Nadir, 2020 – a teoria que liberta a acção de pensar a praxis ou a lição em mundo de uma polimatia
«A obra de arte é um espectáculo de plenitude, de exactidão, de absoluto.», Nadir Afonso
nota prévia
A convite da Seara Nova, que se associa às comemorações do centenário do nascimento de Nadir Afonso, temos o privilégio de escrever algumas palavras sobre a vida e a obra nadiriana. Não obstante temos a consciência de que será uma missão quase impossível, por duas principais razões: (1) a arte em geral não se explica ou não se descreve (apenas é possível a sua recepção), e (2) a grande dimensão do testamento estético e artístico de Nadir Afonso não tem correspondência com o reduzido espaço que nos é atribuído para escrevermos sobre a sua obra. Assim, começamos por dizer que as comemorações do centenário do nascimento de Nadir Afonso são, para além de justíssimas, uma excelente oportunidade para dar a conhecer mais e melhor a obra ímpar de Nadir nos séculos XX e XXI, recolocando-o como um dos principais nomes do pensamento estético e artístico português, e dizermos que o seu projecto pioneiro e original correspondeu a um grande sobressalto de arte e de cidadania em Portugal. Então este texto, que não é mais do que um breve apontamento ou sinopse relativamente à vida e obra nadiriana, pretende enunciar não só a relação entre a arquitectura e a pintura, como também a emergência do seu pensamento teórico e estético verdadeiramente singulares. Nadir Afonso acaba por simbolizar e sintetizar ao longo da sua vida duas grandes ideias formuladas no contexto da sua diáspora: a teoria que liberta a acção de pensar a praxis, e a lição em mundo de uma polimatia. Diáspora essa que concede à sua arte, harmonia, proporção, unidade, e simplicidade.
Nadir e o Mundo
Nadir Afonso começa a trabalhar por intuição na arte aos 4 anos de idade (em 1924). E foi justamente com essa idade que fez a sua primeira pintura: desenhou um círculo vermelho na parede da sala – um círculo perfeito. De tal modo perfeito que facilmente se compreenderia este gesto como um vaticínio: a geometria iria interessá-lo durante toda a vida e Nadir elegeria o círculo como a forma perfeita da geometria e repetiria incessantemente que “um ponto central equidistante de todos os pontos periféricos é um espectáculo de exactidão”. Dos 14 aos 18 anos (de 1934 a 1938) Nadir ainda pintava de forma intuitiva. E é a partir do momento em que vai de Chaves para o Porto que toma consciência da necessidade de reflectir o que de diferente existe entre o artístico e o inartístico. Isto é, inicia então uma reflexão, sustentada por uma prática alimentada pelo trabalho das formas, e que o levará a questionar a estética e o papel do esteta. Esta atitude corresponderia a um verdadeiro impulso para a organização de um pensamento que lhe permitisse compreender a produção artística. Pensar a pintura seria também a possibilidade de reconhecer a necessidade do tempo para a fazer. E é neste contexto que Nadir começa a erguer o seu edifício estético. Em 1938, e concluídos os estudos liceais em Chaves, Nadir inscreve-se no curso de arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto. Mas a pintura permaneceria sempre. Com efeito, pintar a cidade do Porto foi o começo do seu trabalho de pintura, isto é, do seu trabalho de trabalhar as formas. Concluído o curso de Arquitectura e com 25 anos de idade, Nadir Afonso parte para Paris, na maior das aventuras. Chegado à capital francesa, e não obstante a cidade encontrar-se devastada pela guerra, restava-lhe uma enorme esperança no sentido de confrontar a sua arte com a arte que se vivia no mundo. Os primeiros tempos de Nadir serão de grande exaltação. Por recomendação de Portinari, Nadir viria a obter uma bolsa do Governo francês, o que lhe permitirá a sua inscrição na École des Beaux-Arts de Paris.
1946 será um ano decisivo para Nadir porque corresponde, justamente, a um primeiro vértice de procura de uma diáspora que pudesse vir a dar sentido ao seu caminho artístico – esse primeiro grande vértice viria a ser Paris (depois do Porto).
Entretanto, e em 1948, Nadir Afonso defende a sua tese de Arquitectura no Porto, com um projecto executado em Paris sob a orientação de Le Corbusier. Tese realizada a propósito da fábrica têxtil Duval, em Saint-Dié, e com um tema polémico – A arquitectura não é uma Arte, gerando grande discussão, pois, ao defender esta tese, Nadir está a propor-nos que a liberdade de criação estará ausente do exercício de arquitectura. Deste modo, a sua profunda convicção acerca do caminho da pintura, como exclusivo caminho de arte[1].
arquitectura+pintura+pensamento=diáspora nadiriana
Na sua diáspora Nadir viverá principalmente em Paris, mas com algumas intermitências. Primeiro com a ida para o Rio de Janeiro e S. Paulo (entre 1951 e 1954) para trabalhar com Oscar Niemeyer, e depois as viagens a Chaves que Nadir fazia a partir de Paris com alguma assiduidade. Na América do Sul Nadir iniciará um período de colaboração com Óscar Niemeyer e recomeça um período de mais de três anos divididos entre o trabalho de arquitectura e o trabalho de pintura. Nadir não ambicionava uma carreira de arquitecto, apesar de ter no Brasil a sua grande oportunidade. Depois desta breve estada no continente sul-americano Nadir regressa a Paris. E virá a fazer parte do grupo da Galeria Denise René, onde expõe alguns dos seus trabalhos em 1956 e 1957, juntamente com Vasarely, Mortensen, Herbin e Bloc, apresentando um Espacillimité mecânico (Máquina Cinética) no Salon des Réalités Nouvelles de 1958. Neste ano Nadir publica, em Paris, La Sensibilité Plastique – ensaio que expressa a génese da sua teoria estética – e onde a geometria é considerada a essência da arte, o que permite desenvolver, noutros trabalhos posteriores, a sua convicção de que “L´art est un spectale d´exactitude”[2]. Em 1974 Nadir Afonso apresenta uma exposição em Nova Iorque, na Selected Artists Galleries, demonstrando não só que a arte portuguesa é passível de ser revelada com sucesso no exterior, como será para o próprio Nadir um momento de confirmação nacional e internacional. A partir de Chaves e do Porto, e depois de Paris e de S. Paulo, surge Nova Iorque, entre muitos outros lugares-cidades para uma diáspora do conhecimento do mundo. O pensamento de Nadir é, por isso, universal, mas também singularmente português.
a teoria que liberta a acção de pensar a praxis…
Se a obra de Nadir é aberta e vasta, concedendo-nos sempre novas e inusitadas perspectivas de abordagem e de relação, a verdade é que Nadir Afonso é certamente maior do que a sua própria obra. E essa dimensão humana e de vida maior é a que decorre de um homem que se configurou permanentemente como um autêntico universalista e até mesmo renascentista. Artista inteiro, arquitecto, pintor, pensador, e filósofo, entre muitas outras disciplinas, encontramos em Nadir a vontade suprema de pensar através da arte o homem em manifestação de transcendência e por via de uma geometrização dos gestos e das formas em sentido diálogo com a natureza: a arte de Nadir é assim a de uma profunda compreensão do homem como centro e medida de todas as coisas. Ao longo da sua vida de artista Nadir Afonso teve a grande qualidade de construir com coerência absoluta uma narrativa pictórica a partir de uma memória que se tornava exaltação, abstracta e solar. Aliás, a sua narrativa, processou-se (para além dos normais períodos) sempre numa relação, assumida, entre figuração e abstracção[3]. Se num primeiro momento a figuração serviu de pretexto para se inventar a abstracção (nos anos 40), num segundo momento a abstracção inventada pelo Espacillimité como que abdicou das referências figurativas (nos anos 50 e 60) e, finalmente, a abstracção que realiza uma viagem inversa, não à pureza das máquinas cinéticas e das composições geométricas, mas sim da recuperação ou reabilitação de universos figurativos (a partir dos anos 70). Por isso, toda a pintura desenvolvida a partir dos anos 70 e 80 tem a pretensão de dar a ver a possibilidade de se fazer coabitar o exercício abstracto com as referências da figuração. Não da figuração inicial relativa a uma matriz de aprendizagem e de teor paisagístico e arquitectónico, mas de uma nova figuração que se instala no interior da própria abstracção, isto é, no interior das próprias cidades nadirianas, como se fosse vital habitar os espaços e as formas geométricas instrutoras de uma matriz de grande invenção em que se associa a construção do lugar como palco com o registo da figura como relação. Deste modo fomentando uma ideia de escala e de narrativa assente num novo paradigma funcional. Por isso, a referência da figuração nunca esteve verdadeiramente ausente, antes culminou uma estratégia de construção da abstracção, e mais tarde de desconstrução dessa mesma abstracção.
… a lição em mundo de uma polimatia
Nadir Afonso viveu a partir de Chaves as cidades da sua vida numa outra cidade imaginária, ou cidade de geometria. Assim, Nadir cumpre um desígnio renascentista: o de ser homo universalis, homem universal ou homem do mundo. Neste desígnio polímata inscreve-se a relação umbilical entre teoria e praxis, daí que o seu pensamento encontra no espírito do lugar de Chaves a identidade inquestionável para a construção da sua obra. O que Nadir vai fazer ao longo da sua obra é a construção de um discurso que, antes de ser absolutamente geométrico, é cognitivo e polímata. Discurso este que se sustenta na acção e experiência da sua diáspora a definição de uma matriz que é transversal e que se reporta às gramáticas mais telúricas do que Nadir possuía em Chaves mas que redescobria (em estado de recepção) ao longo dos vários lugares e cidades do mundo. E, no campo da diáspora, a experiência do Brasil viria a ser mais importante do que a de Paris, pois consolidaria a futura ideia de desistência ou de abandono da arquitectura, não interferindo no movimento da pintura.
Pelo que a prática da arquitectura foi essencial para Nadir realizar uma depuração radical, oficinal e poética na sua pintura.
Com efeito, na pintura inicial de Nadir, a de paisagem, tanto o imaginário como a expressão funcionaram como modo operativo de preparação da arquitectura enquanto prática disciplinar autónoma. Independentemente da arquitectura ou da sua prática, a geometria afirmar-se-ia sempre como caminho de um dizer absoluto e, nessa medida, Nadir Afonso, o artista polímata, assumiu-se como um dos principais actores da modernidade ocidental e europeia. E, dessa maneira, a importação de que pintura e mundo são constitutivos de um mesmo pensamento – o que permite dizer que o essencial da pintura é o essencial do mundo.
Notas: [1] Na obra de arquitectura de Nadir, que decorrerá entre 1946 e 1965, destacamos os seguintes projectos: Fábrica Claude et Duval, Saint-Dié (plano urbano), 1946-51; Unité d´Habitation & Saint-Dié, 1950-51; Colaboração na elaboração do projecto do Parque Ibirapuera, de Oscar Niemeyer, no IV Centenário de S. Paulo, 1954; Concurso para o Monumento ao Infante D. Henrique, Sagres, 1954-55; Estudo morfológico do projecto para o Teatro Rotativo, 1957; Casa na Madalena, Chaves, 1960-61; Plano urbano de Chaves, 1961; Panificadora de Chaves, 1962; Banhos Termais (plano urbano), 1964; e Panificadora de Vila Real, 1965. [2] O pensamento teórico e estético de Nadir é consumado em muitas publicações, de que destacamos, para além da primeira – La Sensibilité Plastique, Presses du Temps Présent, Paris, 1958 –, as seguintes: Les Mécanismes de La Création Artistique, Editions du Griffon, Neuchâtel, 1970; Espacillimié (Catálogo de exposição), Galeria Dois-Alvarez, Porto, 1979; Le Sens de l’Art, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1983; Universo e Pensamento, Livros Horizonte, Lisboa, 2000; Sobre a Vida e sobre a Obra de Van Gogh, Chaves Ferreira Publicações, Lisboa, 2002; Da Intuição Artística ao Raciocínio Estético, Chaves Ferreira Publicações, 2003; Nadir Face a Face com Einstein / Nadir Face to Face with Einstein, Chaves Ferreira Publicações e Fundação Nadir Afonso, Lisboa, 2008; e Manifesto: O tempo não existe, Dinalivro, Lisboa, 2010. [3] A sucessão de períodos artísticos, que se confinam a uma certa especificidade em Nadir, permite-nos compreender, melhor, o processo artístico e a sua evolução e contexto. Essa sucessão é, muitas vezes, natural, não reflectindo uma qualquer deliberação de intencionalidade de ruptura ou mudança. Destacamos, nomeadamente, os seguintes períodos na pintura nadiriana, a saber: pré-geométrico, barroco, egípcio, surrealista, ogival, perspéctico, organicista, antropomórfico, espacillimité, e fractal. Por outro lado, tanto os períodos correspondem a um certo desdobramento da natureza particular do projecto nadiriano, como os mesmos períodos traduzem enfoques variados de sentido matricial, quer da obra artística, quer da reflexão estética.
António Quadros Ferreira
(1950)
Professor Emérito da Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, I2ADS – Instituto de Investigação em Arte, Investigação e Sociedade