Rui Grácio (1921-1971): A liberdade como horizonte

Abertura

Rui Grácio é uma figura singular do nosso país. Nasceu em 1921. No mesmo ano da Seara Nova. Desde a juventude, teve sempre a liberdade como horizonte. Em 1946, com 25 anos de idade, lançou à sua geração o desafio de “dar um passo decisivo”, de transformar em acção as suas ideias, de “merecer e continuar a acrisolada defesa da liberdade”. Faleceu em 1991, com 69 anos de idade, sempre inquieto, à procura de um caminho de futuro para Portugal.

Devido à dedicação e diligência de Maria Ângela Montenegro Miguel, a sua Obra Completa foi publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian, em três volumes, pouco tempo depois da sua morte. É raro. Permite-nos ter acesso à colecção dos seus escritos, revisitar o seu pensamento. Ademais, estes volumes são antecedidos de dois textos de abertura, notáveis, da autoria de Bártolo Paiva Campos e de Rogério Fernandes, que conheceram bem Rui Grácio e com ele conviveram ao longo de décadas.

Este acervo, de fácil consulta, dispensa um exercício de síntese ou de resumo e permite-me escrever este testemunho a partir de uma leitura pessoal, pessoalíssima, da obra e do percurso de Rui Grácio. Para mim, ele representa uma ponte entre duas gerações ou dois momentos da história da educação em Portugal: a geração da Educação Nova (Adolfo Lima, n. 1874; António Faria de Vasconcelos, n. 1880; António Sérgio, n. 1883) e a geração que, depois de Abril, recupera a tradição das ciências da educação. Do seu tempo e da sua envergadura, só consigo identificar uma outra personalidade marcante, mas muito diferente, João dos Santos, oito anos mais velho do que ele.

Reler as 2000 páginas da Obra Completa é um exercício inspirador. Os textos de Rui Grácio resistem muito bem ao tempo, contrariamente à esmagadora maioria do que se escreve em educação. Talvez pela elegância da escrita. Certamente pela profundidade do pensamento. Talvez pelo esforço de compreensão, sem ortodoxias ou fechamentos. Certamente pela forma como procuram alargar os horizontes da liberdade.

O terceiro instruído

Rui Grácio procura fugir às dicotomias que, tantas vezes, destroem o pensamento educativo. Nele, vejo o “terceiro instruído”, no sentido exposto por Michel Serres de forma absolutamente notável: a compreensão está sempre entre e nunca nos extremos.

Sobre Rui Grácio posso dizer o que em tempos escrevi sobre António Sérgio. A sua identidade terceira não se destina apenas a denunciar, mas também a enunciar, a propor, a sugerir, a fazer, a experimentar. É a recusa permanente de antagonismos, de dicotomias, de um pensamento binário. É o esforço constante para encontrar um ponto de vista próprio, liberto de preconceitos, de dogmas, de uma localização rígida. Não se trata de ocupar uma posição média ou morna, equidistante, neutral ou descomprometida. Trata-se de ir além, de ocupar o espaço entre, através da capacidade de iniciativa, de acção, de realização e, obviamente, de reflexão.

Acredito que é este o destino dos pedagogos: preencher o espaço entre o ensino e a aprendizagem, entre a teoria e a prática, entre os alunos e os professores, entre a ciência e a arte, entre diferentes disciplinas, entre … preencher este espaço e transformá-lo em acção. Não é surpreendente, por isso, que Rui Grácio afirme que a sua “perspectiva é a de um pedagogo” e procure sempre uma terceira forma de abordar o problema: “não se trata de negar certos contributos de certas formas de aproximação ao problema; trata-se de os pensar criticamente, designadamente em função do terceiro ponto de vista” (Obra completa, vol. III, p. 250).

O mais fácil é ficar dentro das fronteiras já conhecidas, repetir interpretações e ortodoxias. O mais difícil, mas necessário, é transpor fronteiras, transgredir, juntar perspectivas diferentes, conhecer com liberdade. É esta a lição do pedagogo Rui Grácio.

A democratização do ensino

O eixo orientador da acção de Rui Grácio é a “democratização do ensino”, conceito que usa frequentemente entre aspas, para anotar a sua complexidade e, sobretudo, a forma enganosa como é, por vezes, anunciado.

Rui Grácio saúda, evidentemente, o aumento da escolaridade obrigatória decretado por Leite Pinto nos anos 1950, e as políticas de “generalização do ensino” prosseguidas por Galvão Teles nos anos 1960, e mais ainda a “batalha da educação” proclamada por Veiga Simão no início dos anos 1970, mas alerta quanto aos limites da “democratização do ensino” num regime ditatorial:

“É significativo a este respeito o destino do termo democratização do ensino. Recuperado por Caetano no universo semântico da Oposição após as eleições de 1969, o ministro da Educação utilizá-lo-á profusamente. Mas não pôde permitir-se inscrevê-lo nos textos submetidos à discussão pública em 1971 e muito menos na proposta de lei remetida à Assembleia Nacional em 1973. Era uma palavra crítica num regime em crise” (Obra completa, vol. III, p. 496).

Com grande clarividência, Rui Grácio distingue, inicialmente, três acepções da “democratização do ensino”: “uma respeita às bases sociais de recrutamento no contingente escolar, outra aos valores objectivamente veiculados pelos conteúdos do ensino, a terceira ao teor das relações institucionais – administrativas e pedagógicas – do sistema escolar” (Obra completa, vol. II, pp. 333-334).

Mas logo acrescenta duas outras acepções que considera fundamentais e que respeitam: “à participação das forças e interesses sociais e culturais organizados, bem como dos grupos mais directamente implicados (professores, alunos, pais), na definição e aplicação das políticas educativas; às relações de articulação do sistema educativo com os objectivos políticos apontados ao desenvolvimento económico, tecnológico, social, cultural” (Obra completa, vol. I, p. 554).

Para Rui Grácio, o problema da “democratização do ensino” é, acima de tudo, político, pois “a grande máquina do sistema escolar não pode ser entendida fora da sua integração no mais amplo sistema sócio-político da comunidade” (Obra completa, vol. II, p. 334). Nesse sentido, só com o 25 de Abril se abre a possibilidade de políticas coerentes de democratização, que não se limitam a assegurar o acesso, mas também o sucesso dos alunos, políticas que se definem num quadro de participação e de inclusão. Trinta anos depois da sua morte, é uma ambição ainda longe de estar cumprida, em Portugal e no mundo.

Os professores e a sua formação

Professor desde jovem, Rui Grácio sempre dedicou uma atenção especial aos professores e à sua formação. Bateu-se por uma elevação do seu nível cultural, consciente de que o professor é portador de um património rico de experiências e de conhecimentos e de que, só assim, poderá cumprir a sua missão. Bateu-se pela sua formação, académica e pedagógica, que “hão-de integrar-se num todo”: “Dir-se-ia que entre nós prevalece a cândida convicção, quando não é sofisma, de que magister non fit, sed nascitur. Ora, se de algum modo o professor nasce, todavia ele faz-se. E nunca pode considerar-se feito” (Obra completa, vol. I, p. 97). Bateu-se pela participação dos professores nas políticas públicas e, logo em 1956, cita José Régio, quando este afirma fazer parte das funções do professor dizer “a sua opinião em questões de ensino” (Obra completa, vol. II, p. 65).

Rui Grácio cumpre um papel único na dinamização de grupos de estudo, na organização de momentos de formação de professores, na valorização da profissão docente. Não se cansa de denunciar as deficientes condições de trabalho dos professores, defende uma maior autonomia pedagógica, propõe que se reúnam as melhores condições para que possam reflectir e experimentar em conjunto.

Com lucidez, antecipava a necessidade de juntar, na formação inicial e na formação continuada, “uma componente disciplinar específica (científica, literária, tecnológica, artística, etc.), uma componente pedagógica, teórica (ciências da educação) e prática, e, também, uma componente cívica que, aliando informação doutrinal e experiência de organização, gestão, intervenção, desse ao professor a consciência e a capacidade de se assumir, dentro e fora da escola, como cidadão particularmente responsável na construção de um futuro diferente e melhor” (Obra completa, vol. III, p. 262).

Final

Rui Grácio revela uma percepção aguda e clarividente dos problemas educativos e culturais. Resiste às explicações fáceis. Explica que a educação é um dos mais importantes “bens públicos” e como tal deve permanecer. Em páginas luminosas, avança propostas, rebate argumentos, esclarece ideias. Exerce sempre uma lúcida consciência, com a convicção de que só através de um trabalho sistemático, regular e continuado, é possível consolidar uma perspectiva científica no campo da Educação.

Para ele, como para Simone Weil, não basta saber ou fazer alguma coisa, é preciso refletir sobre aquilo que se sabe e que se faz. Ao longo do seu percurso, junta uma reflexão sobre o trabalho docente com um esforço de investigação pedagógica e uma intervenção no espaço público e político da educação. Olha para “o aparelho de ensino, menos como uma grande, pesada e duradoura carpintaria, do que como um organismo vivo, elástico e dinâmico, capaz de adaptação e metamorfose” (Obra completa, vol. I, p. 490). É esta, talvez, a sua grande lição, que nos convida a pensar a educação “como um campo aberto à iniciativa periférica, como um lugar de inovadores impulsos ascendentes, como uma pluralidade de oficinas que colaboram no traçado das grandes linhas” (Obra completa, vol. I, p. 490).