CRÓNICA AMERICANA

O afastamento de Donald Trump da presidência dos EUA foi o fator mais decisivo das últimas eleições americanas. Isso significa que a maioria dos votantes rejeitou o seu mandato. Não porque a alternativa fosse boa, mas porque era, tão-só, decente. Foi a este nível – o da ausência da simples decência – que o anterior inquilino da Casa Branca degradou o ambiente político e social do seu país. Trump é uma pessoa indecente; indecente no seu comportamento narcísico e obsceno, indecente na sua indiferença humana e na sua atitude intolerante e discriminatória, indecente na sua mesquinhez e descarada ignorância, indecente na apologia despudorada da própria indecência. Se não fosse gente, dir-se-ia uma caricatura. Mas é gente, e chegou mesmo a ser a pessoa mais poderosa à face da Terra.

Tudo ficou, então, resolvido com este ato eleitoral? Não, tudo está por resolver. Não nos podemos esquecer que, na sua tentativa de reeleição, Trump conseguiu somar mais 7 milhões de votos àqueles obtidos em 2016 (tornando-se, assim, o segundo candidato presidencial mais votado da história dos EUA; o primeiro é, justamente, Joe Biden). Quase metade dos eleitores americanos identificaram-se com o personagem e a sua governação. Destes contam-se milhões de trabalhadores, mulheres, negros, hispânicos e, certamente, muitas pessoas provenientes de estratos sociais que estão longe de poderem ser considerados privilegiados. O que pode explicar isto?

Convém sublinhar que Donald Trump é apenas um subproduto de uma sociedade profundamente doente, uma gangrena que se alimenta dos milhões que o apoiam, figura tão grotesca quanto representativa de uma desqualificação coletiva que, por essas mesmas circunstâncias ontológicas, perde o estatuto de aberração (explicável por razões fortuitas) para se tornar num fenómeno sistémico (apenas compreensível em termos estruturais). Na verdade, não é ele que verdadeiramente interessa, mas perceber como foi possível a sua chegada à presidência dos EUA e a manutenção de um enorme capital político. Perceber, por um lado, como só o dinheiro e a posse são dignos de respeito e consideração social na pátria estadunidense, e a lei do mais forte se tornou na obsessão compulsiva do imaginário nacional. Perceber, por outro, a situação de marginalidade e exclusão a que muitos dos seus cidadãos foram votados pelo processo de desregulação e rapina generalizada do neoliberalismo mais desenfreado. Perceber como a desclassificação social e a perda do reconhecimento comunitário provoca uma sensação de medo e ameaça e, simultaneamente, de ressentimento e de total falta de empatia para com os outros. Perceber como este sentimento engendra a necessidade de culpabilização de terceiros, com a explosão dos mais baixos instintos e a caça aos habituais bodes expiatórios, em especial as minorias raciais e étnicas, os emigrantes e estrangeiros, as mulheres, todos aqueles que não fazem parte do mainstream, sujeitos à discriminação económica, social e cultural, a múltiplas formas de opressão e a todo o tipo de estereótipos e preconceitos.

Expoente máximo do capitalismo, os EUA destacam-se por graus elevadíssimos de exploração, desigualdade, discriminação e injustiça sociais. Estamos em crer que estas características da sociedade norte-americana assentam em três C’s matriciais que concorrem para as disfuncionalidades estruturais que a atravessam: Cor, Classe e Cultura. Estes três fatores genéticos da realidade estadunidense ajudam a explicar muitos dos feitos, dos mitos, das frustrações e da revolta que, a cada passo da história, entrevemos num país que, para todos os efeitos, constitui uma referência mundial.

Comecemos pela questão racial. A América assistiu, na sua origem, ao extermínio dos índios (cerca de 15 milhões) e à escravatura (4 milhões de indivíduos trabalhavam nas plantações do sul dos EUA em 1860, constituindo a maior concentração de escravos observada na história)[i].

Tais circunstâncias justificam a teoria do “racismo sistémico” desenvolvida pelo sociólogo norte-americano Joe Feagin. Com efeito, os EUA foram criados a partir da opressão extrema em termos raciais, sendo “o único país industrializado que tem a escravatura como base.” Feagin conclui que, “Se traçarmos uma linha temporal, percebemos que 340 ou 350 anos da História dos EUA foram de opressão extrema em termos raciais.”[ii] Daí o caráter verdadeiramente fundacional do racismo na sociedade americana, o que, aliás, explica a permanência de discriminações raciais legais até épocas tão tardias quanto a década de 60 do século XX, tendo em Trump e seus apoiantes, dignos apologistas. É por isso que, com um peso demográfico que ronda os 14% da população do país, a taxa de desemprego negro excede em 5% o da maioria branca, ocupando sempre os trabalhos menos valorizados e remunerados, ou que, num país que conta com a maior população prisional do mundo – cerca de 2,3 milhões de detidos e 4,5 milhões em regime condicional – a percentagem de reclusos negros seja de  40%, tendo os afro-americanos mais do triplo de probabilidades de serem abatidos pela polícia[iii].

A questão de classe é igualmente central na construção deste país, adquirindo particular acuidade nos tempos que correm. É sabido como Donald Trump conseguiu federar todo o tipo de descontentamentos, que vão das vítimas da globalização, da desregulação neoliberal e dos efeitos concorrenciais dos acordos internacionais de comércio livre, ao colapso financeiro de 2008 e da gigantesca recessão que se lhe seguiu, à perda sucessiva de rendimentos e ao crescimento exponencial das desigualdades, às complexas consequências sociais (marginalização de largas camadas da população) da automatização, robotização e informatização generalizadas da economia e vida social. Estes fatores contribuíram para a crescente dicotomia entre ricos e pobres, entre urbanos e rurais, entre integrados e desadaptados, ao verdadeiro nascimento de duas Américas de características crescentemente antagónicas: uma dinâmica, cosmopolita, próspera e progressista, e uma outra, tradicionalista, conservadora, profundamente religiosa e nacionalista.

Alguns indicadores bastam para ilustrar a situação a que se chegou. Nos EUA, o 1% dos mais ricos detêm 40% da riqueza produzida no país, sendo que os menos afortunados têm o seu rendimento limitado a cerca de 10%. Há perto de 1 milhão de indigentes sem-abrigo e um em cada seis americanos vive abaixo do limiar da pobreza.

Para muitos pequenos agricultores e trabalhadores fabris brancos que consideram que é o seu trabalho que verdadeiramente sustenta a nação estadunidense – mas que, apesar disso, não conseguem obter o reconhecimento social que pensam que lhes é devido e, sobretudo, a quem faltam os estudos e um diploma académico que lhes permita ascender na sociedade – sobrevém a aversão e o ódio para com a suposta “elite” social e política. Como explica o historiador José Pacheco Pereira, para aqueles a quem Hillary Clinton classificou como “deploráveis”, “há aqui duas perdas: ser branco e já não ter os privilégios de o ser, face aos negros, aos latinos e a todos os «não americanos»; e ser trabalhador manual, não ter um diploma e por isso ser marginal na sociedade, estar fora da elite.”[iv] Num país onde estudar e concluir um curso universitário é o grande diferenciador social, esta América branca, pobre, ultraconservadora, hiper-religiosa e rural ainda considera o conhecimento científico – e a cultura, de uma forma geral – como algo de pecaminoso e corruptor das almas.

Chegamos, assim, ao terceiro fator constituinte da realidade americana: a cultura. Para lá de todo o discurso meritocrático, da imagem dos self-made men e da apologia da América como “terra das oportunidades”, a concentração do investimento educativo num reduzido número de escolas de elite, a enorme disparidade social no acesso à educação, sempre em benefício dos mais ricos e poderosos, e uma grande opacidade nos processos de admissão académica, são particularmente evidentes nos EUA.

A probabilidade de acesso à universidade dos jovens de meios sociais desfavorecidos dificilmente ultrapassa os 20%, chegando aos 90% nos mais abastados, sendo que o financiamento do ensino superior americano é sobretudo privado (70%) e o orçamento anual das universidades de Harvard, Yale e Princeton, ultrapassa em 4% o das 500 menos dotadas.

Cabendo ainda referir os critérios de admissão preferenciais através do expediente dos legacy students – prioridade dada aos candidatos oriundos de famílias de antigos alunos – ou aos filhos de doadores particularmente generosos (independentemente da sua classificação académica)[v].

Se pensarmos na cultura não apenas no sentido académico, mas num âmbito mais geral, o panorama é ainda mais sombrio. Dir-nos-íamos na eminência de entrar na Idade das Trevas. Como é possível que, em pleno século XXI, Kamala Harris, a vice-presidente eleita dos Estados Unidos, no primeiro discurso de vitória após a jornada eleitoral de 3 de novembro, tenha sentido a necessidade de defender o papel da Ciência como uma das prioridades do seu mandato? O que é facto é que, na América contemporânea (e com um inestimável contributo da Administração Trump e das forças mais fanáticas e obscurantistas da atualidade), campeiam todo o tipo de teorias da conspiração. Uma das mais espantosas é a do movimento QAnon, que acredita que as elites norte-americanas – onde se incluem desde artistas, a cientistas, a responsáveis empresariais, como Georges Soros ou Bill Gates, ex-presidentes, como os próprios Bush e os democratas em geral – representam um “deep state” que controla o mundo e os destinos da América e se baseia numa rede satânica de tráfico e abuso sexual de crianças, às quais é tirado o sangue para ser bebido como forma de rejuvenescimento dos poderosos! Não nos podemos esquecer que a empresária Marjorie Taylor Greene, candidata republicana e adepta fervorosa do QAnon, acabou de ser eleita para o Congresso norte-americano pelo Estado da Georgia, com uma larga percentagem de votos. Pululam simultaneamente as mais absurdas teses negacionistas, como por exemplo os “terraplanistas”, que contestam a morfologia do nosso planeta, ou aqueles que recusam reconhecer as alterações climáticas, considerando que o conhecimento científico é uma falsidade – ou, no mínimo, uma mera questão de opinião – e que só o mais estrito fundamentalismo religioso pode aspirar ao estatuto de Verdade.

Urge, por isso, perceber as causas da consolidação de um nacionalismo populista eivado de fanatismo devoto e de militância obscurantista e anticientífica, da apologia do tribalismo e do acender das fogueiras de novas inquisições. Perceber a emergência de um egoísmo sem limites, a atomização dos indivíduos e uma autossuficiência intelectual indutora de ignorância extrema, alimentada pela torrente boçal de falsidades que a novilíngua trumpista apelida de “pós-verdade” ou “factos alternativos”, isto é, a perda de validade das categorias axiológicas elementares de verdade e mentira em prol dos mecanismos de propaganda político-ideológica de massas e da sua eficiência performativa (infelizmente, as semelhanças com os fascismos europeus do século XX não são meras coincidências). Perceber, enfim, como através da alienação mediática e da demência informática, os Estados Unidos “se tornaram uma nação de videotas sem senso crítico”, na certeira definição do filósofo e jurista norte-americano Ronald Dworkin[vi].

Em qualquer caso, como lembrou recentemente Benjamin Ferencz, o último procurador vivo dos Julgamentos de Nuremberga, “Para que o mal vença, só é preciso que os bons não façam nada.”[vii]

Notas:
[i] Cf. Thomas Piketty, Capital et Idéologie, Paris, Seuil, 2019, p. 251.
[ii] Jornal I, 30/11/2020.
[iii] De acordo com o World Report 2019 da Human Rights Watch.
[iv] Público, 10/10/2020.
[v] Piketty, op.cit., pp. 624-5 e 627-629.
[vi] Ronald Dworkin, A virtude soberana. Teoria e prática da igualdade., São Paulo, Martins Fontes, 2005, p. 395.
[vii] Visão, 26/11/2020.