Cipriano Dourado: A gravura como arte maior

Desde a opção de seus pais de regressarem a Penhascoso para ali nascerem os seus filhos, pois embora residissem em Lisboa queriam manter as raízes da família na sua terra natal, podemos dizer que Cipriano Dourado, ali nascido em 8 de Fevereiro de 1921, manteve desde sempre uma estreita ligação à sua terra, que recorrentemente pintou, ao longo da sua vida.

Cumprindo-se, em 2021, cem anos do seu nascimento, a Seara Nova (à qual ele esteve estreitamente ligado) evoca nesta edição a sua memória, cuja importância na vida cultural do nosso país não tem sido devidamente assinalada.

Foi em Lisboa que Cipriano Dourado frequentou a Escola Industrial Marquês de Pombal e iniciou o seu percurso artístico como autodidata. Com 14 anos, começou a trabalhar como desenhador na empresa Litografia Internacional de Silva e Saldanha, Lda., em Alcântara, que era simultaneamente uma latoaria que fabricava latas de conserva e latas de café. Depois, até 1960, trabalhou na Litografia Amorim, mantendo actividade profissional nas artes gráficas e passando depois à publicidade.

Foi assim que adquiriu uma extraordinária perícia na técnica da litografia e a notável capacidade profissional que o fez compreender toda a importância da gravura como veículo de expressão artística essencial para uma ampla divulgação dada a possibilidade de multiplicar o número de cópias, o que garantia um fácil acesso da gravura à educação cultural das massas trabalhadoras. Nas suas mãos, a técnica da litografia passou a ser gravura como arte maior.

Quando a gravura não era ainda considerada em Portugal uma forma de arte ao nível das outras artes plásticas como a pintura ou a escultura, iniciou a sua participação nas exposições da Sociedade Nacional das Belas Artes (SNBA), com trabalhos a aguarela, pois a gravura não tinha ainda entrada em exposições oficiais. Nos Salões de Inverno da SNBA, onde a aguarela e o desenho tinham acesso, Cipriano Dourado decidiu participar, em 1947, com trabalhos de aguarela que obtiveram o 2º prémio Roque Gameiro e uma menção honrosa.

Este êxito deu-lhe ânimo para novos voos. A partir de 1947, viajou pela Europa (Espanha, França, Itália, Bélgica, Alemanha), visitando museus e exposições, numa busca empenhada por novas técnicas e correntes estéticas, ao mesmo tempo que aprofundava as velhas técnicas da gravura, estudando a extraordinária perícia de Rembrandt, de Durer e outros artistas que admirava, nas suas magníficas gravuras. No que deles viu, tirou lições para as suas experiências de zincogravura.

Em 1949 fez um estágio na Academia Livre Grande Chaumière de Paris.

Regressado a Portugal, foi a partir desse ano de 1949 que começou a participar nas Exposições Gerais de Artes Plásticas (EGAP) iniciadas em 1946. Desde então foi um activo participante nessas exposições, até à última, em 1956. Durante esses oito anos deu largas ao seu grande talento multifacetado não só como desenhador e pintor, mas também como mestre de gravuras artísticas de uma qualidade excepcional, graças a uma nova abertura inaugurada pelos promotores das Exposições Gerais de Artes Plásticas, que tomaram pela primeira vez em Portugal a decisão de admitir nos seus salões a gravura, a fotografia e o desenho arquitectónico como artes maiores, de direito próprio.

Numa época em que as poucas salas de exposições eram dominadas por um academismo retrógrado, como acontecia com a SNBA, ou pela exaltação do regime fascista, como acontecia com o Secretariado Nacional de Informação (SNI), dirigido por António Ferro, que na Alemanha nazi tinha ido beber a sua formação ideológica, as Exposições Gerais de Artes Plásticas constituíam uma ampla abertura unitária no meio artístico e um importante factor de alargamento da frente intelectual antifascista, que nunca permitiu espaço de manobra e de credibilidade aos intelectuais servidores do regime. Nas EGAP surgiram, com a força e a pujança da juventude, novas camadas de artistas que não queriam pactuar com o SNI, que levava a cabo a chamada «política do espírito» a mando de Salazar. Esses jovens artistas rebeldes iriam afirmar-se no futuro como artistas marcantes na arte portuguesa. Cipriano Dourado foi um deles, tal como Júlio Pomar, Rolando Sá Nogueira, João Abel Manta, Rogério Ribeiro, Alice Jorge, João Hogan, Lima de Freitas, Pavia, Querubim Lapa, António Alfredo, Maria Keil, os escultores Jorge Vieira, Vasco da Conceição, Maria Barreira, Lagoa Henriques e José Dias Coelho, e os arquitectos Keil do Amaral, Castro Rodrigues, Sena da Silva, Hernani Gandra, Celestino de Castro e muitos outros artistas e escritores.

A consciência antifascista de Cipriano Dourado, reforçada na ideologia de uma arte do povo e para o povo, que nas Exposições Gerais ganhara as raízes de um neo-realismo actuante, levou-o a aceitar com entusiasmo o convite feito por Alves Redol, em 1953, a um grupo de artistas plásticos progressistas para assistirem à dura faina do arroz nos campos do Ribatejo.

Assim nasceu o que foi designado pelo Ciclo do Arroz, que iria ser nomeado com relevo na história da arte em Portugal, e em que um dos artistas mais destacados, quer pelo número de trabalhos, quer pela qualidade destes, foi Cipriano Dourado. Com ele estiveram Júlio Pomar, António Alfredo e Rogério Ribeiro, entre outros, que executaram desenhos, gravuras e pinturas sobre a violência do trabalho nesses campos de Vila Franca de Xira.

Nesses desenhos e gravuras Cipriano consegue aliar à rudeza da acção a extraordinária delicadeza do seu traço, conferindo às mulheres um encanto da sua feminilidade que seria sempre a característica dos seus trabalhos.

Pode dizer-se que Cipriano Dourado foi um dos artistas que melhor caracterizou a feminilidade, quer no desenho, na gravura ou na pintura.

A certeza da importância da gravura como forma de expansão do processo artístico levou-o a ser um dos mais entusiastas criadores, em 20 de Julho de 1956, da Sociedade Cooperativa de Gravadores Portugueses e um dos seus directores, tendo também feito parte, em diversos períodos, da sua direcção técnica. A Gravura, como passou a ser chamada usualmente, granjeou uma grande quantidade de sócios, tornando-se num polo de divulgação da arte, com uma amplitude até aí nunca atingida em Portugal. Cipriano Dourado, artista de elevada sensibilidade e dotado de uma sólida técnica era ao mesmo tempo um dos maiores impulsionadores da Cooperativa, tendo dedicado os maiores esforços à realização das numerosas exposições realizadas em Portugal, Moçambique, Angola e no estrangeiro, que principalmente nos anos 1960, alcançaram assinalável projecção, com o objectivo, amplamente conseguido, da afirmação definitiva da importância da gravura no meio artístico português.

Pelo seu prestígio nesta área, foi eleito membro do júri da Primeira Exposição Nacional de Gravura, realizada em 1977.

De 1979 a 1981, Cipriano Dourado estimulou e integrou as exposições itinerantes do Grupo Paralelo, do qual foi membro fundador.

Homem de profundas e sólidas amizades e comunista convicto, foi ele um dos mais activos promotores, em 1974, do Comité José Dias Coelho, que congregou artistas plásticos e outros intelectuais de muito amplas e diversas convicções antifascistas e realizou várias exposições e conferências sobre este artista, militante comunista, assassinado pela PIDE em 1961.

Cipriano Dourado aliou a sua extraordinária capacidade na gravura à de ilustrador, tendo colaborado em publicações como a Seara Nova, Vértice, Colóquio-Letras, Cassiopeia, Mulheres, Antologia de Poesia e Ensaio, Árvore e Folhas de Poesia. Também ilustrou livros – de Orlando Gonçalves: Aleluia e Este Mundo dos Homens; de Armindo Rodrigues: A Paz Inteira; de Mário Braga: Serranos; de Augusto Gil: Sombra de Fumo, Contos de Antunes da Silva; e vários livros de poesia: Sete Odes do Canto Comum de Orlando da Costa (apreendido pela PIDE no prelo), poemas de Pablo Neruda e de Lília da Fonseca, entre outros.

Depois do 25 de Abril, foi convidado para leccionar desenho, gravura e artes gráficas na Escola de Artes Decorativas António Arroio. Quando da sua morte, em 17 de Janeiro de 1981, os seus alunos, que o adoravam, levaram no seu funeral molhos e molhos de flores do campo, como homenagem àquele artista que os ensinara a amar a natureza.

Alguns museus onde Cipriano Dourado se encontra representado:
- Museu Nacional de Arte Contemporânea, Lisboa
- Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa
- Museu do Neo-Realismo, Vila Franca de Xira
- Museu Municipal Manuel Soares de Albergaria, Carregal do Sal
Exposições (selecção):
1947 – Salão de Inverno da SNBA, Lisboa.
1949/50/51/53/54/55/56 – Exposições Gerais de Artes Plásticas, SNBA, Lisboa.
1952 – Exposição de Gravura Moderna, Fac. de Ciências de Lisboa.
1955 – Modernos Gravadores Portugueses, Galeria de Artes e Letras.
1956 – I Salão de Artistas de Hoje, SNBA, Lisboa.
1957 – I Exposição de Artes Plásticas, Fundação Calouste Gulbenkian;
     – I Bienal Internacional de Gravura, Tóquio.
     – Pavilhão de Portugal na Feira de Lausanne, Suíça.
1958 – I Salão de Arte Moderna, Casa da Imprensa, Lisboa;
     – Gravura Portuguesa Contemporânea, Suécia.
1959 – Exposição de Gravura Portuguesa, Madrid;
     – Calcografia Internacional, Roma;
     – 50 Artistas Independentes, SNBA, Lisboa.
1960 – Exposição de Gravura Portuguesa, Stuttgart.
1961 – Exposição em Nuremberga, Alemanha.
1969 – Exposição da Fundação Gulbenkian, Paris.
1976 – InterGrafik 76, Berlim, RDA.
1977 e 1979 – I e II Bienais de Artes Plásticas da Festa do Avante.
Entre as muitas homenagens póstumas, salienta-se a Homenagem da Festa do Avante, em 2011, por ocasião dos 90 anos do seu nascimento.
FONTES:
– Declarações e documentos fornecidos pela filha, Helena Dourado.
– «Batalha pelo Conteúdo – Exposição Documental – Movimento Neo-Realista Português» - Museu do Neo-Realismo.
– «Um Tempo e um Lugar. Dos anos 40 aos anos 60. Dez exposições Gerais de Artes Plásticas» - Lígia Afonso - Museu do Neo-Realismo.
– «A Pintura Portuguesa Neo-Realista» – Ernesto de Sousa.
- «Nova Síntese – textos e contextos do Neo-Realismo» - edição Campo das Letras – 2006.