«TENHO MENINA DE TRAPOS…»: AS BONECAS NA ESCRITA PARA A INFÂNCIA DE MATILDE ROSA ARAÚJO
- Introdução[1]
A presença de Matilde Rosa Araújo (MRA) (1921-2010) na História da Literatura Portuguesa para a Infância[2] (mas não apenas no domínio da Literatura para a Infância) reveste-se de particular significado e de um sentido singular. A sua produção literária, na qual se observa uma coerência profunda, inicia-se na década de 40 do século XX, com a novela premiada A Garrana (1943), e é considerável, reconhecidamente singular, integrando, além de outros textos em prosa destinados a adultos, várias obras (tanto no domínio da poesia, como da narrativa) especialmente vocacionadas para a criança. Matilde reparte, pois, a sua actividade literária pela narrativa e pela poesia para adultos e para crianças e jovens, pelo ensaio – A Estrada Fascinante (Livros Horizonte, 1988) –, por uma obra pedagógica – O Sol Livro – Leituras para a 2ª Fase / 2º Ano do Ensino Primário (Livros Horizonte, 1976) –, e pela organização de antologias, designadamente As Crianças, Todas as Crianças (Livros Horizonte, 1976) e A Infância Lembrada (Livros Horizonte, 1986).
No seu percurso vivencial, escrita e infância andaram sempre de mãos dadas e, por isso, não é de estranhar que, como escreve Natércia Rocha, por exemplo, na sua poesia, esteja presente «a alegria e também o sofrimento que podem impregnar a vida de grandes como de pequenos. De forma elegante e subtil, encontra sempre a via apropriada para envolver em poesia as situações e sentimentos do ser humano em qualquer fase da vida.» (Rocha, 2001, p. 142), porque aquilo que a autora comunica é uma visão universal, um(a) (desejo de) compreensão do ser humano e, muito particularmente, da criança.
- As bonecas na escrita ficcional de MRA
Neste contexto, vale a pena lembrar uma entrevista concedida a Mariana Sim-Sim David e Joana Caldeira, no âmbito do projecto Gulbenkian/Casa da Leitura. Recorda Matilde, quando questionada acerca das suas memórias: “Fui uma vez a uma escola, há anos, não me lembro do nome da escola (verdadeiramente não me lembro, mas se me lembrasse também não dizia), e vejo o olhar de uma criança (vamos aprendendo a ler olhares) tão triste, tão triste, e pensei: “Esta criança é muito infeliz.” Ela chega-se ao pé de mim, e diz-me: “A senhora espera um bocadinho?”, “Sim espero.” – O que é que ela quereria? Foi a casa, que devia ser perto, e traz-me uma boneca de trapos suja. Era a única boneca que ela tinha (tenho-a ainda no meu «escritório»), e diz-me: “Fique com a minha boneca.”, “Oh, meu amor, eu não fico com a tua boneca, então? Tu tens mais bonecas?”, “Não, é a minha boneca. Mas fique com a minha boneca, eu quero que fique em sua casa.” Senti ali uma tragédia, qualquer coisa de muito triste, e fiquei com a boneca na mão, nos braços. Era uma criança abandonada e rejeitada, porque ela não a queria em casa.”[3]
Figura tutelar que sempre se ergueu pela criança[4] e pelas suas mais misteriosas, encantadas, mas também dolorosas vivências, Matilde viveu perto das crianças, das suas tristezas ou angústias e das suas alegrias, dos seus jogos e brincadeiras. Lembrava que “Antigamente as crianças não tinham voz e por isso não havia literatura infantil. Os seus direitos foram reconhecidos tardiamente” e, em tudo o que escrevia, dizia ter lá «inserida infância, porque somos sempre a criança. Temos sempre a criança, mesmo quando adultos” (Figueiredo e Coutinho, 2006). A infância ressuma, assim, da sua escrita literária, quase sempre na linha da poética neorrealista, e impõe-se como um espaço onde o imaginário infantil se corporiza frequentemente na convocação do brinquedo-brincar, enquanto desejos e reinvenções da própria criança. E, à medida que a vida foi avançando, esse “olhar que se projecta sobre a infância, do seu ponto de vista de adulto envelhecido”, vai reflectindo uma “indisfarçável melancolia” (Gomes, 1993, p. 88).
Em O Livro da Tila, primeira obra de potencial recepção infantil publicada pela autora, originalmente editada em 1957 e reeditada em 2010, Matilde olha de forma única a infância e, nos seus poemas, cruzam-se temas e motivos literários como o amor, a natureza, o quotidiano, a infância, os jogos e os brinquedos, entre outros, emoldurados por um lirismo manifestamente singular. Nesta “biografia lírica” (Gomes, 2011, p. 8), como Matilde, à distância da sua composição, a diz compreender, os textos poéticos “Canção de embalar bonequinhas pobres” e “Conversa das meninas que se encontraram na rua” ficcionalizam a infância, a partir do recurso a esse objecto central no universo infantil que é a boneca.
No primeiro poema referido, “Canção de embalar bonequinhas pobres”, ouve-se um sujeito de enunciação infantil, uma criança, entregue à actividade lúdica ou ao jogo simbólico do faz-de-conta. O eu poético, infantil e feminino, mimetiza, na sua recriação simbólica, o momento em que a mãe canta e embala, procurando adormecer – “Adormece ao meu cantar” (Araújo, 2010, p. 12) –, o seu filho, neste caso, uma “menina de trapos” ou uma boneca de trapos, expressão repetida em quase todas as quadras. Em “Conversa das meninas que se encontraram na rua”, segundo poema sobre o qual centramos a nossa atenção, a configuração paralelística e dialógica e o discurso directo, que conferem ao texto, uma certa parateatralidade, assim como as frases curtas, ora reticentes, ora exclamativas imprimem à composição poética um tom vivo e animado, consentâneo com a própria essência lúdica que o distingue. Jogo de grupo, infantil e feminino (“meninas”) no qual emissor e receptor se relacionam afectivamente, o texto coloca a boneca no centro das vivências das crianças-protagonistas.
Também na obra A Guitarra da Boneca (1983) a presença da boneca de trapos se reveste de elevado significado. Esta colectânea poética integra quatro poemas – a saber: “Tenho uma boneca”, “História de uma boneca com cabeça de porcelana”, “Era uma vez uma boneca de trapos” e “Chazinho das meninas bonecas” –, nos quais a presença da boneca se explicita desde a própria titulação. Estes textos configuram um importante sentido simbólico que remete para a ideia de vivência de uma infância, transcrita na relação com bonecas alegres, como em “Tenho uma boneca”, ou tristes e sofredoras, como em “História de uma boneca com cabeça de loiça”.
Em “Tenho uma boneca”, por exemplo, o elemento central, a boneca, tornado explícito o sentido de pertença que lhe é inerente (“Tenho uma boneca”), serve, num primeiro momento, a textualização de um brincar, no qual, como regista Ilse Losa, em Nós e a Criança, “a criança expande a sua alegria, a sua vontade de agir, de se mexer de se transfigurar” (Losa, 1967, p. 172). No final, esta boneca “muito fina” (Araújo, 1983, p. 8), a quem até os elementos da natureza/cósmicos (Sol, chuva, estrelas) se associam e mimam, é advertida quanto à dureza do chão, ou, em termos concretos, da realidade ou da vida.
O Reino das Sete Pontas (1984), aventuras no reino da Sonholândia, é uma obra que proporciona uma especial experiência imaginativa. Também nesta narrativa a alusão à boneca – por exemplo, um jantarinho para as bonecas (Araújo, 1984: 18) ou uma boneca oferecida pela avó (Araújo, 1984: p. 30) se reveste de particular significado, sugerindo o natural impulso lúdico da infância, a simplicidade e os laços afectivos.
O poema “História de uma boneca”, incluído em Mistérios (1988), reflecte a profundidade e a complexidade das relações entre meninas e bonecas. Surpreendente é o desfecho desta composição poética. A boneca, afinal, é uma menina e da sua cabeça “voou uma pomba” (Araújo, 1988, p. 32), símbolo, como é do conhecimento comum, da paz, da pureza, da inocência e da simplicidade.
Segredos e Brinquedos (1999) integra o poema inspirado em Januária, boneca presente na vida da poetisa MRA. Na verdade, a Januária do poema tem como referente uma boneca assim denominada que um tio da autora lhe trouxe de Paris – “Só sei que um dia vieste / Da cidade de Paris” (Araújo, 1999, p. 32) – e que acabou por ir para o Museu do Brinquedo.
O conto A Boneca Palmira (2007), expressivamente ilustrado por Gémeo Luís, revela a figura personificada de uma boneca de porcelana, que nunca pôde brincar com a sua dona, Raquel. Tendo ficado esquecida, celebra amizade com uma almofada cor de mel, com que conversava. A fuga das duas amigas, boneca e almofada, juntamente com o espanador de penas, objectos inanimados que ganham vida e espessura emocional, voando os quatro sobre a cidade e sobre os campos, metaforiza a aspiração à liberdade, no seio da Natureza.
- Considerações finais
Fragilidade e força, ilusão e realidade, o eu e os outros coabitam na escrita de MRA, talvez como em nenhuma outra autora fortemente conotada com a literatura de preferencial recepção infantil. Esses veios ideotemáticos plasmam-se significativamente na representação literária do universo infantil, que tanto preza e conhece. Na verdade, os textos relidos reflectem a infância e o(s) sentido(s) da vida que nesta se pode(m) ler. A infância é, com elevada frequência, representada metaforicamente nos brinquedos, nas bonecas, mas também nos cavalinhos, nos ferrinhos de engomar, entre outros. Note-se que “No brinquedo, ela [a criança] opera um significado separado dos objetos e ações, ao contrário do que ocorre na sua relação com objetos reais. É o que faz do brinquedo [em concreto, da boneca] um intermediário entre as imposições de situação da primeira infância e um pensamento que abstrai das situações reais. Portanto, o brinquedo é um estágio de transição vital para operar com o significado. Brincando, a criança faz uso inconsciente e espontâneo da possibilidade de separar significado e objeto.” (Cademartori, 2010, pp. 61-62).
Em obras como A Guitarra da Boneca (1983) ou A Boneca Palmira (2007), os títulos sinalizam cataforicamente a presença de um brinquedo, um dos mais simbólicos (Martins, 2014), antigos e populares em todo o mundo (Manson, 2002), um objecto muito importante na construção/abertura ao imaginário: a boneca. A boneca figura, assim, num elevado número de textos de Matilde, ora enquanto presença simbólica ou transposição metafórica da infância agredida (Gomes, 1993), como em certos poemas de O Livro da Tila (1957), ora como representação de brincadeiras desejadas, como em “Januária pequenina” [Segredos e Brinquedos (1999)]. Esse objecto lúdico, muito particularmente na escrita de MRA, integra um amplo paradigma temático, a infância, e destaca-se como uma representação metafórica da criança, construída por alguém que «escreveu para crianças não porque quisesse, mas porque, dizia, foram elas que a ensinaram: “uma comunicação, talvez a conjugação viva, em escrita, do verbo amar. Isto é esquisito…”. Pode ser, mas também é literatura»[5].
Uma versão original (bastante mais extensa) deste trabalho foi apresentada no I Congresso do Brinquedo Português - Património Material e Imaterial, que decorreu no Instituto de Educação da Universidade do Minho, nos dias 26, 27 e 28 de Outubro de 2017.
Referências bibliográficas
- Bibliografia activa
ARAÚJO, Matilde (1983). A Guitarra da Boneca. Lisboa: Livros Horizonte (ilustrações de Evelina Coelho).
ARAÚJO, Matilde (1984). O Reino das Sete Pontas. Lisboa: Livros Horizonte (ilustrações de Manuela Bacelar).
ARAÚJO, Matilde (1988). Mistérios. Lisboa: Livros Horizonte (ilustrações de Alice Jorge).
ARAÚJO, Matilde (1999). Segredos e Brinquedos. Lisboa: Caminho (ilustrações de Maria Keil).
ARAÚJO, Matilde (2007). A Boneca Palmira. Porto/Lisboa: Eterogémeas/IELT/FCT.
ARAÚJO, Matilde (2010). O Livro da Tila. Lisboa: Caminho (ilustrações de Madalena Matoso) (1ª ed. 1957).
- Bibliografia passiva
CADEMARTORI, Ligia (2010). O que é Literatura Infantil. São Paulo: Editora Brasiliense (2ª ed. revista e actualizada).
FIGUEIREDO, Leonor Figueiredo e COUTINHO, Rui (2006). “Novo livro de Matilde Rosa Aarújo” In Diário de Notícias, 20/06/2006, disponível em http://leziria.blogspot.pt/2006/07/novo-livro-de-matilde-rosa-arajo.html (consultado no dia 24/10/2017).
FLORÊNCIO, Violante (1995). “A imagem da infância na obra de Matilde Rosa Araújo” In Matilde Rosa Araújo, Colec. «Uma pequenina luz bruxuleante» – 3 (pp. 21-28), Porto: Civilização.
GOMES, José António (1993). A Poesia na Literatura para a Infância. A produção portuguesa, do pós-guerra à actualidade, e o caso de Matilde Rosa Araújo. Porto: Asa.
GOMES, José António (2011). “Matilde Rosa Araújo em entrevista inédita”. In Malasartes, Nº 21-22 (pp. 5-8), Novembro de 2011.
LOSA, Ilse (1967). “A criança quer brincar”. In Nós e a Criança (pp. 171-172). Porto: Porto Editora, (2ª ed. corrigida e aumentada).
MANSON, Michel (2002). História do Brinquedo e dos Jogos. Lisboa: Teorema.
MARTINS, Maria João (2014). História da Criança em Portugal. Lisboa: Edições Parsifal.
PARREIRAS, Ninfa (2008). O brinquedo na literatura infantil: uma leitura psicanalítica. São Paulo: Editora Biruta.
ROCHA, Natércia (2001). Breve História da Literatura para Crianças em Portugal. Lisboa: Caminho (1ª ed. – 1984).
VASCONCELOS, Ana Cristina (2011). «“Canção de embalar bonequinhas pobres” e “Loas à chuva e ao vento”, de Matilde Rosa Araújo. Dois encontros com a tradição lírica popular portuguesa». In Malasartes, Nº 21-22 (pp. 14-18), Novembro de 2011.
Notas: [1] Por vontade expressa da sua autora, este texto encontra-se escrito segundo a norma ortográfica da Língua Portuguesa anterior ao Novo Acordo Ortográfico. [2] A sua escrita e o seu percurso biobibliográfico foram devidamente reconhecidos. Lembremos que, em 1980, recebeu o Grande Prémio de Literatura para Crianças, da Fundação Calouste Gulbenkian, e o prémio para o melhor livro infantil, pela mesma fundação, em 1996, pelo seu trabalho Fadas Verdes. Em Maio de 2004, foi distinguida com o Prémio Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. [3] Disponível online em http://www.casadaleitura.org/portalbeta/bo/documentos/vo_matilde_b.pdf. [4] MRA dedicou-se à defesa dos direitos das crianças através de livros e de intervenções em organismos com actividade nesta área, como a UNICEF em Portugal ou o Instituto de Apoio à Criança. Aliás, foi sócia-fundadora do Comité Português da UNICEF e do Instituto de Apoio à Criança. Manifestou-se sempre contra a violência e as injustiças. [5] http://ensina.rtp.pt/artigo/matilde-rosa-araujo/ - consultado no dia 24 de Outubro de 2017.
Sara Reis da Silva
(1972)
Professora Auxiliar do Instituto de Educação e membro do Centro de Investigação em Estudos da Criança da Universidade do Minho