De Srebrenica a Knin: MANIPULAR A MEMÓRIA, REESCREVER A HISTÓRIA
11 de Julho. Pontualmente, rigorosamente, os media repetem o mesmo ritual. “Oito mil muçulmanos massacrados pelas forças sérvias!” – “O mais terrível massacre desde a segunda guerra mundial!” – “Genocídio!”
Um quarto de século depois, as televisões continuam a repetir as mesmas fórmulas, as mesmas imagens, os mesmos soundbites, para evocar a tragédia de Srebrenica. Ignorando sem pestanejar os novos dados, testemunhos e documentação entretanto vinda a lume, e que põem frontalmente em causa a versão “oficial” dos acontecimentos.
Menos de um mês depois, outra data marcante das guerras balcânicas dos anos 1990 – o assalto croata à Krajina, que resultou na morte ou expulsão de 150 a 200 mil sérvios do território -, passou completamente ignorado pelos media. Na altura, início de Agosto de 1995, as imagens de refugiados em fuga encheram os telejornais durante uns breves dias. Mas a Krajina seria rapidamente esquecida.
A tragédia de Srebrenica continua a alimentar ódios e paixões, mas, vinte e cinco anos depois, muitos detalhes desse episódio crucial da guerra na Bósnia continuam por esclarecer.
Srebrenica, um enclave muçulmano no Leste da Bósnia, foi tomado de assalto pelas forças sérvias no dia 11 de Julho de 1995. Na sequência do ataque desapareceram milhares de muçulmanos e as sirenes dispararam nos media e nas instâncias políticas.
Ajuste de contas
O episódio de Srebrenica inscreve-se na trama sangrenta da guerra entre sérvios e muçulmanos no Leste da Bósnia. O estatuto de “zona de segurança”, sob protecção especial das Nações Unidas e da NATO, atribuído a Srebrenica em Abril de 1993, não dissuadiu as tropas muçulmanas do enclave de lançarem sucessivos raides na área. Sob o comando de Naser Oric, as forças muçulmanas de Srebrenica lançaram, entre 1992 e 1994, uma vaga de ataques contra as povoações sérvias circundantes, destruindo dezenas de aldeias e matando ou expulsando milhares de civis.
Soldados sérvios juraram diante dos jornalistas que, se algum dia entrassem em Srebrenica, o ajuste de contas seria implacável. Acusado de crimes de guerra, Naser Oric, seria entretanto absolvido pelo Tribunal de Haia por “escassez de provas” – quando o próprio Oric não se coibiu de exibir cabeças cortadas de prisioneiros e outros troféus de guerra perante a imprensa internacional -, num processo que gerou uma vaga de indignação na Sérvia.
Ocupada Srebrenica, os sérvios separaram os homens em idade militar das mulheres, crianças e idosos, e levaram-nos para local desconhecido. O IRCR falou de cerca de 8000 mortos. O número, na altura um cálculo muito apriorístico, foi de imediato assumido pelos media.
Os números adoptados pela narrativa política e jornalística nunca foram atestados pelas diversas investigações internacionais. Confundiam, por outro lado, execuções de prisioneiros de guerra, baixas muçulmanas nos combates em torno do enclave, e mesmo incidentes entre as próprias unidades do ABiH (Exército muçulmano). Cerca de três mil nomes inscritos na lista de desparecidos de Srebrenica surgiram depois nos cadernos eleitorais para as eleições de 1996. Mas os “oito mil” massacrados pelos sérvios instalou-se, definitivo e inapelável, no discurso político e mediático.
As agências internacionais tinham entretanto já transformado o “massacre” em “genocídio”. A execução sumária de soldados muçulmanos constituiu um gravíssimo crime de guerra. Mas falar de “genocídio” numa situação em que os sérvios abriram corredores que permitiram a evacuação de 17 mil mulheres, crianças e idosos só faz sentido na linguagem da pura propaganda.
Jogo combinado
As circunstâncias da queda do enclave estão rodeadas de detalhes intrigantes. As forças muçulmanas não opuseram praticamente qualquer resistência ao ataque sérvio. Ao mesmo tempo, desde 1993 corriam à boca cheia entre a população do enclave rumores sobre uma “negociata” entre as lideranças sérvias e muçulmanas para uma troca de territórios – Srebrenica por Vogosca, um subúrbio sérvio de Sarajevo, com o presumido beneplácito dos países ocidentais.
O general Philippe Morrilon, na altura comandante dos “capacetes azuis” na Bósnia, diria mais tarde que Ratko Mladic, líder das forças sérvias tinha caído numa armadilha estendida por Sarajevo, reforçando assim suspeitas de que o presidente muçulmano Alija Izetbegovic teria apostado em capitalizar politicamente a queda do enclave.
Srebrenica constitui, um ponto de viragem no conflito da Bósnia. Foi o argumento que levou os países da NATO a assumir, agora abertamente, o apoio político e militar às forças croatas e muçulmanas.
Semanas mais tarde, a 28 de Agosto, o bombardeamento do mercado Markale-2, em Sarajevo, foi prontamente assacado por americanos e britânicos às forças sérvias que sitiavam a cidade, ignorando os apelos à prudência dos observadores militares da ONU. O episódio justificou uma vaga de bombardeamentos da NATO contra as posições sérvias que alteraram decisivamente a correlação de forças e levariam aos acordos de Dayton.
O regresso dos ustasa
Ao mesmo tempo que, semanas depois dos acontecimentos de Srebrenica, Madeleine Albright agitava freneticamente aos media ocidentais fotografias aéreas de alegadas “valas comuns” como “prova” dos crimes sérvios, o Exército croata, com o apoio directo dos Estados Unidos e da NATO, devastava a Krajina sérvia.
A “limpeza” da Krajina começara quatro anos antes. Ao proclamar a independência e precipitar a dissolução da Jugoslávia, em Junho de 1991, a Croácia de Franjo Tudjman não hesitou em assumir abertamente a herança do estado ustasa, o NDH (Estado Independente da Croácia), proclamado, sob o patrocínio dos ocupantes Nazis, em Abril de 1941.
Durante quatro anos, e sob o comando do poglavnik (comandante) Ante Pavelic, os ustasa apostaram em exterminar sérvios, judeus e ciganos – ou seja, em consumar a versão croata da “solução final”. Um a dois milhões de sérvios foram mortos pelos ustasa com métodos de uma crueldade que chocou os próprios oficiais nazis.
A Croácia independente adoptou os mesmos símbolos nacionais e a moeda do NDH, e as unidades militares e paramilitares croatas adoptaram os mesmos uniformes das Legiões Negras de Pavelic. Antigos ustasa exilados no estrangeiro regressaram e assumiram postos políticos e militares de responsabilidade e o próprio Ante Pavelic seria reabilitado e celebrado como um herói.
A Croácia assumiu sobretudo os objectivos estratégicos e, como em breve se veria, os métodos do regime de Pavelic. O objectivo de Tudjman era reconstruir fronteiras do estado ustasa (a Grande Croácia) incluindo a Bósnia-Herzegovina e mesmo um pedaço da Sérvia.
A identificação da Croácia de Tudjman com o regime pró-nazi dos ustasa em nada impressionou os líderes ocidentais. Sob pressão da Alemanha, a Europa reconheceu a Croácia nas fronteiras traçadas por Tito em 1945, e que integraram a Krajina na Croácia.
Face às provocações e às ameaças de Tudjman, e incentivados pelo líder sérvio Slobodan Milosevic, os sérvios da Krajina realizaram um referendo e proclamaram a independência do território, em Agosto de 1991.
A Croácia iniciou desde logo uma forte pressão militar sobre a Krajina. Ao mesmo tempo, e a partir de 1992, o exército croata actua abertamente no conflito da Bósnia, em desafio das resoluções da ONU que proibiam a presença de tropas estrangeiras no conflito. Sob a orientação dos conselheiros americanos, as forças croatas avançaram rapidamente para Norte, completando o cerco à Krajina pelo lado da Bósnia.
Desde a Primavera de 1995 Zagreb não escondia a preparação de um ataque em larga escala. Sentindo-se completamente abandonados, os líderes da Krajina tentaram ainda recuar e agitar a bandeira branca. Não houve qualquer movimento diplomático, nem dos EUA nem dos países europeus, para aproveitar a oportunidade e evitar o ataque croata.
Fardas americanas
De um lado, um exército profissional de 170 mil homens, organizado e treinado e equipado pelos Estados Unidos e equipado com o mais moderno equipamento fornecido pela Alemanha e pelos EUA. Do outro, o Exército da Krajina, um efectivo que, entre forças militares propriamente ditas, milícias e população armada, rondaria os 30-35 mil homens, mal treinados, mal equipados, mal alimentados e com recursos militares muito reduzidos.
Franjo Tudjman estava tanto mais à vontade quanto Milosevic deu a croatas e americanos todas as garantias de facto de que o Exército da Sérvia não interviria. O ataque croata violava os acordos internacionais e a missão de paz da ONU na Krajina, mas Zagreb contava com um forte apoio americano e europeu, em particular da Alemanha.
Mais do que apoiarem, os EUA tiveram um envolvimento crucial na Operação Oluja (Tempestade). O Pentágono treinava e equipava as forças croatas desde Setembro de 1994 através da Military Professional Ressources (MPRI) e a luz verde para a operação veio da Casa Branca. Viram-se soldados croatas com fardas americanas e alemãs e equipamentos de comunicação americanos.
As imagens de satélite do Pentágono americano forneceram aos comandantes croatas informações detalhadas sobre as posições e os movimentos dos sérvios. Aviões americanos destruíram electronicamente as comunicações sérvias e atacaram as baterias antiaéreas perto de Knin, garantindo rédea livre aos ataques extensivos dos aviões croatas contra as posições sérvias – e contra também colunas de refugiados em fuga.
As defesas sérvias cederam perante o ataque massivo. Com a queda de Knin, no dia 6, a resistência da Krajina desmoronou-se.
Um lugar na Europa
Ocupado o território, o exército croata levou a cabo uma operação de extermínio sistemático da população sérvia que não conseguiu fugir. O exército e unidades especiais da polícia croata saquearam aldeias sérvias abandonadas e deitaram fogo às casas deixando muitas vezes como “assinatura” graffiti com símbolos nazis nas paredes. A matança prosseguiu durante várias semanas depois da queda da Krajina. Patrulhas da ONU descobriram muitas sepulturas frescas e cadáveres com uma bala na nuca, outros degolados, mutilados ou decapitados.
A atuação do exército e das forças croatas seguiam fielmente as instruções dadas por Franjo Tudjman aos seus generais, numa reunião uma semana antes da Operação Oluja. Ainda assim, o líder croata nunca foi incomodado pela justiça internacional. O general Gotovina, que comandou a Operação Oluja, chegou a ser condenado pelo TPIJ, mas para ser logo a seguir ilibado.
Cumpria-se assim no fundamental, pela mão e com o patrocínio da Alemanha e dos EUA, a “solução total” perseguida pelos ustasa, e que o NDH não conseguiu completar em 1941. Pavelic e o velho Adolfo devem ter dado boas gargalhadas no túmulo…
Consumava-se assim um genocídio no mais pleno sentido do conceito. Em contraste com o festim mediático em torno de Srebrenica, os media ocidentais cobriram os acontecimentos da Krajina com alguma circunspecção, falando vagamente de “limpeza étnica”.
A Croácia seria prontamente recompensada com a pronta integração na NATO e na União Europeia, auto-proclamado baluarte dos mais altos “valores”.
Reabilitar o nazismo
As datas representam marcos na memória dos acontecimentos históricos. O tratamento mediático destas duas datas diz muito sobre o funcionamento dos media e sobre os processos de formação da opinião pública e da memória colectiva.
O discurso mediático e político sobre estes momentos cruciais dos conflitos balcânicos dos anos 1990 – os sangrentos ajustes de contas de Srebrenica e a erradicação da Krajina sérvia – conformam, em rigor, uma operação dupla.
Por um lado, uma metódica operação de manipulação da memória conduzida sob a batuta de grandes agências de comunicação americanas como a Rudder & Finn e outras com a subserviente cumplicidade dos media ocidentais. A história dos conflitos da ex-Jugoslávia que fica gravada nas memórias e na opinião pública é a dos media, das proclamações dos governos de Washington, Londres ou Berlim, e das sentenças dos juízes de Haia. Os sérvios são definitivamente estigmatizados como “genocidas”, a Croácia tem lugar garantido entre os eleitos do mundo “civilizado” e das democracias liberais.
E, ao mesmo tempo, uma profunda revisão da História. Os media conseguiram colocar os que resistiram ao nazismo no papel de carrascos e operar uma reabilitação de facto dos crimes cometidos por Hitler e pelos seus satélites nos Balcãs. A polémica entre historiadores em torno das responsabilidades dos diversos países na eclosão da II Guerra mundial, e as teses que equiparam o nazismo e o comunismo dão o mote.
Curiosamente, os que nas Academias, nos meios políticos e noutros fora tanto clamam contra o “revisionismo histórico” e tantos alertas gritam contra a crescente influência da extrema-direita e das correntes neonazis, se mantenham – ressalvadas algumas vozes silenciadas pelo grande consenso – tão aparentemente indiferentes a essas operações.