Mulheres, igualdade, justiça e paz: as lutas de Maria Lamas

Foi já no século XXI que conheci Maria Lamas, uma mulher que nasceu em finais do século XIX e atravessou o século XX sem nunca se ter resignado ao papel que lhe era atribuído pela sociedade, pelos tempos, pelos homens.

Lutou contra a ditadura, pela paz, pela democracia, pela liberdade, pela igualdade, pela justiça, pelos direitos das mulheres e pelo direito à felicidade, conheceu os calabouços da PIDE e a prisão de Caxias e foi obrigada ao exílio em França durante a década de sessenta.

“Conversei” muito com ela através do seu imenso livro As Mulheres do Meu País (1948-1950), em que traçou um retrato minucioso da condição da mulher no Portugal dos anos 1940 e que é uma exortação à união e à luta destas por uma vida mais digna, livre, esclarecida e em pé de igualdade com o homem.

O livro, monumental reportagem-documentário, sem par até hoje, mais de 70 anos passados sobre a conclusão do seu empreendimento, como conta a sua neta Maria José Metello de Seixas no prefácio à segunda edição, foi a resposta da autora ao governador civil de Lisboa que mandou encerrar o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas – a que Maria Lamas presidia e ao qual tinha dado um dinamismo inconveniente – alegando que esta não deveria ter tanto trabalho nem preocupar-se tanto com a situação das mulheres, a quem o Conselho Nacional não era necessário, uma vez que o “Estado Novo” confiava à Obra das Mães o encargo de as «educar e orientar». «A esta afronta feita à cidadã respondeu a jornalista: iria verificar e depois informaria.»

A informação veio em fascículos mensais, num total de 15, tendo Maria Lamas percorrido o país de norte a sul, do litoral ao interior e ilhas, indo aos lugares mais recônditos, para saber como vivia a mulher portuguesa do seu tempo. Quais os seus sonhos, aspirações, pensamentos, sentimentos, destinos.

A realidade com que se deparou era dura. A camponesa deteve-lhe a atenção. Dedica-lhe mais de trezentas páginas e dela diz, em jeito de conclusão: «Não nos iludamos com a animação das romarias ou com o esplendor da mocidade que canta, ri e parece desafiar a própria vida, na hora culminante e fugaz do seu desabrochar. Cada uma dessas jovens se transformará em mulher que apenas trabalha e procria, sem outro horizonte, sem estímulo nem esperança, fechando-se mais e mais no desamparo e amargura da sua servidão. O seu trabalho, tanto ou mais rendoso do que o do homem, tem remuneração muito inferior. A sua submissão ao marido vai ao ponto de se deixar espancar por ele sem reagir. A falta de gosto e consideração pela sua pessoa, juntamente com as privações e fadiga de todas as horas, leva-a ao abandono de si própria, logo que casa e lhe nasce o primeiro filho.»

Um destino não muito diferente do da «mulher do mar» ou da «operária», embora em relação a esta última Maria Lamas tenha verificado já existir, em algumas, uma sólida consciência social. Entre a classe média e alta, «doméstica» continuava a ser a principal ocupação feminina, apesar de já serem muitas (ao tempo) as mulheres que – nas cidades – trabalhavam fora de casa. Das populares lavadeiras, vendedeiras, costureiras e criadas de servir às enfermeiras, hospedeiras, telefonistas, dactilógrafas, secretárias, assistentes sociais e professoras primárias, passando pelas mais raras, médicas, advogadas, engenheiras ou arquitetas, entre muitas outras profissões em que as mulheres começavam a entrar aos poucos, de todas elas nos dá nota Maria Lamas para concluir que «a vida profissional concorre muito para despertar a consciência da mulher, quanto ao seu dever de partilhar a vida geral e procurar valorizar-se moral, social e intelectualmente.»

Foi esse o caminho que traçou desde cedo para si e que só descobri depois de ter descoberto as “Mulheres do Meu País”.

Nascida em Torres Novas, a 6 de outubro de 1893, em berço privilegiado e esclarecido, sob a influência cruzada de pai republicano e maçon e mãe católica, casa-se aos 17 anos com o oficial republicano Teófilo Ribeiro da Fonseca, a quem acompanha, grávida, em missão a África. Quando o casamento acaba, ao contrário do que era suposto à época, luta pelo direito a divorciar-se, o que consegue, em 1920. Sozinha, com duas filhas pequenas a cargo, faz-se jornalista, uma das primeiras mulheres a sê-lo, em Portugal. Na Agência Americana de Notícias, dirigida por outra pioneira, Virgínia Quaresma, dá os primeiros passos na profissão. Na Lisboa dos anos 1920 e no meio jornalístico conhece aquele que viria a ser o seu segundo marido, também jornalista, Alfredo da Cunha Lamas, monárquico e católico, que lhe dá a terceira filha e o apelido que manteve até ao fim da vida, apesar de o casamento, atribulado, ter durado pouco.

Divorciada pela segunda vez, não volta a casar. O seu compromisso passa a ser com as letras e com a luta pelos direitos das mulheres, primeiro, e pela paz, a liberdade e a democracia depois.

Escreve poesia, romances, novelas, folhetins, literatura infantil e juvenil, traduz Yourcenar, entre outros, mas é no jornalismo que mais se distingue, primeiro como jornalista da revista Civilização, de Ferreira de Castro, onde criou o “Reino dos Miúdos”, e finalmente como diretora da revista Modas & Bordados, suplemento feminino do jornal O Século, lugar que assume, em 1929, a convite do mesmo Ferreira de Castro e que nas suas mãos (durante cerca de duas décadas) deixa de ser uma publicação de lavores para mulheres e se transforma numa revista de mulheres, sobre mulheres e a sua condição, como o sub-título que lhe acrescenta – “Vida Feminina” – indica.

Em 1930, organiza o “Certame da Mulher Portuguesa – Exposição da Obra Feminina, antiga e moderna, de carácter literário, artístico e científico”, que durante dois meses ocupa onze salas do jornal O Século, com grande êxito, o que lhe valerá ser condecorada com o grau de oficial da Ordem de Santiago em 1934.

Intrépida, irrequieta e obstinada, faz de Modas & Bordados um sucesso editorial, onde as mulheres encontram uma voz que as valoriza e exorta à emancipação e em que se destaca o suplemento Joaninha, para jovens mulheres que procuram sobretudo os conselhos da “Tia Filomena”.

Meses depois da sua eleição, em 1945, como Presidente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, criado em 1914 pela médica obstetra Adelaide Cabete, ao qual, como era a sua marca, deu um dinamismo ímpar (e incómodo) é forçada a escolher entre este cargo e a direção da Modas & Bordados. Não cedendo à chantagem, é despedida da revista, mas não se rende.

Em 1947, realiza a grande e inédita Exposição de Livros Escritos por Mulheres – milhares de livros de milhares de autoras de todo o mundo – na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Uma semana depois, a exposição é encerrada pela censura e o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas proibido pela ditadura.

“Proíbem-me e eu incandesço”, dizia Maria Teresa Horta, outra Maria. A Lamas aconteceria o mesmo, adivinhamos. Àquelas proibições, a resposta de Maria Lamas foi monumental. Primeiro, com “Mulheres do Meu País” (1948 – 1950), depois com “A Mulher no Mundo” (1952), sempre com a sua intervenção cívica e participação ativa nas causas por que se batia, cá dentro e lá fora.

Cada vez mais envolvida politicamente na oposição à ditadura e na luta pelos direitos das mulheres e pela paz, a sua intervenção estende-se além fronteiras. Participa no Congresso fundador da Federação Democrática Internacional de Mulheres (FDIM), em 1946, e é eleita para o Conselho Mundial da Paz em 1954. Representa inúmeras vezes as mulheres portuguesas nos Congressos da FDIM realizados no estrangeiro, em Congressos Mundiais de Mulheres e ainda nos Congressos Mundiais da Paz. Mais tarde será fundadora do Movimento Democrático de Mulheres (MDM), em 1968.

Internamente, milita no Movimento Democrático Nacional (MDN) e no MUD Juvenil, tendo participado ativamente na Campanha do General Norton de Matos à Presidência.

Por não se render, Maria Lamas torna-se um alvo para a polícia política. Presa por três vezes, a primeira das quais em 1949, durante seis meses, acaba por partir para o exílio em Paris, onde está em Maio de 1968, assistindo entusiasmada, da janela do seu quarto de hotel, no Quartier Latin, às manifestações e ao desenrolar dos acontecimentos que ali se vivem. Quarto que durante os anos de exílio foi um ponto de encontro, e apoio, a todos aqueles que se opunham à ditadura em Portugal.

Regressa ao país, em 1969, a tempo de ver a poesia sair à rua num dia assim como o da madrugada inteira e limpa de 25 de abril de 1974 e de ver revogado o artigo 5º da Constituição da República do Estado Novo que dizia que todos os cidadãos eram iguais perante a lei, «salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família», assim como o Código Civil, em vigor até 1975, que estipulava que os homens eram os chefes de família, cabendo às mulheres o governo doméstico, habilitando-os a dispor do salário delas, a proibi-las de trabalhar fora de casa ou a rescindir-lhes o contrato. Regressa ao país a tempo de ver algumas das suas lutas cumpridas, mas não todas.

Depois do 25 de Abril de 1974, adere ao Partido Comunista Português, é eleita Presidente Honorária do Movimento Democrático das Mulheres, torna-se diretora Honorária da Revista Modas & Bordados e da Revista Mulheres, em 1980 recebe a Ordem da Liberdade, em 1982 é homenageada pela Assembleia da República e recebe a Medalha Eugénie Cotton, da Fédération Démocratique Internacionale dês Femmes (FDIM) em 1983, ano da sua morte, a 6 de dezembro, exatamente dois meses depois de completar noventa anos.

Morria uma mulher que nunca se resignou ao papel que lhe era atribuído pela sociedade, pelos tempos, pelos homens, que lutou pela paz, pela democracia, pela liberdade, pela igualdade, pela justiça, pelos direitos das mulheres e pelo direito à felicidade e que se voltasse a nascer, teria ainda muito por que lutar.