João Abel Manta: artista da Revolução, antes e depois

A caminho do meio século sobre o 25 de Abril de 1974, a obra gráfica de João Abel Manta – que prenunciou aquele desde 1969, em pleno Estado Novo, e depois o definiu com uma mão cheia de imagens – arrisca-se, se nada for feito para o contrariar, e apesar de uma vitalidade inalterada, a ocultar-se no mesmo nevoeiro em que essa distante Revolução parece desaparecer com o avanço do tempo.

Em 13 de Janeiro de 1977, o primeiro canal da BBC exibia um documentário da série “Omnibus” dedicado a Portugal, ou, para ser mais preciso, ao que restava da “arte revolucionária” portuguesa. A white wall in Alentejo – uma parede branca no Alentejo – recorria a um pintor muralista amador no Alentejo, em 1976, prestes a encher essa parede branca com um motivo político (o final do filme revela, sem surpresa, uma versão do rosto de Che Guevara), como pretexto popular para um salto às “belas artes” e uma análise de como estas se encaixaram nos requisitos revolucionários e do que pensavam então, finda a Revolução, alguns artistas que com esta tinham tido relações mais ou menos próximas. Se os testemunhos do escultor Virgílio Domingues e do pintor David Evans, até pela sua idade então, são de navegadores das águas turbulentas do PREC, e o de Lopes-Graça permitia uma abertura retrospectiva do campo de análise aos longínquos dias de resistência do MUD Juvenil no final da década de 1940, é inquestionável que recai sobre João Abel Manta a responsabilidade de dois cruciais testemunhos: o primeiro sobre o seu trabalho para o MFA e, em Londres (onde, apesar de uma odisseia de pedidos de autorização, conseguira arrendar um pequeno apartamento-estúdio), um segundo sobre o que era Portugal depois da Revolução. Manta é aqui apresentado como um artista polivalente (vemo-lo mesmo junto a uma enorme maqueta de um mural de azulejos) que, como desenhador para a imprensa – ou cartoonista – e cartazista fora, sem margem para dúvidas, o referente máximo do período mais quente da Revolução, o que foi de 11 de Março ao final do Verão de 1975, servindo os seus cartoons mesmo de complemento à narração e de modulador tonal do filme. É com confiança e uma leve ironia que assegura ao entrevistador que não se arrepende da sua colaboração com o MFA (“três ou quatro meses muito excitantes”), e que só não foi “mais longe” por receio de incompreensão formal por parte de quem lhe pedia e de quem iria ver os cartazes, e, já em Londres, é com o sobrolho carregado que confessa um desgosto pelo Portugal pós-25 de Novembro e uma necessidade de afastamento do país para poder pensar no seu novo projecto, um livro que, sabemo-lo hoje, acabaria por ser as Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar.

Quem vê esta muito curiosa hora de filme tem uma dupla confirmação: a de que Manta foi o “artista da Revolução” no sentido de lhe dar uma imagem gráfica imediatamente reconhecível por um vasto público (o artista que poderíamos aqui colocar como contribuinte de uma imagem igualmente “icónica” do momento seria Sérgio Guimarães, o autor do cartaz do menino a enfiar um cravo numa G3, mas a sua obra “revolucionária” é quase inexistente por comparação com a de Manta, tanto quantitativa como qualitativamente), e, ao mesmo tempo, de que esse trabalho revolucionário ao estirador parara em 25 de Novembro de 1975, de um modo tão certo como começara a 25 de Abril de 1974. Ora se é muito difícil contestar a primeira conclusão, pela quantidade estonteante de desenhos de imprensa e cartazes produzidos nesse ano e meio, para mais difundidos por um jornal diário de tiragem gigantesca (o Diário de Notícias da fase Ribeiro dos Santos e José Carlos Vasconcelos) e pela organização militar que representava simbolicamente a defesa dos princípios revolucionários, concluir que Manta foi apenas um artista “revolucionário” de Abril de 1974 ao final de Novembro de 1975 será efeito apenas de ignorância.

Esse artista ao serviço de uma coisa nova no viver nacional através de um meio de comunicação de massa – o jornal – apresentara-se já no primeiro trimestre de 1969, para, no Diário de Lisboa, atrevido vespertino da capital, fazer o que nenhum caricaturista conseguira ou, sobretudo, pudera desde o início da década de 1930: analisar em profundidade o país de Salazar, o ditador que, desde que Arnaldo Ressano, militar e brilhante caricaturista, o fixara em 1935 num espantoso boneco (perfeito na fisionomia do rosto em incómodo rictus e na posição das mãos, como um jovem padre de província com ambições), jamais fora incomodado na imprensa com uma caricatura sua (só no Brasil de Kubitschek pôde fazê-lo o exilado Fernando Lemos, em 1959, ilustrando um texto do também exilado Jorge de Sena no Portugal Democrático, e só em Argel puderam as caricaturas de Cláudio Torres ser publicadas em 1966[1]). Não que caricaturar Salazar fosse já possível sob o consulado do seu sucessor, nessa “primavera marcelista” que despontava em 1969, em que a Censura se transmutava em “Exame Prévio” para continuar a fazer o mesmo, mas o inaudito atrevimento de Manta – teríamos de regressar a alguns dos seus desenhos do final dos anos de 1940, coevos da sua prisão em Caxias, para encontrarmos um sopro do que ele começou a produzir nesse ano – serviu-lhe para marcar território, perceber como funcionava o censor e como podia enganá-lo e criar um portefólio de cartoons durante cinco anos consecutivos como não tinha havido antes e como não voltou a haver depois (um dos quais acabou mesmo por ser a sua única caricatura de Salazar em tempo de Estado Novo, um ano após a morte do antigo Presidente do Conselho, enorme busto estatuário à la Leopoldo de Almeida que se recortava por trás da massiva figura de António Ferro, como se o ditador tivesse sido apenas outra das criações do impulsionador da “política do espírito”…). A revolução, a de Manta ao estirador (uma revolução “silenciosa e sem manifesto”, como escreveu Osvaldo de Sousa[2]), foi feita por esses anos até ao final de 1973, quando o bizarro processo por ofensa à bandeira nacional (prova do “crime”: o cartoon “Festival” de 1972, notável desvio gráfico da bandeira republicana para uma crítica ao abuso do símbolo nacional nos festivais da canção) põe um fim à sua carreira nos jornais. E, após a recarga criativa no PREC, como não constatar que o artista continuava atento ao devir dessa revolução travada nos desenhos que ia enviando espaçadamente a O Jornal, ou na publicação das Caricaturas Portuguesas em 1978, num momento em que, como observou Eduarda Dionísio, Salazar voltava a ser “tema” recuperado por figuras do salazarismo em memórias ou “biografias de peso”?[3]

Como, de facto, não ver o “artista da Revolução” já em desenhos de 1969 como “Avery Brundage” e “Vietnam lembrar Vietnam relembrar Vietnam”, em que, em plena Guerra Colonial, Manta consegue contornar o “censor prévio” e mostrar dois homens negros exibindo símbolos de “poder negro” ou, num canto inferior, uma criança ferida de guerra e inegavelmente africana? Como não ver uma aspiração genuinamente revolucionária nas séries dos “Monumentos nacionais” desse ano ou na “Reportagem fotográfica” de 1972, retratos sucintos e amargos de uma realidade mental portuguesa do final do Estado Novo que, nas suas formas absurdas e ritualizadas de sobrevivência, parecia, como fruto maduro-quase-podre, pedir a irrupção de um novo fruto (e nesse episódio do poster da bandeira nacional levado a tribunal, uma ocasião rara para confrontar o Estado Novo com um dos seus muitos paradoxos insanáveis, no caso, como observou Artur Portela Filho[4], o de próceres do regime vindos em defesa da bandeira criada por essoutro regime deposto por aqueles)? Como não vê-lo, afinal, em todos os seus desenhos proibidos pelo censor nesse intrépido arranque de 1969, desenhos que, como confessou numa entrevista feita em 1992, por altura da sua única grande exposição da obra gráfica em Lisboa, foram feitos para serem proibidos, e para, apesar disso, servirem de testemunho aos vindouros daquele irrepetível momento da mudança de chefe do regime[5] (chefe que se apresentava como “o novo director” gatafunhado num quadro de ardósia, no magnífico desenho sobre a continuidade da censura – a “Velha” – sob Caetano, mas que o censor já não soube proibir num profético desenho de 1970, em que Caetano estava prestes a ser soterrado por uma Torre de Belém de areia, a carga histórica de uma expansão colonial que agora lhe rebentava nas mãos)? E, do outro lado do PREC, já depois das cinzas deste estarem frias, como não ver ainda o Manta revolucionário num desenho sobre a triste passagem do ano de 1977 para 1978, em que o 25 de Abril era agora apenas um barquito de náufragos, sem remos, à deriva entre monstros do grande capital e da extrema-direita, e para quem a protecção dada pelo anjo da Constituição era pouca ou nenhuma, uma melancólica imagem que parece antecipar em décadas a dos “náufragos” que Enzo Traverso usou para representar os sobreviventes das sucessivas derrotas da Esquerda europeia desde a década de 1970 num ensaio recente?[6]

Tendo comissariado duas exposições do trabalho gráfico de Manta, sei já que o momento da fria percepção da realidade chega quando explico a visitantes que todas aquelas obras irão, após o fecho, regressar a gavetas ou salas das reservas de alguns museus. Nenhuma, nem uma, volta para um local onde esteja exposta em permanência. O nevoeiro que esbate os nítidos contornos do passado, ou que os oculta totalmente, começa nestas ausências de contacto directo e diário entre nós e uma obra, por mais importante e aplaudida que tenha sido, como, aliás, esta foi. E as suas primeiras manifestações vão-se dando onde menos se espera: por exemplo, no ano passado, num colóquio em Lisboa sobre os 100 anos do Diário de Lisboa, nenhuma, nem uma apresentação foi feita sobre o trabalho de Manta para o vespertino, um trabalho político e esteticamente revolucionário tout court.[7] Com a mão a proteger os olhos, perscruto o horizonte e, com um mínimo de curiosidade mas sem grandes esperanças, interrogo-me sobre a situação metereológica de 2024…

Notas:
[1] TORRES, Cláudio e TORRES, Flausino. Salazar 40 anos? Porto: Afrontamento, 2008.
[2] SOUSA, Osvaldo de. História da arte da caricatura de imprensa em Portugal. Vol. 3. No Estado Novo: 1933-1974. Lisboa: Humorgrafe, 1998, p. 452.
[3] DIONÍSIO, Eduarda. Títulos, acções, obrigações: sobre a cultura em Portugal, 1974-1994. Lisboa: Salamandra, 1993, p. 261.
[4] PORTELA FILHO, Artur. “A última chapelada de Bernardino Machado”, in A funda, 3º volume. Lisboa: Arcádia, 1973, p. 23-32.
[5] O menino crescido que gostava de partir loiça (CML, 1992).
[6] TRAVERSO, Enzo. Left-wing melancholia. Marxism, history, and memory. New York: Columbia University Press, 2016.
[7] Colóquio “São mesmo as últimas”: Diário de Lisboa, 1921-1990, 29-30 de Novembro de 2021, Fundação Mário Soares e Maria Barroso.