RAUL PROENÇA, PELO NETO – Para o Centenário da Seara Nova

Nos oitenta anos da morte do meu avô, Raul Proença, celebra-se o centenário da Seara Nova, a Revista que perdurou um século! Pelo menos…

Foi o seu impulsionador e fundador, juntamente com outros intelectuais seus contemporâneos. Destes, lembro-me de Jaime Cortesão com as suas imponentes barbas que me faziam medo. A sua mulher, Carolina, pequenina e saltitante, era simpática e a antítese do marido. Vi-os várias vezes, nas despedidas quando iam de navio, o Vera Cruz, para o Brasil, onde viviam nos anos 1950, ou no Aeroporto, e em sua casa em frente à Basílica da Estrela quando regressaram da sua estada no Rio de Janeiro.

Em sua casa, conheci António Sérgio, um homem exuberante, ao contrário da mulher, Luísa, hirta e seca, vestida de cores escuras, que conhecia por ser visita de casa da minha avó Teolinda, viúva do avô Raul.

Cheguei a imaginar António Sérgio como a personagem ideal para Poirot, guardadas as devidas distâncias. Esta sugestão fez rir a minha mãe, Ester, não muito convencida, pelo menos na aparência.

Em 1958, numa viagem que fiz com a minha mãe ao Porto aquando das eleições para Presidente da República – “se me viro para a frente, vejo o Vicente, se me viro para o lado, vejo o Delgado, se me viro para trás, vejo o Tomás” -, para nos juntarmos ao meu pai, que estava a fazer a cobertura jornalística das mesmas na Invicta para A República, no regresso, no Rápido do Porto, encontrámos Jaime Cortesão com a sua mulher. Eu, com nove anos, disse-lhe: “Vi a polícia a bater de chicote nos estudantes.” Ele, com a sua voz grave e ponderada, respondeu-me: “Nunca te esqueças, nunca te esqueças!”. Nunca me esqueci. Era essa uma das marcas da ditadura.

Mas porque é que vos falo destes homens, grandes amigos do meu avô, e não do meu avô? Na verdade, não o conheci. Morreu oito anos antes de eu nascer. Morreu no Porto depois de um longo internamento de nove anos quando regressou com a família do seu exílio político em Paris. Internamento misterioso. Sim, adoecera com uma doença mental, foi o que me disseram na família.

Egas Moniz operou-o: uma lobotomia. Hoje vejo o horror, querer mudar a mente de um homem! E que mente, e que homem. Às vezes, vinha a Lisboa quando os médicos diziam que estava melhor, isto é, dócil, creio eu. Encarcerado no Hospital Conde de Ferreira, não incomodava o Salazar, não será? Felizmente, os resultados da operação não foram muito duradouros e o carácter combativo, traço da personalidade do meu avô, regressou.

Um homem é o que é e não se muda! Pediu para o libertarem daquele quarto, quarto onde ouviu na telefonia, em 1935, nas notícias, que a sua filha mais nova tinha morrido num sanatório nessa madrugada.

A família e os médicos acharam por bem não lhe dizer para não o excitarem. Quase (atenção, quase) me apetece trazer para aqui Molière e a sua opinião sobre os médicos… É claro, nunca o “libertaram” do Hospital.

Do ponto de vista pessoal e familiar, destaca-se a fuga, com a mulher, do Algarve em 1910, para Lisboa, onde viveram, antes de se casarem, na Avenida de Berna, 98 (mudou para 12), 3º andar, estreando-se como primeiros inquilinos do prédio. Sofreu a morte de duas filhas e do único rapaz, uma delas durante o exílio, em Paris, a que foi obrigado, em 1927, pela Ditadura, que sempre combateu. Com os meus avós para Paris, foram quatro filhas. De uma vida confortável que levavam em Lisboa, passaram para uma vida difícil. Mas Raul Proença continuava a acreditar na combatividade e nos princípios Seareiros: educar! Sem educação não há povo e, por consequência, políticos, capazes. Só a democracia com elites esclarecidas poderá ser benéfica.

Pode ter-se saudades do que não se conheceu fisicamente? Eu tenho. Do meu avô.