A persistente crise da advocacia
A advocacia e os advogados portugueses estão em crise há anos. Arrasta-se a profissão ao sabor de forças e interesses externos à advocacia, sem que esta conduza o seu próprio destino em harmonia.
Um desses factores, por sinal decisivo, é a transformação social que a classe tem experimentado nos últimos anos e que alguns, maliciosamente, apelidam de “massificação” da profissão. A profissão dita liberal evoluiu com expressões significativas de subordinação e de dependência.
A Ordem dos Advogados, em vez de ser parte da solução, é frequentemente parte do problema sobretudo por omissão.
O desacerto evidenciado entre o pulsar profundo da classe e as opções políticas revelou-se agora mais uma vez no questionamento da Caixa de Previdência dos Advogados e Solicitadores (CPAS) e na exigência de uma protecção social condigna para todos.
Aqui chegados, a classe profissional dos advogados perdeu coesão, malbaratou estatura e desprotegeu-se na convivência e interacção com os demais intervenientes na área da justiça.
Algum esbatimento da identidade da classe, associado à perda de intensidade como profissão de reconhecido interesse público, a que se juntou a incapacidade de acção da Ordem dos Advogados, vem clamando por uma alternativa que tarda em consolidar-se.
Os advogados portugueses precisam de uma Ordem renovada e reposicionada.
A advocacia em transformação
O exercício tradicional da advocacia, dos nossos pais e avós, desapareceu e foi sendo substituído por um modo de exercício cada vez menos homogéneo e mais mercantilizado, fruto de dois movimentos concomitantes que designo de horizontalização social e de verticalização mercantil.
O primeiro movimento decorre da paulatina transformação do modo de exercício da advocacia, profissão dita de elite, em que só alguns podiam e sabiam, detentores de um segredo de bem-fazer não acessível, que colhia prestígio social e reconhecimento, dava acesso a rendimentos elevados garantidos, em ambiente de colegialidade sem fracturas de monta. A profissão tinha uma certa coesão própria de iguais inter pares.
Essa transformação social conduziu a uma situação de vulgarização do exercício da profissão em que afinal quase todos podem e sabem, o segredo de bem-fazer foi dessacralizado, os rendimentos deixaram de estar garantidos, surgindo a concorrência, por vezes desleal, e fracturas internas.
A profissão perdeu coesão, fragmentando-se também em vastos sectores proletarizados (em efectiva subordinação jurídica, não reconhecida e sem direitos).
O movimento da verticalização mercantil teve origem na fusão e na internacionalização de sociedades de advogados, quais grandes “empresas” de venda de serviços que, em grande medida, foram fazendo tábua rasa do acervo de valores que tradicionalmente vinculam a advocacia.
Os atropelos praticados em incontida catadupa a valores estatutários como o segredo profissional, a proibição de publicidade, a reserva de declarações públicas, a independência técnica, o respeito colegial, são cada vez mais frequentemente mimetizados pelos demais advogados na base da pirâmide, generalizando-se linhas de descaracterização e de incoerência de princípios que levam à quebra da reputação social e ao esbatimento do húmus diferenciador de uma profissão de relevante interesse e ordem públicos.
Mas o factor mercantil, ainda em evolução, proveniente da concentração e da estratégia das grandes sociedades de advogados foi mais decisivo. De acordo com um anuário publicado em 2019, apenas onze das maiores 135 sociedades de advogados têm mais de uma centena de advogados, havendo quatro com entre 70 e 100 advogados e quinze sociedades com entre 30 e 70 advogados. De acordo com o mesmo anuário, as maiores dez sociedades de advogados em volume de receita facturaram em 2019 entre 15 e 58,3 milhões de euros, havendo sócios delas que facturaram em média entre 714 mil euros e 2,1 milhões de euros.
Critérios de interesse público cedem muito rapidamente a critérios mercantilistas de tipo empresarial. Esses advogados designam-se jactantemente “managing partner” (uma espécie de novos CEO do mercado) “rising star” (uma espécie de estrela ofuscante dos demais colegas), admitem pessoal “of council” (entrada de não advogados na profissão) e pensam num “cross border de clientela”, aproximando a advocacia de uma indústria de serviços. Será talvez por isso que as grandes consultoras como a Deloitte, Ernst & Young, KPMG, e a Pricewaterhouse Coopers, querendo partilhar o bolo financeiro, fazem hoje lobby internacional, por via da aparente regulação da concorrência, para reduzir a advocacia portuguesa a mera actividade de venda e compra de serviços. Esta evolução representará a prazo a maior ameaça à estrutura e à natureza pública da nossa advocacia.
A desprotecção social dos advogados e a crise associada
A questão da falência da CPAS que neste ano de pandemia se propagou pelas notícias e está ainda a merecer aceso debate, evidencia apenas a ponta do iceberg da crise, sendo expressão, menor, mas da maior relevância, das profundas modificações na classe a que atrás se aludiu. A CPAS que foi fundada nos anos 40 do século passado, com a enganadora designação de caixa de “previdência”, mais não era do que um fundo privativo de pensões, aceitável num tempo em que a protecção social nem sequer existia. Assim se manteve sobrevivendo à consagração na Constituição de 1976 do princípio da universalidade da segurança social. Questionada há cerca de vinte anos, quando outros fundos de pensões análogos foram integrados na Segurança Social, os advogados nunca quiseram abrir mão da sua CPAS, agarrados porventura à ideia de que a uma classe de elite corresponde um regime privativo próprio de pensões. Em suma, foram os interesses classistas (à luz da época e hoje ainda patentes) e sobretudo o receio de perda de direitos adquiridos, que levou ao arrastar de uma situação, a qual evoluiu para um problema incontornável. É sobretudo a massa dos milhares de novos advogados que sustentam a pirâmide onde no topo se encontram os actuais beneficiários do sistema, alguns dos quais com elevadas pensões para as quais descontaram, que exige mudança.
A situação apenas se revela agora insustentável por duas razões estruturantes: nem todos os milhares de advogados da base, contribuintes líquidos, estão a poder pagar as suas contribuições indexadas a rendimentos presumidos em vez de o serem a rendimentos reais; esses milhares de advogados não têm uma protecção social completa porquanto não possuem os direitos generalizados da assistência na saúde, na doença, na parentalidade, no desemprego, etc. Por isso mesmo os advogados ficaram de fora nas medidas excepcionais que o governo propôs em tempo de pandemia, facto que veio pôr a nu a iniquidade da CPAS e a fragilidade da profissão.
Junta-se ao drama de muitos que justamente protestam pela falta de protecção o facto de ainda não estar afastado o espectro da insustentabilidade da CPAS. O risco de insustentabilidade e a falta de resposta da CPAS em tempo de pandemia é causa das maiores preocupações. Os atuais pensionistas, ou em vias de o serem, não podem aceitar mudanças na CPAS e os contribuintes líquidos não podem tolerar uma CPAS sem garantia de direitos assistenciais. Este é o debate e é a luta que pelo menos durante o corrente ano se desenrola.
A questão da CPAS, impotente apesar dos remendos inseridos ao longo dos últimos anos com arremedos assistencialistas, é no entanto apenas uma das expressões da crise, que se manifesta ainda na perda de rendimentos de largas centenas de advogados. Acresce a dependência, que se acentuou, dos rendimentos obtidos através do apoio judiciário, a aniquilação de princípios basilares de colegialidade, a desenfreada concorrência, as contradições da crescente advocacia mercantilista, a transposição para o exercício da profissão das contradições sociais geradas pelas transformações a que se aludiu e alguma erosão de valores que têm expressão final numa certa respeitabilidade social comprometida.
A profissão sempre foi espinhosa e exigente do ponto de vista combativo na defesa de direitos, mas provavelmente nunca como agora foi tão difícil sobreviver na advocacia e da advocacia.
Abertura de uma alternativa
Paralelamente a estas transformações a Ordem dos Advogados tem seguido um rumo dualista: errático por um lado e inamovível pelo outro. A Ordem dos Advogados parou no tempo não se tendo ajustado nem compreendido, ou sequer assumido, as modificações na classe. Há décadas que governa a advocacia portuguesa navegando à vista para salvaguarda dos interesses imediatos próprios de cada Bastonato e das clientelas ou grupos que em cada momento se agrupam à sua volta. A Ordem tem actuado em desacerto com a advocacia real e sem estratégia. Por isso mesmo é também uma Ordem errática.
É contudo uma Associação com atribuições públicas de defesa do Estado de Direito Democrático, supostamente agregadora dos advogados portugueses na sua função de colaboradores activos na administração da justiça. Este ideal está longe de ser cumprido. Na prática, a Ordem não congrega largos milhares de advogados que nela não confiam. A intervenção qualificada e pronta por melhor justiça tem vindo a perder vigor e prestígio.
A Ordem está há décadas capturada por circunstâncias internas que a desviam, quer da missão originária, quer da representatividade da classe que mudou sociologicamente e se fragmentou.
A advocacia está hoje numa encruzilhada, fruto de pressões mercantilistas e de uma economia ultraliberal sem escrúpulos nem princípios.
Por isso, há anos que a Ordem precisa de se reposicionar para congregar os advogados e desempenhar a sua missão pública livre de espartilhos de grupos de interesse. Reposicionar significa ainda colocá-la no centro nevrálgico da efetivação da justiça e das grandes decisões que importam à justiça, com valorização e defesa dos atos próprios dos advogados e ampliação do seu espaço de intervenção obrigatória, com vista à promoção e defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias fundamentais, face à sociedade e aos órgãos do poder.
Para superar tal constrangimento e recentrar a advocacia no seu trilho constitucional, é preciso criar uma forte e credível alternativa à Ordem e à sua governação. Essa alternativa passa pela intervenção lúcida e empenhada dos advogados progressistas e comprometidos com a defesa dos Direitos, Liberdades e Garantias e o Estado de Direito, apostados em resgatar a Ordem do labirinto de interesses para onde tem sido desviada. A Ordem terá sempre o seu espaço próprio, mas se nada fizer surgirão outros a ocupar os espaços que a Ordem já não representa. Um desses espaços é o do trabalho subordinado e sem direitos de milhares de advogados.
É preciso congregar cada vez mais advogados em torno duma alternativa credível, necessária e indispensável para a defesa da advocacia portuguesa e do seu indispensável papel de interesse público.