor que, apesar de culto e sabedor, nunca ouviu nem leu nada sobre este movimento. E pur si muove.

Vamos identificá-los. Sentados: Luiz Alberto de Pinho, Manuel Herminio Paquete, W.E.B. Du Bois, José de Magalhães, Pascoal Pires dos Santos, Lourenço Pires Amado. De pé: Manuel Maria Ribeiro, Angelino Costa, Sebastião N. d’Alva Teixeira, Augusto de Magalhães, Tomé Agostinho das Neves, Manuel Afonso de Barros e Pascoal Betencourt.

A fotografia data de 1923 e encontra-se no arquivo da Casa Comum da Fundação Mário Soares no espólio de Mário Pinto de Andrade, aí entregue para guarda pelas suas filhas.

Os portugueses nela retratados foram o corpo e a alma de um vibrante movimento Negro que se afirmou durante a I República e os predecessores da geração de Amílcar Cabral, Agostinho Neto e tantos outros.

Fundaram jornais, organizaram partidos – a Liga Africana, o Partido Nacional Africano –, debateram a questão colonial, defenderam os direitos dos Negros, integraram-se nos movimentos internacionais da época, enfim marcaram o seu tempo.

Alguns foram mesmo deputados e/ou senadores como foi o caso de José de Magalhães o Presidente da Liga Africana eleito pelo circulo de São Tomé.

Jornais como O Negro, A Voz d’África e tantos outros circulavam em Lisboa mas tinham leitores e correspondentes nos territórios sob ocupação portuguesa em África.

Para onde foi a memória destes Homens, deste movimento, destes jornais, destes partidos nunca mencionados na nossa História oficial e académica? Que racismo institucional se esconde no silenciamento desta importante parte da nossa História.

Graças a José Pereira e a Pedro Varela esta História está de novo a ser desvendada pouco a pouco. O que já sabemos é suficiente para perceber a dimensão histórica deste movimento, mas muitos detalhes ainda estão por apurar. “A geração de 1911-1933 construiu o primeiro movimento negro organizado do século XX em Portugal e foi pioneira na luta antirracista, embora devamos também ter em conta o papel precursor de outras formas de organização que existiram em séculos anteriores, como as irmandades religiosas negras” (Varela e Pereira, 2019).

É também suficiente para perceber que “A geração em Portugal foi varrida da história e pouco ou nada se sabe sobre ela. A presença de negros em Portugal tem sido ignorada ao longo dos tempos num processo de silenciamento do passado, sendo a omissão dessa presença parte de um processo profundamente opressor” (Varela e Pereira, 2019).

É que esta fotografia é terrivelmente perigosa. Ela destrói vários mitos. Primeiro o mais frágil e menos consistente mito da “segunda geração”. Ela mostra Negros participantes politicamente numa era em que não era suposto existirem senão como “indígenas” em África (aliás foi na primeira república que Portugal criou os primeiros códigos do “indigenato” que previam o trabalho forçado das populações africanas dos territórios ocupados).

Segundo ela destrói o mito que o colonialismo do final do século XIX princípio do século XX era incontestado, que na época ninguém se opunha aos desmandos do colonialismo, que ninguém tinha noção do racismo, que era normal e moderno ser-se assim nesse tempo. Aí estão homens Negros a unirem-se e a combater o racismo e a opressão colonial.

Ela destrói ainda o mito de que os Negros se ocupavam exclusivamente de trabalhos manuais e que se encontravam longe do saber. Todos os fotografados pertenciam à intelligentsia portuguesa da I República. Alguns eram médicos, outros advogados, outros ainda jornalistas ou empresários.

Como se constata uma fotografia explosivamente perigosa para a nossa historiografia oficial. Por isso escondida, por isso ignorada.

Não nos esqueçamos que há sempre duas Histórias – as das classes dominantes, uma história seletiva, ideológica, justificadora do presente e a das classes dominadas, atreita a factos e resistindo ao apagamento das suas memórias mais queridas: a da sua resistência, das suas revoltas e epopeias. É neste último âmbito que a História do Movimento Negro da I República, um movimento sem dúvida de resistência embora eivado de fortes ilusões, deve ser inserido. Uma História ainda, em boa parte, por escrever e divulgar. Essa é contudo a nossa obrigação e o nosso dever.

Referências Bibliográficas:
- Ahamed, Hanna S (2016), Getting the history 'right' by erasing the others, (acedido a 10 de Agosto de 2019)
- Araújo, Marta e Silvia Rodriguez Maeso (2012), Slavery and Racism as the “Wrongs” of (European) History: Reflections from a Study on Portuguese Textbooks (acedido a 10 de Agosto de 2019)
- Ashworth, G.J. and Graham, B. (eds) (2005), Senses of Place: Senses of Time, (Aldershot: Ashgate).
- Ferreira, António José Lopes (2012), A Participação da Marinha Grande no 18 De Janeiro de 1934, Dissertação para a obtenção do grau de Mestre em Ciência Política pela Universidade Lusófona em Lisboa.
- Patriarca, Maria de Fátima (1993), O «18 de Janeiro»: uma proposta de releitura, Análise Social, Volume XXVIII, p 1137-1152.
- Sem@as - Sharing European Memories at School (2011), Memory and Identity – an Overview (acedido a 7 de Agosto de 2019)
- Varela, Pedro e José Pereira (2019). As origens do Movimento Negro e da luta antirracista em Portugal no século XX: a geração de 1911-1933, Buala (2019)

Notas:
[1] Tradução do original em inglês “Removed from the historical power relations that constituted it, to which it is interrelated, the system of slavery becomes naturalized through three narrative formulae: 1) the objectification of the figure of the slave; 2) the trivialization of slavery as an economic need; 3) the deployment of the ubiquity argument – that is, slavery would always existed”. Tradução livre do autor deste artigo.
[2] Tradução livre do texto original em inglês “a political strategy to create a homogenous nation-state where minoritized groups were expected to assimilate”