O Médico Negro do Rei

Margarida M. Ramalho publicou em 2018 uma biografia de Thomaz de Mello Breyner, Conde de Mafra, aí o descrevendo como o médico do Rei D. Carlos e das prostitutas de Lisboa. Breyner, casado com uma filha de Henrique Burnay, um dos banqueiros mais ricos do país, foi deputado monárquico e escreveu nos jornais mais conservadores como o Acção Realista.

Memória

A memória coletiva cultural forma-se com a recordação dos acontecimentos do passado. As memórias constituem uma herança que cada geração lega às seguintes. Não podendo ser uma memória exaustiva, apenas pode ser retido uma fração do passado real. Esse processo implica, pois, uma forte componente de seleção levada a cabo com base em critérios atuais servindo uma visão do presente e do futuro.

Memória e história são campos onde se trava uma dura batalha cientifico-ideológica, com os vários grupos sociais a, partindo de posicionamentos distintos, procurar fazer vingar o seu ponto de vista.

A classe dominante detentora do poder económico e político, controlando o aparelho cultural e ideológico, tem possibilidade de impor a sua perspetiva como verdade oficial. As classes e os grupos dominados têm maior dificuldade em manter as suas memórias e a defender a verdade factual.

Percebemos, assim, que essas memórias selecionadas e integradas numa herança histórica e cultural são as que melhor servem a classe dominante a cada momento e que essa herança se vai alterando à medida das necessidades e dos interesses desta.

Tudo o que não encaixe na narrativa oficial é omitido. O apagamento desses acontecimentos impede outras memórias de se formarem.

A sociedade portuguesa é diversa desde a sua fundação. Mas o regime democrático criou o mito de uma sociedade exclusivamente branca, em que negros e outras minorias são considerados segunda-geração de imigrantes recentes, logo não parte integrante do todo nacional. Para esta falsa construção identitária o silenciamento da História e das memórias das várias minorias étnico-raciais é essencial.

Vejam-se os ciganos, parte da comunidade nacional há séculos e que não têm uma historiografia na academia portuguesa, a sua presença nunca mencionada na História do seu próprio país, o seu contributo esquecido, a sua marca histórica apagada. Fantasmas sem passado e sem futuro. Como se de corpo estranho que não faz parte da nossa sociedade se tratasse.

Também os negros apagados e apenas presentes como “escravos”, ou “selvagens” e “imigrantes” (para não dizer “ilegais”, a terminologia do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras/SEF e, portanto, do Estado). Tudo o resto eclipsado. Simultaneamente a escravatura e o colonialismo justificados e normalizados.

Os Médicos do Rei D. Carlos

Mas o que tem toda esta reflexão a ver com T. M. Breyner o médico do Rei? Tudo. Esta biografia e outras obras procuram elevá-lo ao papel de médico do Rei. A verdade, contudo, é outra.

A Real Câmara dirigida pelo Mordomo-Mor era constituída por diversos serviços, nomeadamente os médicos, atente-se no plural –“Da Real Câmara, faziam também parte os Médicos” (Machuqueiro, 2013).

A Real Câmara era um serviço exclusivo do Rei e da família real e era constituída por várias especialidades o Secretário Pessoal do Rei, os Médicos, o Farmacêutico, etc. Pedro Machuqueiro indica que o número de médicos da Real Câmara variou ao longo dos tempos – de um máximo de 9 em 1891 a um mínimo de 4 em 1894. (Machuqueiro, 2013).

É que o Rei não tinha um médico. Tinha um conjunto de médicos da Real Câmara de que sobressaía Carlos Tavares, um médico negro.

Quem era Carlos Joaquim Tavares?

Na sua morte o jornal A Voz d’África escreveu “Este ilustre médico nasceu em Egito em Angola no distrito de Benguela em 25 de Dezembro de 1857 …“ (A Voz d’África, 1913). E “Era filho de António Joaquim Tavares” (A Capital, 1913).

Veio para Lisboa, onde estudou na Escola Politécnica de Lisboa e na Escola Médico-cirúrgica, em que entrou em 1882 destacando-se como um dos mais brilhantes alunos.

Brito Camacho, médico e político republicano, na sua obra Gente Vária descreve-o como “um homem de superior inteligência” e “espirito notavelmente imaginoso”. Conta o episódio do discurso que celebrizou o ainda estudante Carlos Tavares:

“A Academia de Lisboa associara-se às festas do centenário de Camões, e Carlos Tavares, ainda estudante, foi encarregado de fazer um discurso no theatro da Trindade. O thema escolhido foi este – a medicina nos Luziadas. Esse discurso foi a revelação d’um extraordinário talento oratório.” (Camacho, 1928)

O discurso de Carlos Tavares obteve tal êxito que o António Maria, o jornal de Rafael Bordalo Pinheiro, publicou uma ilustração do jovem estudante elegantemente vestido e com um vistoso laço junto ao mestre Sousa Martins. Até Rafael Bordalo Pinheiro, um defensor do colonialismo e um racista, como o explica Ângela Guimarães, se rendeu aos talentos oratórios de Carlos Tavares[1].

Como aluno revelou-se brilhante:

“Carlos Joaquim Tavares realizou o Ato Grande em 1883, o seu primeiro exame a 17 de junho de 1878 e o último que foi à 8ª cadeira, “Clínica médica”, quatro anos depois a 15 de junho de 1882. Em todos os exames, exceto no primeiro, “Anatomia descritiva” recebeu a aprovação com louvor.” (Gama, 2018)

Terminado o curso venceu o concurso para Professor da sessão de Medicina tendo sido “nomeado por decreto de 16 de Abril de 1885” (Gama, 2018). Foi promovido a lente em “24 de Setembro de 1888 sendo-lhe destinada a sétima cadeira (pathologia interna)” (A Capital, 1913).

Em finais do século XIX um grupo notável de médicos lançou entre nós as bases da Medicina moderna, assente na ciência e no alargamento dos tratamentos a classes sociais até aí excluídas. Designados os Vencedores da Medicina tiveram como impulsionador Sousa Martins. Dele também fez parte Carlos Tavares.

Prossigamos com A Voz d’África:

“Tendo granjeado fama como lente e como clínico, foi aí por 1894 nomeado médico da Real Câmara.” (A Voz d’África, 1913)

O artigo ironiza dizendo que se o Rei queria ter um bom médico, e não apenas os condes, teve de refrear os preconceitos de cor e aceitar Carlos Tavares.

Na verdade, Carlos Tavares era já nesse momento um dos mais prestigiados clínicos do seu tempo. Na sua História resumida da Medicina em Portugal, J. M. Silva refere que no final do século sobressaíram:

“Na clínica, além de Sousa Martins e Manuel Bento, sucederam-se Bettencourt Pita, Arantes Pedroso, Oliveira Feijão, Curry Cabral, Carlos Tavares e Ferraz de Macedo.” (Silva, 2002)

Em 1903, enquanto professor de Patologia Interna, fez parte da Comissão Revisora da Farmacopeia que aprovava os medicamentos para uso humano.

Quando o Príncipe Luís Filipe visitou os territórios africanos ocupados em 1907, Carlos Tavares foi o médico escolhido para o acompanhar.

No momento da morte do Rei D. Carlos, assassinado em Lisboa, a Real Câmara que lhe fez a autopsia era composta por António de Lencastre, Oliveira Feijão, Barros da Fonseca, Carlos Tavares, António Meireles, Artur Ravara, Tomaz de Mello Breyner e Silva Amado (Barata, 2008).

Exerceu várias funções, nomeadamente de Vice-Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa e Diretor da Sociedade de Banhos de São Paulo.

Publicou artigos em revistas médicas e dois livros, O nervo do gosto ou de Wrisberg e Algumas palavras sobre o arthritismo.

Morreu aos 56 anos. A Capital publicou um extenso artigo sobre a sua vida e morte: “Faleceu esta madrugada na sua casa na rua do Athaide nº 9, o Sr. Dr. Carlos Joaquim Tavares ilustre clinico e professor” (A Capital, 1913). No mesmo dia, surgem vários notas na necrologia anunciando a sua morte com especial destaque para duas, uma da Faculdade de Medicina de Lisboa e outra da Sociedade de Ciência Médicas.

Racismo em vida, esquecimento na morte

Brito Camacho, colonialista convicto, Governador de Moçambique, deixa transparecer no livro citado a sua índole racista insultando maldosamente Carlos Tavares: “Indolente por fatalidade de raça, Carlos Tavares nunca opulentou o espírito…”. O mesmo político não se coibiu de escrever sobre a mãe de Carlos Tavares o seguinte texto ofensivo, acintoso e injuriante:

“à desgraçada mulher que era sua mãe, uma pobre negra que naturalmente era incapaz de sentir orgulho pelo facto de ser seu filho um homem de posição tão elevada” (Camacho, 1928)

Outros o procuraram diminuir e insultar. O seu génio, o seu profissionalismo, o seu conhecimento permitiram-lhe vencer a adversidade. Como o próprio Brito Camacho reconhece, o racismo grassava na alta sociedade portuguesa da época:

“Na verdade o rei D. Carlos, fazendo médico do paço um homem de cor, um africano, deu uma prova de coragem, porque afrontou preconceitos” (Camacho, 1928)

A sua luta contra “preconceito de cor” como era designado o racismo na época levou-o a envolver-se e a apoiar o vibrante movimento Negro da I República, um movimento silenciado pela historiografia oficial, e que partiu de um grupo de estudantes que fundaram em 1911 o jornal O Negro e, depois, sucessivamente um conjunto de jornais dos quais a A Voz d´África já aqui citada.

Carlos Tavares foi Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Junta de Defesa dos Direitos d’África, a primeira organização não estudantil deste movimento.

O movimento, integrado no pan-africanismo, desembocou na organização de dois partidos políticos negros: a Liga Africana e o Partido Nacional Africano. Contra as limitações impostas pelo colonialismo estes partidos apresentaram-se a eleições e elegeram deputados. Ver os trabalhos de desocultação histórica de José Pereira e Pedro Varela (Pereira e Varela, 2019) e Cristina Roldão.

Não fora a A Voz d’África, jornal fundado, dirigido e escrito por Negros repetiríamos que Thomaz de Mello Breyner era o médico do Rei. Uma mentira que se integra na narrativa da segunda-geração e apaga o nome e a obra de Carlos Tavares.

Resgatando a sua memória, percebemos melhor a nossa História, a nossa diversidade e afastamos com vigor mitos e falácias que envenenam a nossa vivência quotidiana.

Nota:
[1]A exaltação patriótica e o racismo são muito nítidos em «Portugal perante o estrangeiro» e em muitas outras obras cerâmicas ou caricaturais do célebre artista” (Guimarães, 1987).

Referências bibliográficas:

  • A Capital (1913), Falecimento – Dr. Carlos Joaquim Tavares, Ano 3, Número 921, 23 de Fevereiro de 1913
  • A Voz d’África (1913), Dr. Carlos Joaquim Tavares, 1 de Março de 1913
  • Barata, José (2008) “Uma Nosografia de D. Carlos I no centenário do regicídio”, Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna, Volume 15, Número 2, pp. 141-145
  • Camacho, Brito (1928), Gente Vária, Lisboa, Guimarães & Cia
  • Gama, Patrícia Eugénia Moreno Sanches (2018), Médicos de Lisboa – Alunos da escola Médico-cirúrgica de Lisboa 1837-1889, Tese de Doutoramento, Escola de Sociologia e Políticas Públicas, ISCTE-IUL, [on line] disponível em https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/19814/1/PhD_Patricia_Sanches_Gama.pdf (consultado a 20 de março de 2020)
  • Guimarães, Ângela (1987) “Imperialismo e Emoções- A Visão de Bordallo Pinheiro”, Sociologia, Número 2, pp. 157-182
  • Machuqueiro, Pedro Urbano da Gama (2013), “Nos bastidores da corte”: O Rei e a Casa Real na crise da Monarquia 1889-1908 – Anexos, tese de Doutoramento, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Universidade Nova de Lisboa
  • Pereira, José e Pedro Varela (2019), As origens do movimento negro e da luta antirracista em Portugal no século XX: a geração de 1911-1933, Buala, [Em linha] https://www.buala.org/pt/mukanda/as-origens-do-movimento-negro-e-da-luta-antirracista-em-portugal-no-seculo-xx-a-geracao-de-1
  • Silva, J. Martins (2002), “Anotações sobre a história do ensino da Medicina em Lisboa, desde a criação da Universidade Portuguesa até 1911 – 2º parte e conclusão”, Revista da Faculdade de Medicina de Lisboa, Série III, Volume 7, Número 6, 305-314