Sal da Terra – “A mulher de cabelo branco”
O automóvel vai devagar. A estrada é estreita com alcatrão de primeira. Ora serpenteia, ora desce e sobe, ora se estica por longos metros. Do lado esquerdo o vidro está quase sempre embaciado. Um leve toque no botão eléctrico faz o vidro descer e o vento gelado entra no habitáculo sem pedir licença. Sabe bem. Sente-se o ar puro a invadir os alvéolos pulmonares. Ouve-se só o barulho dos rodados. Ruben quase adormece ao volante. A paisagem é monótona. Castanha, vermelha, terra de pedras, fardos de palha e abutres. Vacas e touros lá longe. Numa curva à esquerda, somos surpreendidos com um caminho de terra batida. Bem perto, uns muros de pedra com telhas e janelas abertas. Desviámos. Devagar, o pó levanta-se. Saímos. Não é necessário trancar as portas do automóvel. Estamos sozinhos. Entramos na aldeia. Ninguém. Só as pedras, os telhados derrubados, as salas decoradas com ervas, os quartos com estuque caído e as lojas sem estrume nem cheiro. Só as árvores estão frondosas e imponentes. Agora é tudo delas. Já não há quem as pode nem as regue. Quem colha os seus frutos. Sobrevivem sozinhas. Ruben regista tudo o que pode com o seu telemóvel. Ali, nunca existiu luz eléctrica. Nem jornais, nem rádio. Cartas de longe a longe. Uma manjedoura enorme escavada na pedra, faz imaginar os animais ao fim do dia a invadirem o centro da aldeia. E os homens e as mulheres. E as crianças. Bem vestidos ou esfarrapados. Naquele amontoado de casarios também existia o estatuto social. Os abastados e os remediados. Os donos e os assalariados. Ruben é muito novo. Já nasceu com a liberdade. Mas sabe as histórias daquele território. A Numância, os romanos, a guerra civil, a ditadura e o desespero actual. Podemos sentir tudo. Entre o castanheiro, a pedra e o caminho gasto. No céu as nuvens negras galgam a bom ritmo. A igreja em ruínas não deixa de ser imponente. Faz jus ao seu dono. Faz adivinhar o casamento das meninas ricas e as confissões dos pais viris que procuravam colchões de palha embebidos em prazeres. Em frente ao pelourinho de ferro ferrugento uma casa grande. Só lhe resta uma parede. É tudo enterro. Ainda mete medo. Imaginamos o retrato do ditador e os murros no peito do revolucionário. Numa parede em frente, as marcas das balas dos fuzilamentos. Imaginamos. Só. E ainda bem. Já não pudemos voltar atrás. Julgamos nós. Separado da aldeia está o cemitério. Tiramos os gorros que nos protegem a cabeça. Cruzes caídas, fotografias desaparecidas e duas tíbias ao sol. Pelo tamanho são de criança. Os gigantes fardos de palha são os únicos vizinhos do que resta de vidas longas ou curtas. Ruben fecha o portão do cemitério com um fio de plástico preto. Subimos a rua. Cada um mergulhado no seu gorro e nos seus pensamentos. Ligeiramente curvados. O vento é gélido. A chauffage do pequeno automóvel reconforta os pés e as pernas. Continuamos pela terra de quase ninguém. Numa paragem de autocarro, surreal, pensamos nós, para quem, pensamos nós, um cartaz de um partido político tem o slogan SEMEAR. A fotografia do ditador já não está no edifício em ruínas. Mas há quem o queira ressuscitar. Também ali, naquele pedaço de terra ensopado com sangue e solidão. Ruben sabe que são necessárias muitas sementeiras. Mas há sementes que não trazem pão nem paz. Separar o trigo do joio é a grande luta dos nossos tempos. Uma mulher de cabelo branco e de passo largo diz-nos adeus. Vai feliz. Os abutres fogem.