Portugal como destino: Música e músicos portugueses nas primeiras décadas do século XXI
A música em Portugal, aquela entendida como erudita ou de tradição escrita, tem florescido nestas primeiras décadas do século XXI de uma forma considerada inimaginável para figuras tão inquietas com o desenvolvimento musical do nosso país, como foram – há pouco mais de um século – Bernardo Moreira de Sá, José Viana da Mota, Luís de Freitas Branco, ou mesmo, mais recentemente, Fernando Lopes-Graça, Jorge Peixinho ou Emmanuel Nunes. Todos eles procuraram encontrar soluções que nos aproximassem das melhores e modernas práticas musicais internacionais. Este artigo pretende ser uma breve, e seguramente incompleta, panorâmica das marcas e tendências da Música em Portugal na nossa contemporaneidade.
Educação
A evolução no ensino da música, desde finais do século passado, tem sido – podemos afirmá-lo – não só um caso de sucesso, como o grande motor do seu desenvolvimento. Temos assistido a um fluir de reformas que mantêm ou a têm mantido, enquanto expressão e/ou educação musical, alargando-se também a sua presença no pré-escolar, no primeiro e segundo ciclos, sendo que no terceiro ciclo corresponde a uma oferta complementar. Desta forma, lato sensu, as crianças e jovens portugueses integrados no ensino regular em Portugal, iniciam agora e cada vez mais cedo a sua formação musical. Inclusive, nos últimos anos, vimos surgir o Plano Nacional das Artes, dos Ministérios da Cultura e Educação, com a missão de promover “a transformação social, mobilizando o poder educativo das artes e do património na vida dos cidadãos”, cuja vigência para uma década (2019-2029) pretende que as Artes sejam integradas “na vida das pessoas e das organizações como um fator assumido do seu desenvolvimento sustentável”.
Ambicioso, este plano procura no fundo vivificar, no conjunto da sociedade portuguesa contemporânea, a realidade a que se assiste de forma generalizada no universo das Artes, e entre estas, a Música, resultante maioritariamente do Ensino Especializado da Música no Ensino Básico e Secundário e, de forma muito acentuada, pelo ensino profissional – beneficiando este logo de início dos quadros comunitários de apoio da Comunidade Económica Europeia e, simultaneamente, da imigração para Portugal de muitos músicos do leste europeu –, e que se tem constituído nas últimas décadas como uma verdadeira “revolução” no modo como se formam e potencializam os alunos – que frequentemente vêm das bandas filarmónicas espalhadas de norte a sul do país – do 7º ao 12º ano de escolaridade.
Tem sido assim possível colmatar uma pecha crónica de outros tempos, a de se iniciar aprendizagem do instrumento musical, frequentemente de forma não muito sistemática, após a primeira década de vida, com todas as implicações que esse atraso acarreta para um futuro músico profissional. Possivelmente, falta agora incidir mais na dimensão da formação cultural e estética do jovem músico.
A esta evolução excecional, a nível do secundário, tem correspondido a expansão do número de instituições de ensino superior de música. Inicialmente restrita às Escolas Superiores de Música de Lisboa e do Porto, fundadas no início da década de oitenta do século passado, esta foi-se alargando, quer no âmbito do ensino superior politécnico, com a Escola Superior de Artes Aplicadas – Instituto Politécnico de Castelo Branco, quer no universitário, com o surgimento do Departamento de Comunicação e Arte da Universidade de Aveiro, de Escolas de Artes, na Universidade de Évora e na Universidade Católica Portuguesa, da Universidade do Minho e da Academia Superior de Orquestra, que introduziu em Portugal formação superior, importa especifica para músicos e direção de orquestra. Ainda no âmbito dos cursos superiores, é de referir que a oferta formativa em áreas como as da composição, musicologia, jazz, produção e tecnologias da música, ensino da música, música antiga, tecnologias do som, etc., se tem desenvolvido e diversificado.
A esta necessidade de formar futuros músicos tem correspondido uma melhoria na formação do próprio corpo docente, nomeadamente, na sua qualificação através da realização do doutoramento, o que tem contribuído para um extraordinário corpus de conhecimento científico nas áreas das ciências da educação, da musicologia e do património musical, com a mais-valia de que estes resultados implicam – maioritariamente – no que respeita ao conhecimento sobre música portuguesa e/ou em Portugal.
Investigação
Compreende-se assim que uma parte considerável da investigação em música realizada em Portugal teve e tem como epicentro o Departamento de Ciências Musicais da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (NOVA FCSH).
Foi ainda na NOVA FCSH que surgiram os dois primeiros e mais importantes centros de investigação em Música. O Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança – INETmd, fundado por Salwa Castelo-Branco, uma unidade de investigação interdisciplinar, com três polos no Departamento de Comunicação e Arte, da Universidade de Aveiro, na Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade de Lisboa, e na Escola Superior de Educação, do Instituto Politécnico do Porto, e que tem por objetivo principal o desenvolvimento de investigação transdisciplinar sobre música e dança, utilizando perspetivas atuais, entre outras, de Etnomusicologia, Musicologia Histórica, Estudos Culturais, Música Popular, Dança, Educação Musical, Teoria e Análise Musical, Estudos em Performance, Acústica Musical, Estudos de Som e da Investigação Artística.
Já o Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical – CESEM, criado por Mário Vieira de Carvalho, dedica-se ao estudo da música e das suas correlações com as outras artes, a cultura e a sociedade, incorporando abordagens diversas e fazendo uso das perspetivas e metodologias mais recentes nas Ciências Sociais e Humanas. Possuindo polos no Instituto Politécnico do Porto, no Instituto Politécnico de Lisboa e na Universidade de Évora, tem seis grupos de investigação: Educação e Desenvolvimento Humano, Estudos de Música Antiga, Música Contemporânea, Música no Período Moderno e Teoria Crítica e Comunicação, e seis linhas temáticas: Efeitos Terapêuticos da Música, Estudos Luso-Brasileiros, Estudos de Ópera, Iconografia Musical, Música e Literatura e Paleografia, e Edição Musical.
Ainda neste âmbito importa referir a Sociedade Portuguesa de Investigação em Música-SPIM, que substitui a antiga Associação Portuguesa de Ciências Musicais e congrega a nível nacional os musicólogos e investigadores em todos os domínios dos estudos musicais, cuja principal missão é a divulgação do trabalho de investigação em música nos seus diversos domínios, principalmente através dos encontros anuais do Encontro Nacional de Investigação em Música, realizados em diversas instituições espalhadas por Portugal.
Como “recetáculo” de muito do saber produzido, pontua a Revista Portuguesa de Musicologia – RPM, periódico académico indexado e com arbitragem científica, que aceita submissões de artigos em todas as áreas da investigação em música. A RPM é publicada em conjunto pela SPIM e pelos dois centros de investigação anteriormente referidos: INET-md e CESEM.
Por último, aludir à recente criação (2019) do Arquivo Nacional do Som que tem por objetivo assegurar a preservação e o acesso universal aos documentos sonoros, gravados num qualquer suporte, produzidos no âmbito de qualquer domínio de prática (artística, científica, documental) e proveniência geográfica.
Instituições… orquestras, seus músicos, e festivais
A este verdadeiro “boom” na formação, qualificação e investigação musicais tem de necessariamente corresponder uma forte ligação com as instituições musicais do país, até porque a qualificação de um grande número de jovens coloca-nos imediatamente perante o cenário do seu futuro profissional. Se é certo que um grande número inicia o seu percurso profissional dando algumas aulas, tocando em agrupamentos ou fazendo reforços em orquestras, um emprego, no verdadeiro sentido da palavra, é algo que tarda. Muitos, aproveitando o facto de pertencermos a uma comunidade europeia, investem ainda mais na formação, realizando mestrados e doutoramentos em países da UE.
Importa referir ainda que são também cada vez em maior número aqueles que iniciam logo a licenciatura no estrangeiro, quer pela sensação de que ficando em Portugal, país pequeno em que todos se conhecem, irão continuar no mesmo tipo de “registo” de ensino, sem grandes diferenças perante aquilo que já conhecem, quer por o custo do nível de vida e facilidades logísticas, em alguns países ser mais baixo do que em Portugal (sobretudo em Lisboa e no Porto), além de, deste modo, mais cedo e facilmente se integrarem em diferentes culturas, métodos de estudo, e de uma sensação de autonomia em relação à família e ao país de origem.
Se o caminho mais habitual é aquele já referido de começar a dar aulas em escolas, escolhendo de preferência, aquelas do ensino especializado da música – o que exige um mestrado em ensino da música, com a realização de estágio e profissionalização – aquilo que possivelmente será o mais pretendido por muitos é ingressar em formações instrumentais, em particular, numa orquestra.
É neste domínio que surge uma nova realidade, o número de jovens músicos portugueses que integram formações orquestrais, muitos com formação realizada no estrangeiro e que, regressando a Portugal, ocupam lugares de destaque em orquestras portuguesas, como são exemplo os irmãos Ana Pereira, concertino da Orquestra Metropolitana de Lisboa, e Marco Pereira, violoncelo solista da Orquestra Gulbenkian, ou ainda Carolina Matos, assistente coordenadora do naipe dos violoncelos da Orquestra Sinfónica Portuguesa.
Outro indicador inovador do vigor da música em Portugal é o número de jovens músicos portugueses que se destacam no plano internacional, como, a titulo de exemplo, Abel Pereira, trompa principal na National Symphony Orchestra (Washington); Filipe Queirós, primeiro solista tuba, na Orquestra Sinfónica do Estado de São Paulo; Adriana Ferreira, flauta principal na Accademia Nazionale di Santa Cecilia (Roma); Jano Lisboa, viola principal, Ricardo Carvalhoso, tuba solo e Vladimir Tolpygo, viola, todos eles na Münchner Philharmoniker; Rute Fernandes, flauta solo, e Filipa Nunes, clarinete na Philarmonia Zurique; Nuno Carapinha, violino, Philharmonia (Londres); David Dias da Silva, clarinete co-principal, na Malaysian Philarmonic Orchestra, e os maestros, Dinis Sousa, maestro principal da Royal Northern Sinfonia (Inglaterra), e Nuno Coelho, maestro convidado da Orquestra Gulbenkian e Dudamel Fellow na LA Phil (Orquestra Filarmónica de Los Angeles).
Ainda neste domínio, como reflexo de uma crescente oferta musical, têm surgido – para além das formações orquestrais verdadeiramente “institucionalizadas” na vida musical portuguesa, como a Orquestra Gulbenkian, Orquestra Sinfónica Portuguesa, a Orquestra Sinfónica, o Remix Ensemble e a Orquestra Barroca, os três da Casa da Música, ou da Orquestra Metropolitana de Lisboa – novas orquestras e agrupamentos, como a Orquestra do Norte, Orquestra Clássica do Sul, Orquestra Clássica do Centro, Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, Orquestra Clássica da Madeira, Orquestra Sinfonietta de Lisboa, Orquestra Filarmonia das Beiras, Orquestra Filarmónica Portuguesa que, numa perspetiva muitas vezes local e regional, têm criado postos de trabalho, colocado estruturas em atividade, estabelecendo temporadas regulares de concertos, e, como consequência muito positiva, criando e sedimentando novos públicos e a proximidade às comunidades envolventes, também como consequência de muitas destas instituições terem serviços educativos dinâmicos.
Esta lógica de crescimento estende-se a outras instituições, como centros culturais (e similares) espalhados por todo o país, desenvolvendo também eles temporadas musicais, frequentemente em articulação com museus e escolas de música, o que, deste modo, contribui para uma oferta cultural mais intensa e presente localmente, mas não necessariamente mais diversificada, sendo frequente a repetição e sobreposição do mesmo tipo ou modelo de oferta de norte a sul de Portugal.
Os Festivais de Música, mesmo aqueles no âmbito da música clássica-erudita, têm tido um crescimento surpreendente, realizando-se maioritariamente no verão, e sendo frequentemente financiados pela Direção Geral das Artes, pelas regiões de turismo, autarquias, e outro tipo de estruturas e instituições locais e regionais, e que desenvolvem temáticas especificas fortemente relacionadas com contextos históricos, turísticos e locais.
Destacam-se, desde os mais antigos, festivais como o Festival de Sintra, cuja origem remonta a 1957, seguido do Festival Estoril-Lisboa, Espinho, Póvoa do Varzim, àqueles que neste início de século XXI se têm destacado, como o Cistermúsica (Alcobaça), os ciclos de Música nos Claustros da Associação Eborae Musicae, os Festivais de Outono da Universidade de Aveiro, o Festival Terras sem Sombra (Alentejo). Exemplos como os Dias da Música no Centro Cultural de Belém, o Festival Internacional de Música do Marvão, Festival de Piano do Algarve, Festival das Artes de Coimbra, Festival Internacional de Piano de Oeiras, Algarve Music Series, numa lista não exaustiva que inclui ainda a Festa do Avante, tudo isto revela como o próprio tecido musical do nosso país tem crescido e se tem renovado, tendo sido capaz de ir ao encontro de uma contemporaneidade que impõe novos modelos de programação.
Concursos e festivais
Os concursos de música, sobretudo os de instrumento, sempre se constituíram como verdadeiros “rituais de passagem” para a idade adulta dos músicos, que se sentem preparados e colocando-se à prova perante um júri e perante a receção do público. Tivemos concursos internacionais de grande relevo, como o Viana da Mota, que, entretanto, se deixou de realizar por desaparecimento do seu fundador, o pianista Sequeira Costa, e temos ainda, além de uma série de novos concursos que se querem afirmar com dimensão internacional, o Concurso Internacional de Piano do Porto-Santa Cecília, organizado pelo Curso de Música Silva Monteiro.
Interessa sobretudo mencionar aqueles que têm uma proximidade com os muitos alunos de instrumento e canto em Portugal. Refiro-me, concretamente, ao Concurso de Interpretação do Estoril, este exclusivamente destinado a obras para solista e orquestra, e, sobretudo, ao Prémio Jovens Músicos, promovido pela Antena 2 da Radiotelevisão de Portugal – ela própria um dos grandes dinamizadores da música erudita em Portugal –, e que pela ação de Luís Tinoco, tem vindo a desenvolver-se num verdadeiro festival de música, com características únicas, como os diversos níveis de concorrentes, as categorias a concurso, e, através do prémio de composição em parceria com a Sociedade Portuguesa de Autores, da própria dinamização da música contemporânea. Estas realizações, não só se constituem como acontecimentos do calendário musical português, como também em marcos importantes nas carreiras dos seus vencedores.
A prática musical como pedagogia
Entre as propostas mais interessantes na atualidade para jovens músicos em formação destacam-se os projetos que são híbridos, ou seja, que têm uma dimensão pedagógica, outra performativa, e alguns, social, e que encontram a sua génese na Orquestra Sinfónica Juvenil, fundada em 1973, dirigida pelo maestro-pedagogo Christopher Bochmann, a quem voltaremos.
A Semana Internacional de Piano de Óbidos – SIPO, criada em 1996 por Manuela Gouveia, é um projeto que tem vindo continuamente a crescer, onde jovens, durante o dia, frequentam master-classes de grandes pianistas-professores, assistindo, à noite, a recitais dados pelos mesmos e participando eles próprios nos últimos recitais.
Já na dimensão orquestral, além das orquestras e agrupamentos das Escolas Superiores de Música do Porto e Lisboa, são também dignos de menção projetos que promovem a participação de jovens – tanto de nível médio de ensino como superior – numa experiência de tocar em orquestra, como o estágio anual realizado pela Fundação Gulbenkian, a Orquestra Sinfónica de Jovens do Porto organizado pela Academia Costa Cabral, ou ainda a Jovem Orquestra de Famalicão.
Neste domínio, destacam-se ainda os estágios da Orquestra APROARTE (Associação Nacional do Ensino Profissional de Música e Artes), a Orquestra de Câmara Portuguesa e a Jovem Orquestra Portuguesa, fundadas por Pedro Carneiro, e a Orquestra XXI, fundada em 2013, um projeto do maestro Dinis Sousa, que reúne jovens músicos portugueses residentes no estrangeiro, com o duplo objetivo de manter uma forte ligação entre estes jovens e Portugal e de levar momentos musicais de qualidade a um público o mais diversificado possível.
Por último, há ainda dois projetos que concetualmente ultrapassam a dimensão puramente musical. O Festival Música Júnior, de António Jorge Nogueira, que tem contado com adesão de centenas de crianças e jovens, e que consiste na realização de um campo de férias que é, simultaneamente, um estágio de orquestra intenso, em que se procura “montar” um concerto final, com a participação de convidados solistas, sendo este frequentemente repetido em diversos locais. A singularidade deste projeto é que tudo acontece num ambiente de férias, protegido e pedagogicamente concebido, com professores e repertório adequado às diferentes faixas etárias e aos diferentes níveis de desenvolvimento musical dos jovens músicos, incluindo também a realização de outras atividades não musicais em grupo, propiciando deste modo novas amizades e experiências em torno da música.
O segundo projeto, inovador pela sua dimensão de intervenção social através da prática orquestral, é a Orquestra Geração, que aplica a metodologia do El Sistema criado na Venezuela, que abrangendo alunos da pré-primária (Orquestra de Afetos) até ao 12º ano (Orquestra Juvenil Geração). Criada em 2007 na Escola Básica Miguel Torga, no Casal de S. Brás na Amadora, esta orquestra encontra-se atualmente instalada em 22 escolas básicas e secundárias nos municípios de Almada, Amadora, Lisboa, Loures, Oeiras, Sesimbra, Vila Franca de Xira (Orquestra de Vialonga) e em Coimbra.
Museologia
Na relação entre instituições musicais e o público, os museus surgem cada vez mais como parceiros ativos na programação musical em intercâmbio e interação com outras instituições, tendo um papel importante, inclusive com o surgimento de novos museus temáticos, como o Museu da Música Mecânica, que foi fundado em 2016, está situado em Palmela e expõe centenas de instrumentos mecânicos.
Também o Museu da Música Portuguesa – Casa Verdades de Faria em Cascais, tendo como esteio as coleções de instrumentos musicais populares portugueses e objetos etnográficos de Michel Giacometti e o espólio de Fernando Lopes-Graça, desenvolve ações no âmbito da investigação, conservação, documentação, comunicação e educação. Apresentando um vasto programa cultural com exposições temporárias, ciclos de concertos, conferências, programas de ação educativa, promoveu o Prémio Lopes-Graça de Composição e, mais recentemente, o Prémio de Composição Machado e Cerveira.
Por seu lado, o Museu Nacional da Música, que há vinte e cinco anos está provisoriamente instalado na estação de metro do Alto dos Moinhos em Lisboa, e que se prevê que seja finalmente alojado no Convento de Mafra, com abertura ao público prevista para 2023, encerra um precioso acervo com instrumentos históricos únicos, como o violoncelo Stradivarius “Rei de Portugal”, que pertenceu ao Rei D. Luís, ou os cravos Antunes e Taskin, instrumentos que têm vindo a ser restaurados e promovidos pela direção dinâmica da sua diretora, Graça Mendes Pinto, sendo utilizados em recitais e concertos realizados em algumas das principais salas do país, além de serem gravados por grandes instrumentistas internacionais.
Composição Musical
A composição musical adquiriu – nomeadamente através do legado de figuras como Luís de Freitas Branco, Fernando Lopes-Graça, Joly Braga Santos, Jorge Peixinho e Emmanuel Nunes – um estatuto de referência e de verdadeira identificação nacional.
Neste domínio, é incontornável mencionar a ação de décadas de Christopher Bochmann, Álvaro Salazar, Cândido Lima e António Pinho Vargas, formando gerações de compositores, entre eles, Carlos Caires, Luís Tinoco, Carlos Azevedo, Carlos Marecos, Sérgio Azevedo, Carlos Guedes, Pedro Amaral, Nuno Côrte-Real ou João Madureira.
São também dignas de realce outras figuras cimeiras da música portuguesa contemporânea, como Alexandre Delgado, Eurico Carrapatoso, João Pedro Oliveira, António Chagas Rosa, ou mesmo, entre os (mais) jovens compositores, Vasco Mendonça, Pedro Faria Gomes, Jaime Reis, Nuno da Rocha, Daniel Moreira ou Igor Silva, e de jovens compositoras – depois do hiato da geração de Constança Capdeville, Clotilde Rosa e Isabel Soveral – com Ana Seara, Andreia Pinto Correia, Fátima Fonte, Ângela Ponte ou Sara Carvalho, artistas com linguagens e conceções artísticas por vezes quase antagónicas, que se têm afirmado e granjeado reconhecimento internacional.
Historicamente, no âmbito da interpretação e criação musical contemporânea, temos necessariamente de destacar o papel do Grupo de Música Contemporânea de Lisboa – GMCL, fundado em 1970, por Jorge Peixinho, pois foi o primeiro grupo em Portugal a desempenhar um papel histórico de vanguarda na abertura da sociedade portuguesa à estética musical do seu tempo, seguido pela Oficina Musical (Porto), esta fundada em 1978 por Álvaro Salazar. Estes são projetos que foram complementados e continuados pela Miso Music Portugal – MMP, ao qual se associam o Centro de Investigação & Informação da Música Portuguesa, com uma importante plataforma digital, o Festival Música Viva, e, mais recentemente, o Sond’Ar-te Eletric Ensemble, todos eles fundados por Paula e Miguel Azguime, fomentando a criação contemporânea, com iniciativas nas áreas da preservação, investigação, criação, produção, edição e divulgação da música portuguesa no país e no estrangeiro.
Ainda no âmbito da interpretação de música contemporânea é de referir Sara Carvalho e o Momentum Ensemble, Jaime Reis com o festival itinerante Dias de Música Eletroacústica (DME), mas também, Madalena Soveral, Elsa Silva, Miguel Borges Coelho, Alberto Roque e Ana Telles, promovendo quase em exclusivo a interpretação, divulgação e gravação da música de compositores contemporâneos.
Importa sublinhar ainda que muitas instituições, e de forma muito destacada a Fundação Calouste Gulbenkian, desde os tempos dos Encontros Gulbenkian de Música Contemporânea (1977-2002) com a presença, entre outras figuras cimeiras, de Emmanuel Nunes, e a Casa da Música no Porto, com o Remix Ensemble e o seu projeto de compositores em residência, ou os Estúdios Victor Córdon do OPART (Teatro Nacional de São Carlos e Companhia Nacional de Bailado) com concurso para jovens compositores, têm vindo a impor a prática frequente e salutar da encomenda de novas obras musicais, o que para além do estímulo à composição, constitui-se como uma oportunidade de fazer conhecer os compositores nossos contemporâneos, frequentemente inseridos em programações regulares, o que promove uma salutar vivência entre os diversos reportórios.
Divulgação, difusão e interpretação
É difícil – para não dizer impossível – dissociar a divulgação musical da interpretação, pois são os músicos, ao vivo ou em gravações, o “veículo” da materialização do som e da difusão das obras musicais.
Acompanhando o movimento de expansão da Música em Portugal, verifica-se que o número de registos fonográficos tem aumentado exponencialmente. No plano discográfico internacional, o mais reconhecido e procurado é o edificado em torno do reportório da época de ouro da polifonia da Escola da Sé de Évora e dos grandes polifonistas, como Duarte Lobo, Frei Manuel Cardoso, Filipe de Magalhães, etc., com inúmeras gravações de referência por grupos internacionais, como os The Sixteen, The Tallis Scholars ou o Huelgas Ensemble. Na atualidade, destaca-se e começa-se a impor o grupo português Os Cupertinos, cuja gravação do Requiem de Frei Manuel Cardoso, obteve um dos mais importantes prémios da critica discográfica internacional.
Nesta dimensão de referência internacional, impõe-se Maria João Pires, um caso sobre todos os pontos de vista excecional, com uma carreira única no panorama internacional, mas também, artistas como Ana Bela Chaves, Elisabete Matos, Artur Pizarro, Pedro Burmester, António Rosado, António Saiote, Sérgio Carolino, Abel Pereira, Pedro Carneiro, Joana Carneiro, Ana Quintans, João Barradas, entre tantos outros, com carreiras internacionais e que se têm destacado no grande reportório internacional.
Provavelmente aquilo que mais nos interessa verificar – até como tendência atual – é o circuito virtuoso entre a investigação e gravação do reportório musical português, em que, frequentemente, através da sinergia de vários parceiros, há uma conexão, aliás lógica, entre a investigação, a edição em partitura, execução e a gravação da obra musical.
Nesse sentido, destaca-se o Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa – MPMP, que surgiu em 2010, como uma plataforma de descoberta e divulgação da música e dos músicos portugueses, e que tem desenvolvido um conjunto de iniciativas, por uma equipa jovem, dinâmica, liderada por Edward Ayres de Abreu, em que se salienta a edição de livros e de inúmeras gravações, em particular na coleção Melographia Portuguesa, com a integral das sonatas para piano de João Domingos Bomtempo por Philippe Marques, as sonatas de Carlos Seixas para instrumentos de tecla, em instrumentos históricos, por José Carlos Araújo, ou ainda, edições discográficas de obras Ruy Coelho, Alfredo Keil, João Guilherme Daddi, João Pedro Oliveira, Alexandre Delgado ou Eurico Carrapatoso.
Vale a pena referir ainda, no âmbito do MPMP, a publicação da revista Glosas, a única revista especializada sobre música portuguesa, e o prémio Musa, criado com o intuito de distinguir a excelência musical da composição. Mais recentemente foi ainda criado o Ensemble MPMP, o qual tem desenvolvido um importante trabalho de audições modernas de obras de João Domingos Bomtempo, como o Requiem “À memória de Camões”, Libera me, Quatro Absolvições, e os Mattutino de’morti, recentemente gravados.
Também o Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal (CEMSP), criado por Massimo Mazzeo e Iskrena Yordanova, com sede no Palácio Nacional de Queluz, e em interação com a orquestra Divino Sospiro, pretende dinamizar a ligação entre a investigação, as práticas de interpretação histórica, a divulgação e a programação.
Neste âmbito são de referir ainda Os Músicos do Tejo, associação cultural com projeto musical no campo da música antiga fundado e dirigido por Marcos Magalhães e Marta Araújo, sob a forma de diversas formações, que vão desde a música de câmara até à música orquestral e coral, desenvolvendo uma parceria com o Centro Cultural de Belém que os levou a produzir três óperas, editando discos, e apresentando-se em inúmeros concertos em Portugal e no estrangeiro. Entre os discos publicados destacam-se As Árias de Luísa Todi com a soprano Joana Seara, Do Barroco ao Fado, Uma viagem pela música portuguesa, este com a soprano Ana Quintans, e as óperas Il Mondo della Luna de Pedro António Avondano, La Spinalba, ovvero Il vecchio matto, de Francisco António de Almeida, bem como, do seu Scherzo Pastoral Il Trionfo d’Amore, que tem tido um excelente acolhimento por parte da crítica internacional.
Todo um conjunto de intérpretes que têm vindo a produzir um grande número de gravações de referência do reportório português merecem destacada referência e agradecimento. Entre estes, os Segréis de Lisboa, grupo de música antiga, fundado por Manuel Morais em 1972, Nella Maissa, na coleção PortugalSom (inicialmente Discoteca Básica Nacional) da Secretaria de Estado-Ministério da Cultura, Olga Prats, ou o próprio Opus Ensemble. Também Álvaro Cassuto, o decano dos maestros portugueses, gravou – entre outras obras e compositores – a integral das sinfonias de Luís de Freitas Branco e Joly Braga Santos, além da sinfonia À Pátria entre outras obras de Viana da Mota.
Entre os músicos mais ativos, referir Artur Pizarro que, na sua extensíssima discografia inclui compositores portugueses, a solo e com orquestra, como Alfredo Napoleão, Viana da Mota e Fernando Lopes-Graça. João Paulo Santos, que, enquanto pianista, maestro, investigador e editor, tem pugnado incansavelmente pela redescoberta do reportório operático e de câmara de compositores portugueses, entre finais do século XVIII à contemporaneidade, em particular das óperas de Alfredo Keil e Augusto Machado e da canção de câmara de Fernando Lopes-Graça. Também Nuno Vieira de Almeida, pianista eclético, que se tem destacado na gravação dos ciclos de integrais de canções de câmara de Luís de Freitas Branco, Joly Braga Santos, e em muita da extensa produção para esta formação de Fernando Lopes-Graça.
No âmbito do reportório para piano solo “português”, tem-se destacado o pianista francês Bruno Belthoise, que tem vindo a gravar a solo e em trio – Trio Pangea, com a violoncelista Teresa Valente Pereira e o violinista Adolfo Carbajal – uma parte muito considerável do reportório de compositores portugueses, com particular incidência na primeira metade do século XX, para além de um projeto de edição de partituras para piano de compositores portugueses, inclusive contemporâneos, e sua difusão no ensino especializado da música em França. Ainda no âmbito do piano é de referir as recentes gravações de Sofia Lourenço, com Portuguese Piano Music: Daddi e Viana da Mota, Luísa Tender, com a integral das sonatas para piano de João Domingos Bomtempo, João Costa Ferreira, do que se prevê vir a ser uma integral de Viana da Mota, e Vasco Dantas Rocha, com Poetic Scenes for Piano, com obras de Viana da Mota, Rey Colaço, Burnay e Óscar da Silva.
No âmbito da música de câmara, além do Trio Pangea, é importante referir Bruno Borralhinho, violoncelista na Orquestra Filarmónica de Dresden e maestro radicado na Alemanha, que tem feito um notável trabalho de investigação, inclusive com uma tese de doutoramento e gravação do reportório para violoncelo de compositores portugueses, tanto de obras para orquestra como de câmara, este último com a pianista Luísa Tender.
Portugal como destino
A concluir, não se pode deixar de referir o paradoxo que se vive em Portugal, onde, a um cenário de crescente sucesso e internacionalização dos músicos e da música portuguesa, corresponde um constante desejo de regresso dos nossos músicos, mesmo sabendo eles que o país não dispõe das melhores condições para os receber. Como vimos, são muitos que o desejam, dos mais novos aos consagrados, como a própria Maria João Pires. No entanto, para que tal aconteça, Portugal como destino – como enunciou Eduardo Lourenço – tem de ser capaz de, urgentemente, olhar a (sua) Cultura como uma dimensão essencial do seu futuro enquanto país.
Bruno Caseirão
(1975)
Doutorando em Educação Artística no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e investigador do CESEM na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Investigador, docente no Conservatório de Música da Metropolitana. Colaborador da RDP – Antena 2, do Teatro Nacional de São Carlos e do Jornal de Letras.