CEM ANOS DE LUTA PELA LIBERDADE E PELO SOCIALISMO

Em Portugal, um dos primeiros sinais de organização associativa e popular, nos finais do século XVIII, foi a criação de grupos e bandas de música, sob a influência da Revolução Francesa. Desde então, a actividade associativa, cívica e cultural esteve sempre estreitamente ligada às lutas de libertação, na Revolução de 1820 e em todo o século XIX, com a formação de associações culturais e educativas e mútuas e cooperativas que também prestavam apoio financeiro aos mais desfavorecidos. A classe operária e os sectores avançados da pequena e média burguesia criavam assim condições para que, em 5 de Outubro de 1910, eclodisse e se afirmasse a Revolução Republicana, caindo a monarquia e um sistema corrupto, em que o rei era uma figura sem crédito mesmo do ponto de vista de finanças próprias e da corte.

Em 6 de Março de 1921, debaixo de uma forte influência do anarco-sindicalismo e face à incapacidade e às crises sucessivas das forças republicanas e reformistas, foi criado um partido político que teve uma caminhada instável até ao golpe fascista de 28 de Maio de 1926. Surgia assim, quatro anos depois da Revolução de Outubro de 1917, um Partido ainda débil, mas corajoso, o Partido Comunista Português, que assumia os legítimos interesses e sonhos da classe operária portuguesa e de todos os trabalhadores.

Bento Gonçalves, um operário do Arsenal da Marinha, em Lisboa, foi o seu último secretário-geral no período da 1ª República e preparou-o, depois do golpe militar e ditatorial de 1926, para resistir e combater. Álvaro Cunhal e outros grandes dirigentes reorganizaram-no e fortaleceram-no na clandestinidade e na violência inaudita dos 48 anos que se seguiram, até 1974. Dos vários partidos que existiram na 1ª República, até 1926, o PCP foi o único que  não se dissolveu e que se organizou de modo a que nem mesmo as prisões nem os desterros para o Campo de concentração do Tarrafal o impediram de continuar a luta contra o fascismo, pela liberdade e pela felicidade do nosso povo.

Bento Gonçalves foi morto pelo regime fascista no Campo do Tarrafal em 1942. Muitos comunistas, anarco-sindicalistas, republicanos e outros democratas sofreram no Tarrafal, nas prisões do Aljube, de Caxias e Peniche, as torturas da PIDE, a que, em tantos e tantos casos, só a morte veio pôr fim.

Nessa noite de 48 anos de medo e de repressão, surgiram figuras fascinantes da cultura e do combate incessante contra o regime fascista. Falo-vos de Bento de Jesus Caraça, eminente cientista e matemático que ligou sempre as questões culturais às batalhas pela libertação do nosso país e do nosso povo. Álvaro Cunhal foi um grande e decisivo secretário-geral do PCP, tendo organizado e participado nessa luta imensa pela liberdade, pelos direitos fundamentais dos trabalhadores, pelo saber e a cultura do povo português, publicando livros valiosos e fundamentais, antes e depois de Abril, em que se incluem romances e contos sobre a realidade portuguesa e as lutas clandestinas.

Construir o 25 de Abril

O 25 de Abril de 1974 não surgiu do nada. Foi construído ao longo de muitos e muitos anos, no silêncio, na clandestinidade, no imenso sofrimento e na coragem de querermos ser dignos de nós próprios e da nossa história.

Em 1945, centenas de milhares de portugueses festejaram a vitória sobre o nazi-fascismo. O PCP na clandestinidade e forças de unidade democrática continuaram a combater o poder de Oliveira Salazar e a repressão. Em 1958, as eleições para a presidência da República foram marcadas pela candidatura do General Humberto Delgado, que abandonava assim o regime fascista e assumia as legítimas aspirações do povo português, com o apoio do PCP e de Arlindo Vicente, seu inicial candidato. Em 1960, Álvaro Cunhal e outros dirigentes do partido conseguiram evadir-se da prisão do Forte de Peniche. Em 1962, no 1° de Maio, cem mil pessoas manifestaram-se em Lisboa e foram desencadeadas no Alentejo as lutas vitoriosas pelas 8 horas de trabalho nos campos. Em 1961, tinham acontecido em Angola as primeiras acções pela libertação das colónias portuguesas. Agostinho Neto e outros dirigentes, que haviam crescido politicamente, enquanto estudantes, em Portugal, lançavam assim um enorme movimento de luta contra o colonialismo que foi fundamental na criação de condições para o 25 de Abril de 1974, sempre com o forte apoio e a solidariedade das forças progressistas, nomeadamente do PCP, que esteve na base da saída clandestina de Agostinho Neto de Portugal para organizar e iniciar a luta de libertação em Angola, e que aprofundou as orientações programáticas para a luta clandestina e semi-legal contra a guerra colonial.

Em 1969, na CDE, os comunistas e, também com coragem e força, católicos progressistas, puseram a questão do fim da guerra e da independência das colónias portuguesas na ordem do dia.

Nesse ano e nos anos seguintes, os jovens e todos os que tinham amor à liberdade e ao futuro uniram-se e lutaram corajosamente, já ao lado de muitos militares das Forças Armadas. Afirmámos a palavra de ordem de que os jovens deviam deixar de fugir ao serviço militar e de se exilarem em França e noutros países para, mesmo em África, poderem lutar contra a guerra, ajudando a consciencializar os outros jovens que vinham de cidades, vilas e aldeias e não tinham uma visão correcta do que se passava.

A guerra colonial foi, portanto, um dos caminhos fundamentais que levaram ao 25 de Abril. Falar da guerra em África e denunciá-la significava prisão, tortura e morte, tal como acontecia na barbárie em Africa, nas colónias. Mas o povo português sofria com a guerra. 150.000 militares estiveram nas colónias e na sua maioria ficaram marcados para toda a vida, com problemas físicos e psíquicos que ainda hoje nos afligem. Cerca de 10.000 morreram e 30.000 ficaram feridos e estropiados.

Sinais da Revolução

Numa das Comissões de Base do CDE, o movimento criado em 1969, conhecemos um jovem tenente da Marinha de Guerra. Havia, então, já vários militares a surgirem nas bases do movimento democrático, que entretanto se unira, no processo de participação nas falsas eleições de 1973 para a Assembleia Nacional e no 3° Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro. Foi ele quem me entregou uma das hipóteses de trabalho do programa do Movimento das Forças Armadas, para nós apreciarmos, em círculo restrito de apenas três membros da direcção da CDE, a fim de darmos opinião e fazermos sugestões. Nessa altura, oficiais milicianos dos quartéis de Lisboa organizavam-se e também reuniram connosco, já na fase da preparação para o golpe militar. Outros membros da oposição foram estando um pouco por dentro do que se passava, num secretismo exigente e decisivo.

Claro que os militares do 25 de Abril agiram com critérios e objectivos próprios, na rigorosa clandestinidade a que eram obrigados, mas as lutas que eclodiam na sociedade portuguesa aproximavam-nos uns dos outros. Foi assim que, no dia em que o MFA desencadeou o golpe militar, a direcção do Movimento Democrático reuniu em casa de um então Tenente-Coronel do Exército, que estava em Angola, para levar a cabo a organização, a luta e o acompanhamento do golpe militar nas ruas de Lisboa, na região e no país.

O povo de Lisboa, mais uma vez, como em 1383/85, em 1640, em 1820 e em 1910, veio corajosamente para as ruas, apoiar as forças armadas que desencadearam o golpe militar e impedir que outras forças de dois quartéis  de Lisboa, com a Legião Portuguesa e a PIDE, pudessem combater a revolução que se anunciava.

Foi heróico o comportamento dos militares do 25 de Abril, como foi decisivo o apoio popular dos que vieram para as ruas, mesmo perante os apelos do MFA para que ficassem em casa. Foram os dias e os meses mais lindos das nossas vidas de jovens e das gerações mais velhas. Aprendemos todos a fazer a revolução e a acompanhar a reforma agrária, as nacionalizações dos Bancos, Seguradoras e grandes empresas.

Depois veio o habilidoso e subterrâneo golpe militar de direita, em 25 de Novembro de 1975, como tinham vindo já os atentados bombistas, a queima de centros de trabalho do PCP e sedes do Movimento Democrático e de Sindicatos. Veio a repressão, a prisão de militares revolucionários, a destruição de caminhos fundamentais na economia, na vida social e na cultura, nas conquistas da Revolução que ainda continuamos a defender. Aconteceu a adesão à Comunidade Europeia e todo este longo caminho que deixou como resultado a destruição de sectores produtivos fundamentais, na indústria, na agricultura e nas pescas.

Situação actual e perspectivas

Ficámos com as leis laborais enfraquecidas e os direitos fundamentais cada vez mais atingidos. A nossa existência tornou-se muito dura e difícil. Importamos cerca de 80% daquilo que consumimos em Portugal, os salários são baixos e o custo de vida é mais elevado que noutros países mais desenvolvidos da Europa. Perdemos autonomia, independência e identidade. Os governos são de direita na prática, apesar das propostas, lutas e esforços do PCP, do movimento sindical, dos que lutam pela democracia e pela liberdade.

Temos um imperialismo brutal que se aproveita do vazio, das derrotas e da inexistência de equilíbrios que o mundo socialista proporcionava. Nada de novo, se quiserem. Nada de novo, se formos à história das grandes conquistas da humanidade, aos avanços, aos recuos e às destruições que podem seguir-se a revoluções fundamentais para países e povos.

Tentei dar, em traços largos e muito insuficientes, notícias desses anos do 25 de Abril que festejamos e que decorrem apesar de tudo em liberdade e em esperança, porque há uma história para trás, a história  de um povo pobre, oprimido e violentado que parece ficar calado, perante a morte, a repressão e a censura, parece aguentar e aceitar tudo, para, de repente, se sobressaltar e romper em revoluções lindas e corajosas como foi o 25 de Abril de 1974, um acontecimento histórico que teve enormes consequências em Portugal e em África, na Europa e também noutros continentes.

Os povos são assim, às vezes tristes e aparentemente submissos, outras vezes grandiosos e imparáveis. Mas a nossa história está cheia de exemplos e legados de luta pela liberdade, pela justiça social e pelo progresso da humanidade. Temos de vencer esta pandemia perigosa e devastadora que ainda nos atormenta. Faço votos para que continuemos a ter saúde e a encontrar-nos nos caminhos das lutas pela liberdade e pela mudança que é necessário e imperioso construir, para que o país se afirme e conquiste decisivamente o direito à felicidade e ao sonho de estarmos vivos e de nascermos de novo.

Cem anos de vida e de acção do PCP têm de ser impulsionados rumo ao futuro e a novas conquistas de liberdade, de direitos, de exercício de poderes populares e transformadores em Portugal e no mundo.

Termino com uma saudação muito especial ao Centenário da Seara Nova, pelo exemplo fundamental da Revista e de outras edições ao longo de cem anos de combates, de resistência e de coragem.