A catástrofe macroeconómica e os meios de a esconjurar*
O conceito de vulnerabilidade pode ser aplicado à realidade macroeconómica nacional a partir da constatação de que, sem instrumentos de política económica relevantes nessa escala, furtados pela integração europeia, o país passou a estar mais dependente e exposto a crises. A crise de saúde pública, com óbvias e dramáticas declinações macroeconómicas, da quebra do Produto Interno Bruto (PIB) ao aumento do desemprego, é só o mais recente e dramático exemplo. Já nas últimas duas décadas, a combinação de estagnação e de crise, com escassos períodos de tépido crescimento, foi acompanhada de endividamento externo e de níveis de desemprego sem precedentes.
Pensar na alternativa implica perguntar: será que desta vez é mesmo diferente? Carmen Reinhart é uma das muitas economistas convencionais que afiançaram que sim, defendendo, no início da crise de saúde pública: “Este é claramente um momento de ‘tudo o que for preciso’ para políticas orçamentais e monetárias fora da caixa e em grande escala”, ou seja, um momento em que os tesouros nacionais e os bancos centrais têm de garantir, através de estímulos monetários e orçamentais articulados, a despesa necessária para manter e gerar rendimentos (Jornal de Negócios, 28/03/2020). Reinhart foi coautora, em 2010, de um dos estudos que serviram para dar colação pretensamente científica às políticas de austeridade, afiançando que níveis de dívida pública acima de um certo limiar seriam prejudiciais ao crescimento. Este estudo foi refutado através da detecção de erros estatísticos grosseiros e de erros teóricos com implicações de política. De facto, o estudo ignorava as especificidades de Estados com soberania monetária, ou seja, de Estados endividados na sua moeda, controlando as condições de financiamento, incluindo as taxas de juro da dívida, através de uma articulação entre Tesouro e Banco Central. Por exemplo, o Japão, devido à estagnação prolongada, viu a sua dívida crescer todos os anos, estando hoje nos 240% do PIB, mas as suas taxas de juro para a dívida pública a dez anos, por exemplo, são cada vez mais baixas, estando hoje próximo dos 0%.
Neste contexto de crise, o impensável tornou-se momentaneamente inevitável entre os economistas convencionais, incluindo a defesa do financiamento monetário dos défices orçamentais, antes reduzido a experiências como a do Zimbabwe; a operação através da qual o Banco Central credita o Tesouro, financiado assim diretamente a despesa pública, é aceite por muitos economistas e banqueiros centrais. A criação de moeda pelo Banco Central para financiar diretamente despesa é tão simples e decente que, como dizia o economista John Kenneth Galbraith, a mente bloqueia. Se é verdade que esta operação pode deixar um lastro de dívida, em que o Estado deve ao próprio Estado, tal formalismo contabilístico pode ser evitado sem custos. O único limite a este tipo de operações, que prescinde dos mercados, é a inflação, o que, num contexto de pressões deflacionárias, não é definitivamente um problema.
Num contexto de incerteza radical, quando o sector privado adia despesa de forma descoordenada, eliminando os correspondentes rendimentos, só o soberano pode dispor de instrumentos para dominar as forças agora mais obscuras do tempo, dando confiança e pilotando a economia para fora da crise, através da política orçamental. A incerteza avoluma-se nos Estados que perderam meios para o fazer:
Portugal foi colocado na dependência da bondade de estranhos nada generosos, ou seja, na dependência da ação de um banco central estrangeiro chamado Banco Central Europeu (BCE), proibido de financiar diretamente o Tesouro nacional, mesmo num contexto em que as constrangedoras e “estúpidas” regras orçamentais europeias tiveram de ser suspensas.
O BCE só pode comprar títulos de dívida no mercado secundário, ajudando diretamente os bancos e só muito indiretamente os Estados. E daí as discussões penosas na Zona Euro sobre arremedos financeiros, destinados a contornar este problema constitucional, resultado de um desenho anti-keynesiano na sua génese.
Dada que o Euro não favorece uma resposta cabal e duradoura a uma crise sem precedentes, a questão da saída deste arranjo económico-monetário, seja de forma coordenada, seja de forma unilateral, terá de estar de novo em cima da mesa. Um novo escudo teria de pressupor uma religação do Tesouro Nacional ao Banco Central, tal como existiu em Portugal até 1990. Como a experiência internacional sobejamente mostra, os Estados endividados na sua moeda nunca entram em incumprimento, obrigando, por exemplo, a cortes no valor nominal de salários e pensões. Esta religação permitiria o financiamento dos défices orçamentais sem emissão correspondente de dívida sempre que se julgue politicamente necessário, dando outra agilidade ao Estado para efetuar despesa, gerando rendimentos. Religação esta entre o Tesouro e o Banco Central que é condição necessária para que as políticas monetária e orçamental possam voltar a atuar conjuntamente para assegurar o equilíbrio interno, ou seja, o pleno emprego. A política monetária tem de estar subordinada à política orçamental e esta apenas restringida pelos recursos económicos disponíveis.
Num contexto de crise, é urgente ter uma política orçamental capaz de aumentar o consumo e o investimento públicos, com um efeito multiplicador assinalável, mais do que compensando a quebra dos privados.
Para além do constrangimento dos seus recursos, o único constrangimento que uma economia como a portuguesa enfrenta é aquele de natureza externa, sendo necessário cuidar que o saldo do sector externo seja nulo ou próximo disso, impedindo a geração de dívida externa. Isto significa que, grosso modo, o país só pode importar o equivalente em valor do que conseguir exportar. Para gerir este exigente constrangimento e para o compatibilizar com o objetivo do pleno emprego, uma série de instrumentos de política têm de ser controlados pelas autoridades nacionais. Para tais objectivos, uma política cambial adequada e uma política industrial e comercial seletivamente protecionista são essenciais, bem como a existência de apertados controlos de capitais.
Com soberania monetária, é possível ter uma política cambial relativamente autónoma, assegurando uma taxa de câmbio competitiva, elemento fundamental de uma política industrial de construção das capacidades produtivas de uma nação independente. No presente contexto, o equilíbrio externo foi conseguido à custa de uma brutal repressão da procura interna. Alternativamente, a desvalorização cambial permitiria uma alteração dos preços relativos internos e externos, tornando as nossas exportações globalmente mais baratas e as nossas importações globalmente mais caras, incentivando o investimento na produção nacional de bens transacionáveis orientada para os mercados externos e para o nosso mercado interno, atingindo-se o equilíbrio.
A política cambial deve articular-se com uma política industrial e comercial construindo-se, assim, a capacidade de discriminar positivamente, incluindo face à concorrência internacional, aqueles sectores que o país tem boas razões para promover, seja por via da chamada industrialização por substituição de importações, seja por via do apoio seletivo no quadro da designada industrialização por promoção de exportações.
Adicionalmente e não menos importante, se o Estado português quiser ter algum grau de controlo sobre a taxa de câmbio, bem como reforçar o controlo sobre as taxas de juro e sobre o sistema financeiro, garantindo estabilidade financeira, a experiência internacional, passada e presente, indica-nos que a existência de controlos de capitais é absolutamente crucial. De facto, o período de maior tranquilidade financeira da história, entre a Segunda Guerra Mundial e os anos setenta, esteve associado à existência generalizada de controlos nacionais de capitais. Apesar da generalizada liberalização financeira, produtora de um maior número de crises financeiras, dos anos oitenta em diante, a verdade é que hoje em dia muitos países recorrem a controlos de capitais, sejam temporários, como a Islândia, sejam permanentes, como a Índia ou a China. No entanto, na União Europeia (UE), mesmo num contexto de crise pandémica, em que circulação internacional de pessoas foi restringida, o novel, tornado sacrossanto, dogma da liberdade de circulação de capitais não foi posto em causa. Isto quando se sabe que, por exemplo, através de taxas e de restrições quantitativas, é possível a um Estado gerir as entradas e as saídas de capitais no seu território, dissuadindo-se, assim, os desestabilizadores fluxos financeiros de curto prazo, na base da generalidade das crises financeiras, cambiais e/ou bancárias. Com controlos de capitais, em face de taxas de juro adequadas ao ciclo económico mas deliberadamente baixas e de uma política fiscal de taxação redistributiva mais assertiva, diminui fortemente a ameaça de fuga, mais ou menos credível, por parte do capital para outros países, em busca de aplicações mais rentáveis, ou por razões de evasão fiscal.
Com controlos de capitais e com um sector bancário sob controlo de um Banco de Portugal politicamente dependente do Governo, devolvido à condição de verdadeiro prestamista de último e, sempre que adequado, primeiro recurso, estaríamos de novo perante um regime financeiro dito “reprimido”, por oposição a “liberal”, cujas vantagens são óbvias também por causa do endividamento.
Com o suporte popular que tem de construir-se, esta panóplia de instrumentos de política configuraria um regime económico mais resiliente, menos vulnerável, em que o Estado teria capacidades para reconhecer que, numa economia monetária de produção, mesmo em funcionamento normal e com relativo equilíbrio do sector externo, o Estado deve incorrer em défices crónicos para que o sector privado possa manter superávites permanentes. É esta situação, aliás, que cria sustentabilidade no sector privado, dada a especial atenção que neste sector (que não recebe mas paga impostos, não dispõe da possibilidade de monetariamente financiar os seus défices e, por comparação com o Estado, tem de pagar as suas dívidas num tempo curto) tem de se ter à geração de rendimentos suficientes para assegurar a solvência. Numa economia monetária de produção com este desenho político-institucional, enquadrada por um Estado monetariamente soberano, que se endivida na moeda por si controlada, o sector público é diferente do sector privado, não tendo problemas de insolvência, dado que pode sempre pagar as suas dívidas, em última instância (e em primeira, se adequado) através de emissão monetária. Neste contexto, em que o Estado não depende dos mercados financeiros para o seu financiamento, não há qualquer problema em assumir que o défice é uma variável endógena, dependente do comportamento do sector privado. Comportamento este que o Estado deve estimular e controlar, impedindo aí uma poupança líquida negativa que ponha em causa a solvabilidade de famílias e empresas. Contas certas não podem querer então dizer equilíbrio orçamental, o que implicaria saldos financeiros negativos no sector privado e um aumento da sua fragilidade financeira, mas antes um saldo do sector público tão negativo quanto necessário para, simultaneamente, gerar procura suficiente para assegurar pleno emprego e solvabilidade no sector privado. Esse saldo negativo, o défice orçamental, deve ser usado também para induzir uma transformação da estrutura produtiva, indutora de um equilíbrio externo que não dependa da repressão da procura interna, e para aumentar os ativos úteis na economia, tornando-a socialmente mais justa, ambientalmente mais sustentável e tecnologicamente mais capaz, o que obviamente beneficiará as gerações futuras. Se assim não for, ficamos confrontados com a situação atual: por muito que politicamente as taxas de juro desçam e que o BCE tente estimular monetariamente a economia, o sector privado não investe o suficiente, não por falta de crédito da parte dos bancos, mas sim por falta de projetos viáveis num contexto de incerteza. Isto é assim, dada a periclitante evolução da procura agregada na ausência de uma política orçamental expansionista que estimule o sector privado, carregado com uma pesada herança de endividamento, através do consumo e do investimento públicos.
Hoje não há mesmo alternativa que não passe por olhar com realismo para as nossas vulnerabilidades macroeconómicas e para os meios de as debelar. Ou melhor, há alternativas, mas são da idade das trevas do pensamento económico e com os bárbaros efeitos conhecidos.
*Esta é uma versão resumida de um estudo mais amplo que será em breve publicado.
João Rodrigues
(1977)
Professor Auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra