Regresso à poesia: Para a sobrevivência da educação

Em Janeiro de 2014, no Centro Cultural de Belém, sob o patrocínio do então presidente, o poeta e ensaísta Vasco Graça Moura, representado, nessa ocasião, por Guilherme d’Oliveira Martins e Eduardo Marçal Grilo, realizou-se o encontro, primeiro e único, «A Urgência da Literatura». Com a participação, entre outros, de Helena Buescu (coordenadora desse encontro), eu próprio (igualmente responsável pela coordenação), Manuel Alberto Valente, José Jorge Letria, Maria Alzira Seixo, Elisa Costa Pinto, Fernando Pinto do Amaral, Mário de Carvalho, Teolinda Gersão, entre muitos outros empenhados homens e mulheres da cultura, o que se pretendia? Pensar o estado actual do ensino das Humanidades, com especial atenção para o caso da literatura.

O então Ministro da Educação, Nuno Crato, homem de ciências, teve a lucidez de recordar, na sua intervenção, um facto simples: que nenhum cientista, ou economista, ou médico, ou informático, ou engenheiro é competente, sensível ao humano, se despreza a literatura, a filosofia e as artes. Se não aprecia uma página de Eça de Queirós, um poema de Torga, uma peça de Gil Vicente; se não tem em si a centelha da curiosidade incomodada que o faz seguir a partitura de uma composição de Fauré, as linhas invisíveis da melopeia de um Yeats; se, em face dum quadro de Gaugin a sua imaginação não se expande – eis um técnico, no pior sentido da palavra – não um homem de ciência, ou seja, de saber. E de saber verdadeiro porque sentido, vivido, «atento como uma antena», para um lembrar um verso penetrante de Sophia.

Desfiaram-se argumentos vários, fossem eles sobre a importância de defender o livro da enxurrada tecnológica, e por essa via, considerá-lo na sua sobriedade e clássica presença numa sociedade cada vez mais rendida às luzes impuras do paradigma tecno-científico, fossem argumentos de natureza mais sincrética, apelando à harmonia entre o avanço imparável do online e a necessária convivência com esse emblema da Memória, o Livro.

Hoje, quase seis anos depois, a situação do ensino da literatura e, grosso modo, do Português – e de forma candente, da poesia – não se alterou. Permanecem dificuldades várias: da compreensão de enunciados complexos em situação de avaliação, à insensibilidade com que, não raro, os alunos brindam (e muitos professores, diga-se) o património que é seu e lhes pertence.

Se tivermos a preocupação de folhear os actuais manuais escolares, a presença de textos literários nas aulas de português poderá parecer-nos, hoje, mais evidente, mas não é evidente que a sua leccionação seja efectiva. Ninguém duvida do esforço por fazer integrar em nove meses de leccionação currículos literários e não literários vastíssimos, mas toma-se a nuvem por Juno.

Não podemos fingir que não vemos o que se passa: o professor de Português está hoje refém de uma terminologia linguística que confunde mais do que esclarece (a TLEBS). Esquecido da magia inicial dos seus primeiros anos de docência; esmagado por um aparelho burocrático que funcionalizou a sua profissão e o condena a ter de passar na escola horas e horas infindáveis em não menos infindáveis reuniões, como pode ele ser o investigador vivo que leva para as aulas a energia do pensamento?

Dentro da camisa-de-forças em que o puseram, a escola actual não lhe permite, pois, o essencial para ensinar bem e com gosto: tempo e liberdade.

E – acrescento – disponibilidade financeira para comprar e ler livros, jornais, consultar arquivos – tudo o que poderia dar sentido à profissão docente.

Com efeito, esquece-se, na escola de hoje, por imitação do pensamento gestor, por provincianismo feroz (continuamos a querer impôr à classe docente modelos empresariais de escola que, sabe-se, falharam noutras latitudes), uma frase de Voltaire: «Na escola a questão não é ganhar tempo, mas perdê-lo.»

Creio que para combater essa concepção instrumental e empresarial do ensino do Português, cabe à literatura em geral e à poesia, em particular, um papel relevantíssimo. Quando a sociedade tecnológica, dos tablets, dos iPhones, do Instagram, do Facebook, do Whatsapp, das redes sociais, rodeia crianças e adolescentes, que armas tem a escola para combater a alienação que grassa? As armas que a definiram como lugar da cultura e da permanência das Letras.[1]

Compreende-se que é justamente a sociedade da rapidez facilitista, assente na parafernália tecnológica, uma das causas mais fortes para a brutalização da vida nas escolas? Há aqui um dado a ter em conta: a cultura popular, isto é, os seus meios ideológicos de actuação igualmente comprometem faculdades mentais que, até há uns anos (creio que a minha geração, mas não toda, terá sido a última a saber estudar em silêncio e a concentrar-se no acto da leitura…) não estavam tão em risco. Uma dessas faculdades é a imaginação.[2] Pois bem, a fruição da literatura não existe quando, ao cabo de dez ou doze anos de escola, os alunos foram amestrados num ensino concentrado em exercícios mecânicos, meramente instrumentais, de gramática. Um ensino que não os ensinou a pensar e a imaginar. Quando terminados os estudos secundários permanecem erros de raciocínio, erros ortográficos, a ilogicidade frequente na sintaxe, eis a prova das deficiências deste paradigma tecnocrata em que o Ocidente se vê atolado.

Num ensaio hoje inserto no volume Na Senda da Poesia (União Gráfica, Lisboa, 1969, também disponível, em reedição, na editora Assírio & Alvim), Ruy Belo fazia já o diagnóstico certeiro sobre as razões da pobreza no que tange ao ensino do Português e do que é a Poesia. Destaco cinco ideias desse ensaio. Todas elas, como se verá, deveriam ser conhecidas por parte de quem ensina.

A primeira ideia é a de que a poesia «é só uma», isto é, no momento em que é escrita não há caminhos feitos. Por isso diz Ruy Belo, na senda de T. S. Eliot, que todo o poeta que faz uma obra válida «modifica a poesia do passado» e é essa uma das condições básicas para a fruição da poesia – no acto de ler um poeta moderno ou contemporâneo, há que ver de que modo ele alterou a poesia anterior a si. Por esse motivo é que Ruy Belo diz ser fundamental «passar uma vista de olhos pelas Líricas Portuguesas, 3ª série, como introdução a Camões» (Belo, 1969:133). Tal me parece ser uma das «estratégias» mais interessantes para, ao leccionar-se Camões ou outro qualquer autor, haver uma certa eficácia e gosto. Nada impede que a poesia do grande Quinhentista não possa ser lida a partir, por exemplo, dum poema de um autor que esteja compilado naquela já histórica edição das Líricas Portuguesas, organizada por Jorge de Sena.

Se virmos bem, a poesia de um Eugénio de Andrade, por exemplo, dialoga de perto com a linguagem camoniana, já em algumas imagens (lembro-me do soneto «Onde vais, rio que cantei…»), já em alguns tópicos clássicos que o autor de Limiar dos Pássaros igualmente trabalha: o amor sensual e a dialéctica erótica, ancorada na tríade memória-encontro-desencontro; a passagem do tempo sob o signo da melancolia e a revelação do mundo íntimo pela projecção de paisagens naturais que espelham esse mesmo mundo. Carlos de Oliveira, já agora, também é dos poetas contemporâneos que poderia, sem esforço, motivar os alunos para a leitura do Lírico das Rythmas. Um exercício interessante seria, em clave comparatista, deslindar os modos como, na sequência Camões-Aragon-Carlos de Oliveira, o soneto «Que me quereis perpétuas saudades». Colagem, citação, palimpsesto, comentário, nesses três sonetos encontramos eixos de sentidos enriquecedores e que, estou certo, presentificam Camões, autor normalmente considerado afastado do universo referencial dos nossos estudantes. Esse caminho comparatista é a segunda ideia do argumentário do autor de Transporte no Tempo.

Uma terceira ideia-chave é a que se relaciona com a importância dos recitais de poesia. Na escola, bem como na universidade, houve o hábito – e creio que há ainda – de organizar grupos de crianças e jovens para declamar poemas. Se a poesia escrita modifica a poesia, a poesia lida faz o mesmo. Ruy Belo lembra os recitais organizados por Gastão Cruz nos anos 60 e sublinha o facto de, nesses recitais, os textos de autores clássicos, ditos em voz alta, sobriamente ditos, claro, irromperem em toda a força da sua espessura. Associando a essas leituras o papel divulgador e analítico da crítica literária, Ruy Belo tem o cuidado de esclarecer que os críticos de poesia devem ser lidos por quem ensina e por quem recebe lições.[3]

Há, no âmago da argumentação de Ruy Belo no ensaio que venho recordando, um espinhoso contraponto: saber se nas selectas escolares estará a melhor poesia. A esta pergunta duas outras se somam: «E será possível ensinar a poesia?», «E não haverá uma poesia didáctica?» Quanto à questão de saber se é a melhor poesia aquela que está nos manuais, compete ao próprio professor saber se, depois de feito o levantamento dos poemas reunidos no manual adoptado, não há outros mais relevantes que devam ser levados para a sala de aula. A representatividade de textos canónicos dos mais diversos poetas não é uma preocupação dos que elaboram os manuais e, não raro, independentemente da chancela editorial que os publique, são quase sempre os mesmos poemas que, ao longo de anos, aparecem para dar a ver a poesia de Torga, ou a de Sophia, a de O’Neill ou a de Jorge de Sena[4]

As quarta e quinta ideias de Ruy Belo são, a meu ver, igualmente correctas para a nossa época.

É urgente dar a ler «os verdadeiros poetas», ou seja, aqueles que fizeram avançar as revoluções operadas na linguagem.

Por último, importa dar aos alunos textos que transportem quem aprende para um universo de valores. De facto, «há obras que são obras de confiança no homem». Mesmo os males humanos, é bom que a poesia os dê a conhecer, precisamente para combater o infantilismo generalizado.

Notas:
[1] Remeto os leitores para o ensaio incontornável de Maria Alzira Seixo, «Literatura e Ensino», publicado no volume Presente e Futuro: a Urgência da Literatura, edição do Centro Cultural de Belém, Lisboa, 2014, pp. 65-77. Aí se defende que, como área transdisciplinar, a Literatura permite à criança e aos jovens, compreender um sem-número de realidades, actuando em diversos planos da formação integral – da educação estética à educação política, da educação retórica à educação espacial-geográfica; da educação para o ambiente.
[2] Lamberto Maffei, O Elogio da Lentidão, ed. 70, Lisboa, 2019.
[3] Poderemos, em rigor, motivar, prender a atenção dos nossos alunos se nada soubermos sobre o ensaísmo especializado? Não pode a interpretação de Camões feita por Jacinto do Prado Coelho (o seminal estudo «Camões – Poeta do Desengano», 1960) auxiliar o professor para uma melhor apreensão do universo poético do nosso Poeta? Um ensaio de Gastão Cruz sobre o funcionamento da metáfora em Eugénio de Andrade – não é essa uma porta que pode abrir a inteligência dos alunos à fruição completa da sua obra?
[4]«Viagem»; «As pessoas sensíveis», «Um Adeus Português», «Carta aos meus filhos sobre os fuzilamentos de Goya», eis os poemas mais recorrentemente dados... E onde um poema como «Arte Poética II», de Sophia, ou a «Arte Poética IV», da mesma autora? Onde um poema como «Em Creta com o Minotauro», ou o camoniano «Ao desconcerto humanamente aberto», ou um dos poemas de Metamorfoses, de Sena (sem que seja «O baloiço de Fragonard», que, quando se lembram, lá aparece neste ou naquele manual....). Onde, de Torga, alguns dos seus melhores poemas postos dentro do seu prodigioso Diário?