DOIS CENTENÁRIOS: ERNESTO DE SOUSA E A SEARA NOVA

Na Seara Nova de 31 de Maio de 1947, Ernesto de Sousa dedicava algumas páginas à II Exposição Geral de Artes Plásticas (a que fora alvo de uma rusga da PIDE que apreendeu várias obras que ali se mostravam), elogiando a iniciativa, mas criticando com alguma severidade alguns trabalhos e artistas. Deles destacava, no entanto, o jovem pintor Júlio Pomar, e uma pintura sua exposta, que dizia expressar, mais do que qualquer outra, um «novo realismo» «tão do nosso tempo, de todos os tempos» — Tratava-se do Almoço do Trolha, que surgia reproduzido nas páginas da Seara Nova ainda inacabado.

Imagem da tela de Júlio Pomar Almoço do trolha, publicada na Seara Nova de 31 de Maio de 1947
II Exposição Geral de Artes Plásticas, na SNBA, em 1947, com a tela de Júlio Pomar Almoço do trolha

José Ernesto de Sousa (1921-1988) e a Seara Nova nasceram no mesmo ano e foi nesta revista que Ernesto publicou vários dos seus textos mais significativos escritos entre 1946 e 1961. Essa colaboração com a Seara Nova, embora com um interregno de alguns anos, testemunha anos de grande importância no percurso deste autor, quer a sua defesa militante de um neo-realismo heterodoxo, quer a transição para o que, no final da década de 1960, o faria tornar-se num dos mais loquazes e consequentes artistas de arte experimental em Portugal. Entre o ensaio e a crítica de arte, os seus textos contribuíram de forma relevante para a afirmação de uma arte de resistência face ao Estado Novo, que se afirmara primeiro na literatura e que a partir de meados da década de 1940 surgia em pleno na pintura e desenho.

Segundo relataria anos mais tarde, a sua colaboração na Seara Nova partira de um convite de Fernando Lopes-Graça, na sequência da exposição Semana de Arte Negra que organizara nesse mesmo ano de 1946 na Escola Superior Colonial com a colaboração do director do Museu Nacional de Arte Contemporânea, Diogo de Macedo, mas certamente também graças ao seu envolvimento no Movimento de Unidade Democrática (MUD), movimento de oposição criado em 1946 na sequência de uma aparente «abertura democrática» do regime de Salazar por pressão internacional pós-Segunda Guerra Mundial, mas logo proibido em 1948.

Nos primeiros textos que assina na Seara Nova, nos quais é já evidente o papel formador, interventivo e criativo que atribui à crítica que ele próprio escreve, Ernesto de Sousa preocupa-se em promover uma série de artistas então muito novos, como Moniz Pereira, Fernando Azevedo, Vespeira, Júlio Pomar, Arco (Rui Pimentel), Manuel Filipe, salientando a sua capacidade de protagonizar uma pintura de carácter universal porque profundamente envolvida na transformação social. Por outro lado, procura definir a arte (e é sempre sobretudo de pintura, desenho, gravura, que trata nesses primeiros textos) como simultaneamente fruto de, e acção sobre, uma colectividade, e como expressão da cultura integral do indivíduo, uma formulação que traz de Bento de Jesus Caraça, de quem fora aluno e de quem dirá mais tarde: «Não faltava a nenhuma aula dele e seguia-as religiosamente, coisa que não acontecia com as aulas de Ciências em que estava inscrito. Ele era perseguido pelo regime e para mim aparecia como o grande expoente do outro lado. Alguém com um pensamento positivo em relação a Portugal, que representava dignamente o nosso país e não falava só em caravelas e nos Lusíadas» (conversa com Leonel Moura, 1988). Ernesto de Sousa revela ainda, nestes textos, uma constante preocupação pela invenção formal e técnica para fazer chegar a arte ao público. Não só, à semelhança de outros neo-realistas, defende que as técnicas e formas já conquistadas pela modernidade devem ser usadas no neo-realismo, mas outras devem ser exploradas. Entre elas, desde cedo, refere as possibilidades das artes gráficas, salientando o cartaz como capaz de chegar a um público mais vasto («A Arte e o Público», Seara Nova, 28 de Setembro de 1946). Aposta desde cedo na defesa da experimentação e na busca por «novas superfícies», convicto de que essa é a condição para concretizar uma reinvenção da arte e torná-la mais próxima, mais envolvida na vida das pessoas, e por isso capaz de mudar o mundo.

A colaboração de Ernesto na Seara Nova interrompe-se por um período de doze anos, entre 1947 e 1959, altura em se dedica de forma intensa ao cinema. Procura dinamizar o primeiro cineclube de Portugal, o Círculo de Cinema, fechado em 1948 com a prisão de vários membros, incluindo o próprio Ernesto de Sousa; realiza filmes publicitários e documentais e passa três anos em Paris, onde frequenta a cinemateca e os cineclubes gratuitamente graças à sua carta de jornalista, estagia num estúdio sem remuneração, frequenta cursos de cinema da cinemateca, da Sorbonne e do Institut des Hautes Études Cinematographiques, e é assistente estagiário no filme de Jean Dellanoy, La Minute de Verité (1952). Regressa a Portugal e participa no cineclube e na revista Imagem, onde é redactor principal, funda a mítica revista de fotografia Plano Focal, só com quatro números, um deles com uma entrevista a Man Ray, e publica livros de técnica cinematográfica na editora por si criada, Sequência. Porém, só conseguirá realizar a sua primeira longa metragem, Dom Roberto, em 1962, depois de finalmente obter financiamento independente através da criação de uma Cooperativa do Espectador.

Cartaz do filme Dom Roberto

Em 1959 volta à crítica de arte na Seara Nova. Preocupado sempre em valorizar a mais recente geração de artistas, e ainda em nome do realismo, Ernesto de Sousa procura afirmar a pujança da arte em Portugal apesar de todas as condições adversas, combatendo fortemente a ideia de menoridade ou atraso da arte no país. É assim que se demarca, mais do que uma vez, da oposição, feita por José-Augusto França numa palestra na Sociedade Nacional de Belas Artes, entre Paris e Moimenta da Beira, com prejuízo da segunda face à capital francesa, que J. A. França entendia ser o foco de «um universalismo a priori», como descreve Ernesto (Seara Nova, Janeiro de 1959 e Maio de 1959). Por contraste, Ernesto afirma que os caminhos da arte moderna estão «aqui, tão perto de Moimenta da Beira e bastante longe de Paris», em nomes como Abel Manta, Nikias Skapinakis, Lima de Freitas, Querubim Lapa, Júlio Resende, Fernando Lanhas, Alice Jorge, João Vieira, Lourdes Castro, René Bértholo, Costa Pinheiro, Gonçalo [Duarte], Bartolomeu Cid dos Santos, Francisco Relógio, Daciano Costa, Menez, Albertina Mântua, entre outros, e no trabalho da Cooperativa Gravura (no ano seguinte, no número de Novembro-Dezembro de 1960, demarcar-se-á do grupo KWY, que integrava Lourdes Castro, João Vieira, Costa Pinheiro, Gonçalo Duarte e René Bértholo, com uma violenta crítica à sua exposição na SNBA, acusando-os de exibirem a «péssima, anódina, académica e indiferente pintura que nos trouxeram de Paris»). Os «caminhos da arte moderna» eram nesta altura, para Ernesto, os «caminhos do realismo», um realismo entendido, contudo, num sentido cada vez mais lato, abrangendo tudo o que dissesse respeito a tornar o espectador em participante activo. É assim que, ainda em 1959, elogia «o composto abstracto-figurativo» de Júlio Pomar numa pintura como Os Cegos de Madrid (colecção CAM, Gulbenkian), cujo efeito no espectador equipara ao teatro de Brecht ou ao cinema de Orson Welles (Seara Nova, Maio 1959).

Bertolt Brecht surge a partir deste momento nos textos de Ernesto de Sousa como uma referência incontornável para uma reinvenção do realismo, que contemplasse a emergência de uma concepção de arte que o espectador pudesse completar e modificar — uma arte sem dirigismo, aberta a múltiplos usos e sentidos. Mais ainda, promovendo a contaminação erudito/popular, as propostas de um teatro agitprop de Brecht serão o fundamento, dentro do quadro ainda do realismo, para Ernesto de Sousa apelar a uma militância cultural por parte do crítico e do artista e proclamar a necessidade de que «os intelectuais e artistas saibam forçar o gelo da especialização», de forma a poderem usufruir das técnicas da cultura popular. E é de Brecht que surge a sua profecia na Seara Nova de Setembro de 1959: «E em pintura, como no cinema ou no teatro, o caminho do futuro é perfeitamente previsível: o espectador fará parte do espectáculo».

A importância da arte popular é reiterada nos textos desta altura: Ernesto fala da valorização da arte popular «confirmada pela volta consciente ao primitivo, e ao popular por muitos artistas modernos» (Seara Nova, Fevereiro de 1959), e da «importância da “descoberta” da arte popular para a formação de uma arte portuguesa de hoje» (Seara Nova, Novembro-Dezembro de 1960). É neste contexto que inicia a série de quinze «Aspectos da Escultura em Portugal» na Seara Nova que sairá entre Março de 1959 e Agosto de 1961. A série consistia na publicação de uma fotografia de um pormenor escultórico isolado do seu contexto arquitectónico, recolhido de frisos, portais, janelas, capitéis, colunas, de edifícios medievais, renascentistas ou barrocos, e acompanhada de um pequeno texto. Ao propor abordar assim o estudo da escultura (a série daria origem ao livro Para o Estudo da Escultura Portuguesa, 1965), Ernesto trazia uma visão de que o conhecimento da arte e da história da arte se podia fazer através da imagem. Mais ainda, a imagem fotográfica, e as técnicas por ela permitidas, o aumento, a fragmentação em pormenores, a montagem (entre imagens e entre texto e imagem) permitiam outro conhecimento, ver o que nunca antes se vira e relacionar o que parecia inconciliável, por exemplo, objectos de geografias ou cronologias diversas.

Publicação da série de quinze «Aspectos da Escultura em Portugal» na Seara Nova, Março de 1959 a Agosto de 1961

Este seu trabalho, que se prolongará nos anos seguintes, partia da premissa de que a escultura, enquanto objecto tridimensional que reconfigura o espaço que ocupa e que condiciona o movimento dos corpos, nunca pode ser reproduzida numa imagem. Assim, a fotografia (e o cinema) pode fazer outra coisa, tornar o objecto numa coisa diferente, agir sobre ele, fazer ver o que não se veria de outro modo. A fotografia é assim agente para a descoberta e recomeço do processo de conhecimento. Nunca é neutra. Ela não reproduz, ela produz. Ela não é documento, é interpretação.

Neste trabalho de Ernesto de Sousa está a raiz de uma teoria estética que será confirmada e consolidada ao longo da década, passando pelo seu encontro com os escultores populares Rosa Ramalho e Franklin e pelo seu reencontro com a figura tutelar de Almada Negreiros. Uma teoria que promove como modus operandi a apropriação, a reciclagem, a auto-citação, a criação colectiva, e a ideia de que é virtualmente infinda a possibilidade de olhar de novo como se fosse a primeira vez. Tratava-se ainda de encontrar, através da arte, maneira de transformar o mundo. No final da década de 1960, o realismo de Ernesto de Sousa torna-se na defesa e na prática de uma radical experimentação, que utiliza fotografia, cinema, artes gráficas e música (em frequentes colaborações com Jorge Peixinho), para desfazer fronteiras entre artes, entre arte e crítica, arte e público. É nas páginas da Seara Nova que essa mudança se pode mapear.