JUSTIÇA, LEIS E RELAÇÕES DE GÉNERO

«Les personnes privées de droits juridiques sont les mineurs, les femmes mariées, les criminels et les débiles mentaux.»
(Código de Napoleão, 1804)
1. A comunicação social tem estado particularmente atenta, nos últimos anos, ao que se pode chamar ‘Relações Sociais de Género’. Ou porque uma decisão de um tribunal criminal em matéria de violência doméstica ou de crime sexual, maxime violação, se afigura chocante, na conclusão, nos fundamentos ou em ambos.

Ou porque uma sentença ou outra decisão de Estado é contestada em Estrasburgo, perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH, Conselho da Europa), como aconteceu no Caso Women on Waves versus Portugal, decidido pelo TEDH no ano de 2009.

Ou porque surge mais uma, e outra e outra, notícia de homicídio conjugal ou equivalente, tipicamente uxoricídio ou semelhante, isto é, casos extremos de ‘violência doméstica’. As palavras vão sugerindo conceitos marcados pela frequência e razão de ser de certos comportamentos, como é o caso do chamado ‘femicídio’, expressão que indicia homicídio de uma mulher provocado pelo que pode ser descrito por ódio de género – expressão paralela, mas muito menos comum, à mais tradicional ‘ódio racial’.

Ou porque, como foi divulgado há dias, mais um inquérito confirma o índice de ‘violência no namoro’ – e sobretudo o espantoso nível de tolerância dos e das adolescentes e jovens por esse mesmo grau de violência. Como se fosse natural e inevitável. E, em alguma estranha medida, desejável, enquanto prova de ‘grande, verdadeiro amor’, implicando posse, domínio e obsessão. Tipicamente, de rapazes sobre raparigas.

2. Não são apenas estes os temas. Questões de desigualdade no trabalho e na família, ou na esfera pública mais óbvia – a Política – também são com frequência assunto de notícia, estudos, inquéritos ou artigos ditos de opinião. Seja a propósito de efeitos devastadores da pandemia de Covid-19 por que estamos passando, seja porque mais um estudo europeu ou nacional lembra aquilo que as mulheres sabem de experiência feita e sofrida há muito: que o esforço e as horas empregues no cuidado da casa e da família continuam muito desequilibrados entre os membros do casal homem-mulher; que esse desequilíbrio torna ainda muito mais difícil a participação feminina no governo do país ou da cidade; e que as expectativas sociais, ainda que em lenta alteração, continuam a vê-lo como natural.

3. Junte-se a isto o infeliz equívoco que se vai espalhando, segundo o qual existe uma coisa chamada ‘Ideologia de Género’, que seria venenosamente impingida às crianças e aos jovens incautos nas escolas e parece até estar a contaminar alguns Estados soberanos, dando origem a anedotas como a decisão do Tribunal Constitucional da Bulgária, que recentemente declarou que a ‘Convenção para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica’, adotada em Istambul em 2011, seria incompatível com a Constituição do país, porque incentivaria o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A citada Convenção nada tem, rigorosamente, que ver com o assunto.

Como complemento desta curiosa convicção, difunde-se também que a insistência no respeito pelas minorias populacionais ou sociais, incluindo a linguagem utilizada, é algo de castrante da liberdade individual, sob a capa do chamado ‘politicamente correto’. Como se essa contrariedade não fosse, ela mesmo, um policiamento do pensamento e da linguagem e a defesa mais ou menos consciente da manutenção do privilégio e do insulto.

4. Tipicamente, pelo menos em algumas destas áreas temáticas, as questões surgem sob o título genérico de ‘Igualdade’. A polissemia da palavra tende a gerar equívocos quanto ao seu relacionamento com um possível antónimo, ‘diferença’.

Mas a verdade é que, como pode ver-se de forma bem mais clara quando estamos no campo da observação da violência, por vezes dita de género, a questão não é de simples discriminação, mas de verdadeiras exclusão e subordinação. Não se trata de distinções horizontais, mas de hierarquias verticais, como acontece com todos os processos históricos ou contemporâneos de diferenciação hierarquizada entre pessoas com base na religião, etnia (‘raça’, na designação hoje descartada pelas Ciências), sexo, género – pressupondo esta distinção como clara – nacionalidade, origem regional ou outra.

5. Em termos de lutas, de políticas e de leis – estas são com frequência partes integrantes daquelas – podem, neste contexto, digladiar-se, entre muitas outras fações, os defensores de ‘Construção de identidades’ e os seus detratores, que invocam o risco de fragmentação e desvio daquilo que vêem como essencial e correto: uma perspetiva de ‘pessoa sem qualidades’, cidadão ou cidadã – e por esta necessidade de declinação gramatical já se vê a dificuldade dessa eventual imagem (‘sem qualidades’).

E isto em parte porque é inevitável que quer a criação de grupos subjugados, através das leis, de costumes, de discursos de poder, de tradições, de afiliação religiosa, quer a luta contra essa subjugação, através da criação de identidades contra-hegemónicas, produza associações conceptuais e de prática social e política de Supremacia Branca / Black Lives Matter, de Heterossexualidade Normativa / Gay Pride ou de Luta Contra a Ideologia de Género / Direitos das Mulheres, LGBTI+ e assim sucessivamente. Espero que não seja preciso explicar que estas oposições não encerram simetrias políticas ou sociais de valor.

6. A minha forma de pensar e convicção profunda podem, neste contexto, resumir-se a isto:

a) A criação de identidades hegemónicas e contra-hegemónicas faz parte da criação e reforço e depois da historicamente necessária luta contra tradições, leis e práticas discriminatórias e de submissão;

b) As leis são apenas uma das fontes de criação dessas submissões / desigualdades, consoante o sítio e a época. A Arábia Saudita, o Irão, a Turquia, os Estados Unidos ou Portugal e vários países da União Europeia têm histórias e atualidades muito diversas, mas com curiosas commonalities. Uma delas é o uso da lei, escrita ou costumeira, religiosa ou laica, para criar relações sociais desiguais de poder, simultaneamente criando a ilusão das ‘naturais diferenças’ que justificariam essas hierarquias;

c) As leis nunca se limitam a refletir convicções sociais, ainda que dominantes. Condicionam-nas, acentuam, contrariam essas convicções, sobretudo em certas fases históricas (na Europa, o século XIX é exemplo óbvio). Mas fazem-no ao lado de muitos outros discursos: os das religiões, os das ciências, os das tradições…

7. Ou seja, o Direito, as leis e a justiça, tem tipicamente um passado histórico discriminador, desigualitário, ao lado de muitas outras instâncias. Em certo momento tende a assumir um papel oposto, de luta contra a discriminação – elencando fatores proibidos de distinção, como faz a nossa Constituição da República e uma miríade de leis ordinárias a ela sujeitas – ou criando até medidas de aceleração de processos de transformação por vezes polémicos, caso evidente das chamadas quotas de género.

Paradoxo supremo: catalogando os fatores proibidos de discriminação, todos os textos legais, internacionais, regionais ou de origem nacional reforçam a convicção do senso comum de que as pessoas são diferentes entre si e semelhantes dentro de cada grupo e que, por isso mesmo, é preciso fazê-las (torná-las) iguais. Em vez de compreender que cada pessoa é em si mesma uma diferença, «cada homem é uma raça» (Mia Couto), cada pessoa é um género, cada um e cada uma é um ser de dignidade idêntica e radicalmente individual na sua incomensurável diferença, porque é único e irrepetível. Concentrado deste problema é o lema de uma campanha feliz, mas ambígua nessa mesma dimensão paradoxal: «Todos diferentes, todos iguais».

8. O Código Civil de 1966 (Estado Novo), que vigorava em Abril de 1974, estabelecia, entre muitas outras discriminações, que o marido era o chefe da família e que a mulher, que devia ser ouvida por ele nas suas decisões, detinha o “governo doméstico”.

Isto queria dizer, segundo a interpretação corrente dos tribunais, que a ela pertencia o dever de tratar da casa e da família e a ele, em primeira linha, o de a manter economicamente e dirigir, estabelecendo uma evidente relação hierárquica de domínio e dependência, tida por natural. O marido detinha em geral os poderes de administração dos bens do casal e podia denunciar qualquer contrato de trabalho livremente assinado pela mulher, sem necessidade de qualquer fundamento, motivo sério ou explicação.

O Código Penal era outro local legislativo onde o estatuto discriminado e submisso também legalmente fundado das mulheres era evidente, designadamente no campo dos crimes sexuais ou com eles relacionados (homicídio em flagrante adultério, possibilidade de violação de correspondência, por exemplo – algumas destas normas foram expressamente revogadas mesmo antes da entrada em vigor da Constituição da República em 1976). As leis eleitoral, da nacionalidade, militar, administrativa eram outros tantos exemplos de subordinação jurídica formal das mulheres, e em especial das mulheres casadas. Foi na regulação do casamento que, em boa medida, foi legalmente construída a subordinação das mulheres aos homens.

Com a entrada em vigor da Constituição da República em 1976, que estabeleceu um quadro igualitário também em função do género (sexo, na linguagem constitucional) e revogou todas as normas anteriores contrárias aos seus princípios, fica formalmente consagrada a plena igualdade de direitos. Mas em termos substanciais a igualdade ainda vinha e vem longe – e a mesma Constituição de 1976 sofreu várias alterações posteriores destinadas a reforçar essa ideia, esse ideal, de igualdade e não discriminação, explicitando o dever do Estado de promover a igualdade entre homens e mulheres e participação política equilibrada.

9. Os anos 60 do séc. XX foram, do ponto de vista da situação legal das mulheres, bastante significativos e em alguma medida curiosamente contraditórios.

Por um lado, a lei do trabalho declara a igualdade salarial (1966 – aprovação da Convenção n.º 100 da OIT – e 1969), mas, por outro, o Código Civil de 1966 dá ao marido a chefia da família e poderes sobre a vida laboral contratual da mulher. Em 1969, as mulheres deixam de precisar de autorização marital para saírem do país, mas o Código Civil obriga-as a adotarem a residência do marido, salvo casos excecionais. A revisão constitucional de 1971 (Governo de Marcelo Caetano) altera o Art.º 5º, eliminando um dos fundamentos constitucionais de discriminação em função do sexo: o bem da família. Curiosamente, permaneceu o outro fundamento: a “natureza das coisas”.

Disposições legais expressamente discriminatórias, como as que existiram na lei portuguesa até 1974, ou datas próximas, podem ser vistas não só como atentatórias da dignidade das mulheres enquanto cidadãs, mas como absurdas e disfuncionais de um ponto de vista de modernização e desenvolvimento económicos. Pense-se por exemplo no Código Civil que permitia ao marido denunciar em qualquer momento e sem qualquer motivo o contrato de trabalho de que a mulher se tivesse tornado livremente parte, ou na disposição legal que fazia depender de autorização marital a saída de uma mulher casada para o estrangeiro. Na perspetiva do livre desenvolvimento do mercado de trabalho, estas normas eram irracionais – e foram-no ainda mais num país em que muitos casais estavam separados pela emigração ou pela guerra em África, ou simplesmente pela impossibilidade legal de divórcio para casamentos católicos, só desfeita com a revisão da Concordata entre Portugal e a Santa Sé depois de 1974.

10. O efeito a longo prazo destas disposições subsiste muitas vezes mesmo depois da sua revogação formal. As regras de Direito não se limitam a refletir uma forma de pensar socialmente dominante, mas, com frequência, condicionam-na ou ajudam a condicionar. Os quadros mentais desenhados na lei portuguesa da família na segunda metade dos anos sessenta (Código Civil de 1966) não desapareceram automaticamente com a sua substituição em 1977 (Revisão do Código Civil), uma das mais importantes reformas legislavas do Portugal democrático pós-1974. Como ainda vemos, de vez em quando, sempre que um tribunal decide como se a democracia não tivesse sido restaurada em Portugal no mês de Abril de 1974.