Sal da Terra – “A NOSSA LÍNGUA”

Passavam alguns minutos das sete da manhã e eu estava junto do quiosque da entrada do metro a fazer horas até à consulta no IPO.

Felizmente que há uma esplanada junto do quiosque, daquelas que a proibição de fumar em recintos fechados fez nascer em todos os recintos abertos.

Mas está completamente vazia. E a esta hora da manhã o quiosque ainda nem abriu. Nem se vê ninguém pelas escadas que dão acesso ao metro.

Só eu.

Sento-me na esplanada, tiro o livro que trago sempre na minha mala, mas nem tenho tempo de o abrir porque de repente levanto os olhos e ele está na minha frente.

Enorme, negro, cabelo entrançado, olhos pesados de álcool e sono, ar de quem há muito não se lava nem se deita.

Olho em redor, o quiosque continua fechado e não há por ali ninguém que me possa acudir.

Penso

“é agora, é agora!”

e já o vejo a atacar-me, a roubar-me a mala por esticão, mentalmente passo em revista o que lá tenho dentro, chaves, telemóvel, agenda – e a carteira com todos, absolutamente todos os cartões, de débito, de crédito, das muitas lojas donde gasto, para lá do CC e dos cartões de saúde, de segurança social, e de contribuinte, e do IPO, até o de eleitor lá anda pelo meio.

Puxo a mala contra mim, enquanto o homem me pede um cigarro.

Vou ter de abrir a mala para lho dar. Eu, que nem fumo, ando sempre com um maço na mala para acudir a amigos viciados.

E tenho a certeza de que vai ser agora que ele me vai atacar, já sinto o bafo dele na minha cara, as mãos dele no meu pescoço.

Volto a olhar em volta e não passa ninguém, a menina do quiosque já devia ter chegado mas atrasou-se, e da polícia nem rasto.

Só espero que ele não repare como as mãos me tremem a abrir a mala, a tirar o maço de tabaco — que lhe entrego logo, inteiro e por abrir.

O rosto dele ilumina-se num enorme sorriso:

– Obrigado, moça — diz, cambaleando e quase caindo para cima de mim — Obrigado pela sua amabilidade!

De repente pára e repete, muito devagarinho, separando bem as sílabas:

– A-ma-bi-li-da-de.

Depois franze a testa, agarra-me o braço

(“é agora, é agora!”)

e, muito sério, desata num discurso sem quebras:

– É “amabilidade” que se diz? Não será antes “amavilidade”? Se a gente diz “amável”, a gente devia dizer “amavilidade!” A não ser…a não ser que a palavra venha de “habilidade”, ou seja, a habilidade de ser amável! A-ma-bi-li-da-de!

E durante muito tempo ele lá ficou naquelas altas filosofias matinais, eu feita parva a olhar para ele, agoniada com aquele bafo de álcool e sujidade, até que ele se afasta e eu respiro fundo, ainda sinto as pernas a tremer — mas de repente ele dá meia volta e regressa, e deixa então cair a mão, pesadamente, no meu ombro, eu tenho metro e meio e ele tem para aí o dobro e, enquanto olho desesperadamente em volta, ele olha para mim e exclama:

– Ai moça, a nossa língua é muito bonita!

O quiosque abriu nesse momento.

E paguei-lhe um café.

Aquele “nossa”, pronunciado com tanta convicção, tanto álcool e tanta sujidade, tinha-nos tornado, de repente, irmãos.

Iniciada, no número de Inverno de 2019, a presente rubrica visa, mediante solicitação, a
colaboração de escritores e poetas com pequenas crónicas/apontamentos do quotidiano.
A Redacção