O sindicalismo como forma de poder: problemas e caminhos em aberto

Introdução

Dois tipos de considerações gerais sobre o sindicalismo são recorrentes. A primeira, de índole histórica, faz a apologia do crucial papel das lutas operárias e sindicais, que desde a primeira metade do século XIX tiveram como missão a dignificação das condições de vida e de trabalho, bem como uma estruturação da identidade do operariado moderno enquanto classe social. Como corolário disso, o século XX confirmou a importância do sindicalismo na emancipação da classe trabalhadora, designadamente na obtenção de inegáveis progressos no domínio dos direitos laborais (sobretudo no contexto europeu), de que a conquista das 8 horas de trabalho diárias (por sinal o tema sobre o qual versou a primeira convenção da Organização Internacional do Trabalho, criada em 1919) é apenas um exemplo eloquente. De igual modo, o Estado-Providência e todo o edifício legislativo que consubstanciou o direito do trabalho, sobretudo desde o pós-guerra até aos anos 80, foram um garante de estabilidade e segurança no salário, nos horários e nas condições de trabalho. Em Portugal este processo, em grande medida, só ocorreu depois do 25 de Abril de 1974.

De par com estas considerações históricas, outras considerações (mas de uma história mais recente, das últimas décadas, remetem-nos para olhares e diagnósticos onde a vulnerabilidade e a(s) crise(s) foram ganhando expressão, quer no plano discurso, quer no das práticas sociais. Por um lado, podem alinhar-se fatores “externos” (evidentes à escala internacional desde o fim do fordismo), como o reforço da globalização neoliberal, e a expressão da financeirização que aprofundou muito a mercantilização do trabalho e contribuiu para acentuar a já pronunciada fragilidade do sindicalismo, desde logo nas periferias. No contexto português, a crise económica e social associada à intervenção da Troika na sequência do pedido de resgate financeiro de 2011, quer a adoção de medidas de austeridade no plano interno (mormente pelo XIX Governo Constitucional), forçaram o sindicalismo a expor mais as suas vulnerabilidades (Silva, Estanque e Costa, 2020). Por outro lado, também fatores “internos” colocaram em evidência sinais de crise, tais como as dificuldades de agregação de interesses e de construção de identidades coletivas, o défice de eficácia da ação sindical, o temerário rejuvenescimento de quadros, a baixa presença de mulheres nas direções dos sindicatos, a limitada abertura a outros temas e estruturas não sindicais, etc.

(Re)pensar os poderes do sindicalismo

Os tempos de pandemia persistente que ainda vivemos vieram aumentar a pressão sobre as organizações representativas dos trabalhadores. Nessa medida, ganha acuidade o convite para debater o lugar chave do sindicalismo na sociedade e pensar os caminhos alternativos de que pode ser protagonista. Em meu entender, esse exercício converge para um debate relativo aos designados “recursos de poder” sindical (Lenhdorf et al., 2017), que num livro recente (Costa et al., 2020) tive ocasião de revisitar coletivamente.

A discussão sobre o fenómeno do poder no quadro da análise do sindicalismo não deixa de nos confrontar com alguns dilemas: (i) por um lado, o dilema entre poder e contrapoder (tanto mais que o sindicalismo tem esse legado histórico de contrapoder, de contrapeso face aos poderes do “capital”): (ii) o dilema das assimetrias e dos protagonistas do exercício do poder (tanto mais que os poderes exercidos em contexto de globalização económica tendem a subalternizar os poderes no domínio social) (iii), ou ainda o dilema entre autonomia vs dependência (pois importa sempre indagar o que está ou não está ao alcance dos sindicatos poderem controlar no sentido de exercerem influência sobre governos, empresas ou sobre a opinião pública em geral).

À luz da situação recente e atual, vale por isso a pena passar em revista alguns poderes sindicais, quer como forma de identificar os problemas que lhe estão associados, quer como pretexto para identificar possíveis vias para o seu revigoramento. Detenho-me, pois, na linha do exercício promovido pela mais recente publicação do Observatório sobre Crises em Alternativas (Reis, 2020), em quatro formas de poder: estrutural; organizacional (associativo); institucional; societal. Para cada uma destas formas de poder identifico um conjunto de problemas, assim como um possível leque de alternativas para lidar com tais adversidades.

Poder estrutural

Esta forma de poder remete para a posição dos trabalhadores assalariados no sistema económico (onde se vende a força de trabalho em troca de um salário). Em si mesmo, o poder estrutural é desequilibrado e essa assimetria já está inscrita no sistema socioeconómico. Ora, a posição dos assalariados nesse sistema remete quer para o lugar ocupado no mercado de trabalho (o que é condicionado pela posse de qualificações ou pelo volume de desemprego), quer para a capacidade de negociação no mercado de trabalho (em resultado do estatuto e da localização estratégica de um trabalhador ou grupo de trabalhadores num setor industrial, isto é, se dispõem de autonomia ao ponto de influenciar as condições de trabalho, por exemplo).

Em contexto de pandemia, sobressaíram dificuldades que já antes existiam neste domínio. Por um lado, afigura-se como diminuta a capacidade de negociação dos trabalhadores em contexto de trabalho, desde logo porque o desemprego e as ameaças de despedimento coletivo em empresas de trabalho temporário, em setores como a hotelaria e turismo, etc., passaram a assumir contornos dramáticos. Por outro lado, multiplicaram-se as situações de trabalhadores vulneráveis: trabalhadores precários (em call centres, por exemplo) forçados a trabalhar em condições de grande insegurança, a aceitarem revogações contratuais por mútuo acordo, ou a verem os seus contratos a termo caducados (mesmo nas situações em que as empresas beneficiam de apoios do Estado durante o período de vigência do lay-off). Em terceiro lugar, o confinamento geral e a paragem generalizada da economia impediram qualquer esboço de resposta própria bem participada pelos trabalhadores.

Perante este tipo de problemas, creio que caberá ao sindicalismo, como alternativa, perseguir o reforço da sua componente de denúncia das múltiplas situações de atropelos aos direitos laborais, desde logo daquelas em que as assimetrias entre capital e trabalho porventura se agravaram em contexto de crise sanitária. Mas igualmente de denúncia das situações em que a posição estrutural dos trabalhadores no sistema socioeconómico se tornou mais enfraquecida, inclusive com reflexos nos planos físico e psíquico. No final de 2020, um estudo citado pelo Sindicato Nacional do Ensino Superior (com base num inquérito online a que responderam 355 docentes do continente e ilhas entre 19/06/2020 e 30/07/2020), dava conta que metade dos docentes do ensino superior apresentava sinais de fadiga elevada e de exaustão durante a pandemia de Covid-19 e que mais de um terço se encontrava em burnout em virtude das más condições de trabalho. Ou seja, um sinal de precariedade que assume vários contornos, que encontram expressão não só em situações de bloqueio de carreiras, como na desmotivação generalizada em contexto de incerteza.

Por outro lado, além do esforço sindical, seria expectável que o poder político soubesse incorporar as vozes sindicais nas suas preocupações estratégicas. Mas não estou propriamente convicto de que o célebre Plano de Recuperação e Resiliência tenha colhido a mesma proporção de opiniões sindicais, quanto as que porventura foram recolhidas junto dos setores empresarias, num contexto em que pensar o futuro pós-pandemia se tornou mais urgente.

Por fim, talvez valha a pena mencionar um exemplo recente – a eleição de um representante de trabalhadores (mais próximo dos sindicatos) para o Conselho de Administração da TAP – como algo que configura, pelo menos no plano teórico ou simbólico, uma possibilidade dos trabalhadores ajudarem a influenciar decisões empresarias num sentido que não os penalize ou secundarize (diante de cenários de despedimento que estão sempre em cima da mesa).

Poder associativo/organizacional

Este é um tipo de poder que, em certo sentido, poderia compensar o défice de poder estrutural do sindicalismo. Na verdade, o que está em questão é um critério essencialmente quantitativo, de contabilizar o número de trabalhadores inscritos em sindicatos. A filiação sindical (pagamento de uma quota enquanto associado) e a taxa de sindicalização (relação entre o número de sindicalizados e de sindicalizáveis) são indicadores centrais na avaliação da representatividade e na perceção da viabilidade e efetividade da negociação coletiva, diálogo social e participação nas relações coletivas de trabalho (Sousa, 2011; Costa e Rego, 2021). Note-se, no entanto, que ter mais associados não significa necessariamente maior capacidade de mobilizar membros, dependendo esta capacidade do leque de atividades desenvolvidas no e pelo sindicato.

De entre os principais problemas suscetíveis de pôr em causa a expressão da representação coletiva que é inerente ao poder associativo, destacam-se: o individualismo contemporâneo, que o confinamento veio potenciar, mormente ao induzir uma ideia de fechamento, de autocentramento; a menor propensão para a captação de associados, pois não raras vezes o clima de incerteza económica e até de medo levam a melhor sobre a adesão a projetos coletivos; os “novos” modos de trabalhar: não obstante poder-se afirmar que teletrabalhador está investido dos mesmos direitos e deveres de um não teletrabalhador (em termos de formação ou promoção na carreira, entre outros), em teletrabalho a dimensão relacional presencial tende a perder-se. Consequentemente, a capacidade de negociação individual do trabalhador fica enfraquecida, assim como o exercício da dimensão coletiva do trabalho.

Quanto às possíveis alternativas para tornear os défices de poder associativo, podiam mencionar-se: a aposta em políticas de incentivos (com quotas simbólicas para trabalhadores desempregados ou precários); ou o início de um trabalho de recrutamento sindical mais precoce, criando elementos de sensibilização junto de jovens e comunidade académicas (o exemplo de atuação tradicional de alguns sindicatos suecos, bem anterior à pandemia, revela práticas sindicais assentes na disponibilização de mecanismos aconselhamento/orientação vocacional aos jovens universitários sobre os processos de transição para a vida ativa, a troco de uma quantia simbólica ao longo do percurso escolar).

Poder institucional

Este recurso de poder envolve um processo de regulação do mercado de trabalho (ex. em torno de questões como salário mínimo nacional, subsídio de desemprego, etc.), evidenciando, assim, compromissos e sensibilidade para a via legislativa. A legislação laboral ocupa aqui um lugar importante e, em si mesma, incorpora (ou condensa) resultados de processos de conflito e de negociação. Na verdade, trata-se de duas vias complementares e ambas importantes: a primeira porque busca legitimar descontentamentos sob formas de protesto devidamente regulamentadas; a segunda porque coloca em destaque, por exemplo, a posição do sindicalismo na negociação coletiva.

Tendo por referência o contexto português, alguns problemas associados a esta forma de poder podem ser referenciados. Por exemplo, as alterações à legislação laboral materializadas na Lei n.º 23/2012, nomeadamente as relativas ao tempo de trabalho e à remuneração do trabalho extraordinário, bem como a questão da caducidade das convenções coletivas e os novos critérios de extensão, coartaram o poder institucional dos sindicatos de forma bem visível, acabando por ter um efeito contrário ao anunciado pelo governo da altura – a resolução de bloqueios existentes – e exacerbar os níveis de conflito.

Por outro lado, no plano da macro-concertação, o escrutínio das atas da Comissão Permanente de Concertação Social entre 2009 e 2015 evidenciou sinais de enfraquecimento ou tensão no diálogo social: excesso de governamentalização; subordinação à agenda externa da UE (em particular no que respeita à aplicação do Memorando de Entendimento assinado com a troika); falta de eficácia dos resultados das negociações, traduzida em dificuldades na conciliação das decisões do diálogo social quando os acordos não são assinados pela totalidade dos parceiros sociais ou nas situações em que os conteúdos alargados das negociações abrangem vários domínios legislativos sem condições de execução definidas, etc. (Almeida et al., 2017). Em terceiro lugar, e já em contexto pandémico, a suspensão do direito à greve (durante o estado de emergência), ou a suspensão da audição das organizações sindicais em matéria de elaboração de leis do trabalho tornaram igualmente evidentes as fraquezas sindicais do ponto de vista institucional.

De entre as possíveis vias para tornar mais eficaz o poder institucional dos sindicatos, poderá mencionar-se, por exemplo, um desafio sempre inerente ao diálogo social e à negociação coletiva que é o da incorporação de conteúdos para além dos de ordem salarial, tais como: proteção de dados pessoais; garantia da salvaguarda da relação entre trabalho e família; direito “à desconexão”; não discriminação laboral em função da orientação sexual; stress no trabalho, proteção ambiental, etc. A estes conjuntos de clusters temáticos (sintonizados com os objetivos de desenvolvimento sustentável), pode igualmente somar-se o estímulo à celebração de pactos sociais (curiosamente, na Comissão Permanente de Concertação Social, em meados de 2020 apenas constava uma declaração de compromisso para a Covid-19). Como devem ainda mencionar-se todos os contributos de que os sindicatos possam ser portadores para um efetivo upgrade dos direitos laborais a todos os que trabalham nas plataformas digitais. Se os sindicatos souberem incorporar nas suas agendas esta discussão como prioritária e permanente (na linha de algumas pistas avançadas no Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho), isso seria também uma forma de incrementar o seu poder institucional.

Poder societal

Por fim, esta forma de poder, como a designação deixa antever, é uma espécie de poder de colaboração, de abertura à sociedade. Com efeito, nela se destaca uma vertente de cooperação, assente em redes e coligações com outras organizações da sociedade civil organizada (ou movimentos sociais), no sentido de se desenvolverem objetivos comuns e compromissos mútuos com esses atores. De igual modo, inerente ao poder societal está uma vertente discursiva, suscetível de influenciar o discurso público e falar ao “coração da sociedade”, capaz de abrir caminho a estratégias inovadoras.

Os obstáculos ao poder societal dos sindicatos podem explicar-se, em boa medida, pelo défice de tradições de coligação entre organizações sindicais e não sindicais. E para esse défice concorrem vários motivos: distintos estilos organizacionais, de comunicação e tomada de decisão; competição entre organizações sindicais; formas distintas de ação coletiva (atuação sindical clássica de pendor institucional versus ação direta e extra-institucional dos novos atores sociolaborais); heterogeneidade e défice de cooperação entre atores sociolaborais; caracter descontínuo (intermitente) das organizações de trabalhadores precários. Mas se o poder societal significa predisposição para a novidade, constata-se que, sobretudo em contexto pandémico, a “sociedade digital” veio impôr-se de forma abrupta, não planeada, quase suscitando uma adaptação forçada.

Daí que algumas alternativas capazes de fortalecer esta forma de poder se possam desenhar no horizonte. Por um lado, atendendo ao facto de trabalhadores temporários, em período experimental, com contratos a prazo, a recibo verde, entre outros, serem os mais vulneráveis nesta crise pandémica, torna-se urgente ousar uma outra política de alianças entre os “velhos” sindicatos e as “novas” organizações de trabalhadores precários. Importa, por isso, apostar em fatores potenciadores de convergência e aprendizagem recíproca: pressão conjunta de denúncia e resistência perante situações de desemprego e precarização; combinação entre o sentido tático das lutas sindicais e a virtuosidade do ativismo digital típico das associações de precários, etc. Por outro lado, os sindicatos precisam de tirar o melhor partido das redes sociais não só para recrutar novos membros, como para comunicar e falar “ao coração” da sociedade. Esta pandemia veio pressionar implicitamente os sindicatos a mobilizarem os seus associados no apoio a campanhas “à distância”, usando recursos e estratégias de comunicação digital (e note-se que isso seria também uma forma de reforçar o poder associativo mencionado atrás). Mesmo reconhecendo que o foco do sindicalismo deve continuar a residir no local de trabalho e na proximidade com os trabalhadores, um reforço da comunicação digital, ainda que de modo complementar, torna-se cada vez mais necessário.

Nota final

Estas quatro formas de poder sindical (que, por sinal, se podem combinar entre si) são apenas outros tantos modos de olhar para o sindicalismo e de assinalar quer os seus sinais de fraqueza, quer as vias para o seu fortalecimento. Porventura, reconduzem-nos a cenários mais pessimistas do que otimistas. Porém, ao mesmo tempo, abrem pistas a partir das quais se podem combinar critérios de análise, como a representatividade, o conflito e a negociação, as distintas escalas de análise (macro e micro) ou distintos planos de atuação (nacional e internacional), as formas de adaptação a novos tempos e a novas estratégias.

Num cenário pós-pandémico ainda por construir, é fundamental que o sindicalismo saiba combinar o inelutável peso das suas heranças históricas com a disputa de espaços de poder nos vários domínios aqui enunciados. Para tal, é igualmente crucial que os sindicatos sejam consultados e escutados por decisores políticos e agentes económicos e, simultaneamente, saibam reinventar-se para continuarem a merecer crédito junto da opinião pública.

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