Sal da Terra – “Casas”
Deambulando pelas ruas da cidade, pisando pedras polidas pela passagem dos séculos, dou com elas e espanto-me, apesar de tudo, com a sua dignidade e beleza. As casas velhas e abandonadas do burgo antigo!
As casas não são apenas um aglomerado de cimento, tijolos, vidros, pedra, lenho, água. A estes se juntam os músculos e a força, a vontade e os sonhos.
As casas têm cheiro, têm histórias, têm alma dentro. Daí que as casas, na parte histórica das cidades, devem ter para nós um outro valor. Porque as memórias, sem um suporte material, ardem e apagam-se em poucas gerações.
Nas velhas casas há tramas de sangue e de sal, choro doce, gemidos de amor, tranças de lamentos, cordas de enforcados, trinados de pássaros, latidos de raiva, murmúrios, medos sufocados, facas afiadas, risos de crianças.
Nas casas antigas há bancos de sol onde se sentavam os velhos, cânticos de mulher, cavalgadas nas costas dos pais, vozes ciciadas, brisas de ternura, berços e tumbas.
Quando as casas se esvaziam, entristecem e deixam de cuidar de si.
Ainda durante algum tempo, o musgo se entrelaça nas fachadas, mas aos poucos as ervas daninhas irrompem nos beirais, tomam conta de tudo e as pedras, sem o calor humano, vão deixando de suster a essência das velhas habitações. E elas vão definhando aos poucos, desventradas, até caírem numa morte humilhante de quem sabe que já para nada serve.
Cada uma que se abate é um nicho de história que deixamos morrer, irremediavelmente.
Mas nas casas antigas, batem ainda corações, mesmo depois do último suspiro. Elas são documentos vivos, papiros onde se inscreve a passagem do tempo.
Dentro de algumas paredes vivem adormecidas bandeiras insubordinadas. Refúgios, centros de encontros, clandestinos nichos de resistência.
Depois, as casas não vivem sozinhas, agrupam-se segundo sensibilidades, as casas pequenas juntam-se com outras das mesmas dimensões, os azulejos formam fachadas de cor onde a luz incide da mesma maneira, as casas têm mãos que se enlaçam. Por isso, quando alguma é abandonada ou morre empilhando-se em pó, as outras contorcem-se em desespero.
A sociedade, os poderes, centrais ou locais, são assassinos por incúria, baixam-se aos grandes interesses económicos e, como dá muito nas vistas cometer o crime de homicídio qualificado, optam por cometê-lo por negligência, pela passividade, pela falta de prestação de cuidados. Enquanto isso, cresce o assédio às pessoas em cartazes apetitosos que oferecem a preços mais competitivos, novas moradias, novas vidas e a felicidade em pacotes de “suaves“ prestações.
E as velhas casas vão definhando, sem que lhes sarem as feridas, sem mãos que lhes enfeitem as janelas de rendas ensolaradas, sem as gargalhadas das crianças, sem as malvas a tombar das sacadas.
E é uma dor que escorre nas calçadas e me atinge ao vê-las desventradas, rasgadas pelo vento, pelo calor e pela chuva, de orgulho mortalmente ferido.
Estão assim as casas da nossa cidade, resistindo ainda, num último aceno de ingénua vaidade que lhes ficou dos dias gloriosos, à espera de que alguém olhe para elas e as salve de uma morte anunciada.
Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano. A Redacção