A Angolanidade Poética de Neto e as Gerações Póst-Independência
Venho falar-vos daquele que é «incontestavelmente um dos mais célebres filhos da África. Uma figura internacionalmente reconhecida e aclamada como dos maiores protagonistas da luta pela dignificação do homem angolano, e da derrota do poder colonial fascista em África. É, igualmente, reconhecido como poeta – um poeta que engajou a sua arte, e o seu dom, ao serviço de uma causa que ele tão bem soube servir como presidente do MPLA. A sua poesia pode ser considerada assim como uma síntese das suas extraordinárias capacidades», conforme a sua estudiosa Janet Carter.
Para Carter, «a matéria-prima com que o fundador da República Popular de Angola construiu o seu universo poético foi a realidade sócio-política da sua terra natal vista por um prisma marxista (sendo que…) tendo sido especificamente gerada pela luta ideológica em Angola e de fim essencialmente revolucionário a poesia de Neto pertence à categoria global de literatura de protesto». Assim entendidos, a poesia e outros escritos do poeta António Agostinho Neto, enquadram-se dentre a densa «literatura de fins sócio-políticos: de simples textos de consciencialização social e reivindicação cultural a textos especificamente revolucionários».
O espaço linguístico angolano e a originalidade da nossa cultura enquanto africanos é motivo visível na tessitura e nas linhas com que se cose toda a sua arte literária pelo que, tendo em conta esse pormenor, devemos sempre contextualizá-la historicamente pois a conjuntura sócio-política internacional nas primeiras décadas do século passado deve ser convenientemente escalpelizada para melhor entendermos o fenómeno daquela criatividade artística no seu próprio tempo.
Sobre isto, para o Prof. Mário Santos que também atentamente se debruçou sobre o talento poético de Neto “a opressão política e a dominação sócio-económica foram os componentes basilares que caracterizaram a cena internacional nas primeiras décadas do século XX”.
Prossegue: «Uma visão crítica do mapa geopolítico da época e dos acontecimentos ocorridos ao longo desse tempo induz a uma inequívoca conclusão: vários povos de distintas latitudes geográficas, em particular os do continente africano, estiveram sujeitos a uma brutal dominação colonial perpetuada pelas potências europeias».
Ainda nesta senda, e segundo David Mestre, consta que na altura, “a pequena burguesia (administrativa e mercantil) africana estabelecida e com estatuto próprio na sociedade colonial, entrava na derradeira etapa do seu aniquilamento enquanto elemento participante da vida económica e social de Angola». Este lembra-nos que Agostinho Neto viveu os primeiros anos da sua vida nas paragens verdes de Kaxicane, situada numa antiga via de penetração do comércio do litoral no interior que ecoou para Luanda com os restantes portos fluviais da região navegável do rio Kwanza». Neto surge então na sequência das reivindicações de uma plêiade (de jovens) que ainda no século antepassado se mostrou activa e aguerrida na defesa dos seus interesses e dos seus irmãos de raça e infortúnio, na imprensa da época. (D.M.).
Neto fez-se poeta telúrico e de referência universal por isso mesmo a estudiosa russa Helena Riauzova dizia, há já algum tempo, que a poesia de A. Neto foi sempre de luta e nela estão visíveis a dor e o sofrimento do povo angolano assim como a coragem e a decisão inabalável de lutar pela liberdade e pela total independência da pátria que o viu nascer. Na poesia de Neto sempre esteve a esperança, a confiança e até a alegria da vitória do próprio povo. Os indicadores poéticos da esperança surgem aguerridos em poemas como «Havemos de Voltar» ou mesmo em «O Içar da Bandeira» ou ainda em «Adeus à Hora da Largada».
Poesia consciente, cheia de entusiasmo, premonitória e de elevado civismo. São traços graças aos quais ocupa um lugar importantíssimo, não só na cultura e literatura angolana, mas também na literatura lusófona, africana e universal. Entretanto, Neto era fundamentalmente um homem de paz pelo que de entre outros, foi laureado com o prémio “Lotus” da associação dos escritores Afro-Asiáticos e com o prémio internacional “Lénine” pelo seu surpreendente engajamento no fortalecimento da amizade, solidariedade e paz entre todos os povos.
Os escritos de Neto são de uma amplitude sonhadora universal e daí «A voz Igual». Acarretam uma profundidade filosófica entre nós inigualável pois até a necessidade de educação e instrução com vista a armazenar o saber que fortalece a nossa cultura geral perpassa por toda a sua poesia bem como nos seus ensaios de juventude no «Estandarte» ou mesmo nas posteriores propostas de refinada prosa contista.
Um refinado lirismo, imensos motivos de saudade não só da sua infância e mocidade mas, também, dos amigos e entes queridos dos quais se havia separado em razão da luta. A amargura de quem vive enclausurado, a ânsia da liberdade colectiva, e a esperança de um melhor porvir são motivos de jamais olvidar.
Vamos crer que qualquer poeta que se preza é um infinito e corajoso batalhador, em todos os campos, sempre predisposto para enfrentar os desafios do seu próprio tempo. Neto assim o era e conta-se um episódio segundo o qual na prisão foi-lhe proibido trabalhar e escrever mas ele escrevia os seus poemas com letras pequeníssimas em minúsculos pedaços de papel que eram enrolados e escondidos dentro de um cigarro.
Houve vezes que, num cigarro cabia um poema inteiro. Aquando das visitas da esposa, ela saía sempre, com um cigarro intacto e dentro dele, com um poema novo escondido.
Reputamos tal atitude como sendo um célebre acto de luta, coragem e sobrevivência pois escrever, para ele era um destino em razão das premonições e foi ele mesmo quem disse um dia. “…escrevíamos poesia (nas prisões) expressávamos as nossas ideias, mais recônditas, apelávamos o povo à luta… aliás nos foram criadas condições ideias para a criação. Uma prisão oferece a um poeta tanta solidão em que só pode sonhar um esteta dos mais refinados. Em todo o caso, nunca mais tive tanto tempo para a poesia como quando estava encarcerado.”
Posteriormente, os desafios passaram a ser objectivamente outros, aos quais já no período póst-independência se juntou a presidência da União dos Escritores Angolanos, instituição cultural fundada aos 10 de Dezembro de 1975, justamente um mês após ele mesmo ter proclamado a independência de Angola, fazendo dela a República popular que durou até ao início dos anos 90 do passado milénio.
Agostinho Neto, antes de poeta, em razão da sua formação, era sobretudo um homem de princípios. Estes princípios de carácter ético, fundamentalmente, polvilharam toda a sua poesia. Contudo, todo o digno leitor e cultor do seus textos dificilmente negará a sua influência. Aliás, até porque “(…) a poesia de Neto tem as suas raízes históricas mergulhadas na longa tradição da literatura angolana patriótica e que data já das últimas décadas do século XIX.”
Podemos ler o que bem escreveu Marga Holness, na introdução da Sagrada Esperança de Neto: “Em o Futuro de Angola, semanário que se publicou em Luanda nos primeiros anos da década 1880-1890, José de Fontes Pereira verberava o domínio do português que apenas trouxera escravidão e ignorância. Cordeiro da Mata, outro patriota desse período escreveu romances e poesia e compilou o primeiro dicionário de Quimbundo-Português, o que só por si constituiu um acto de rebelião dado que os colonialistas portugueses reprimiam implacavelmente as manifestações literárias das línguas autóctenes”. Os textos de alguns autores deste grupo de escritores, foram compilados e publicados num livro intitulado “Voz de Angola Clamando no Deserto”. Obra de homens cultos e de grande talento cujo propósito confesso era o de «vingar a verdade ultrajada».
Num contexto em que reinava a escravidão, acusava a Voz de Angola … que, «não pode haver nem trabalho, nem civilização, nem progresso». E salienta que o trabalho do negro constituía a base de todo o crescimento económico da colónia, este livro punha em causa o regime colonial através de uma violenta acusação formal. «Este foi o acto de nascença da literatura Angolana…» segundo palavras de Mário Pinto de Andrade.
Sendo a literatura angolana um todo indubitável, quero dizer que apesar de algumas rupturas estético-literárias compreensíveis as gerações póst-40 viram-se influenciadas, e de que maneira, fundamentalmente, por Neto, em razão também do fervor revolucionário que nos levou à independência nacional alcançando-se o momento maior do programa mínimo do MPLA liderado pelo poeta.
O que será então, entre nós, a tão propalada angolanidade? Em jeito simples mas não simplista, em nosso modesto entender a angolanidade não é mais do que o reflexo dos demais motivos que conformam a realidade social, económica política e cultural no contexto geográfico da nossa nação una e indivisível mas, resultante de várias ex-nações de acordo com o pensamento dele mesmo. O presidente.
Na interpenetração idiomática encontramos o recurso com que Neto e os demais integrantes da sua geração desafiaram o regime colonial e fascista português afirmando a nossa própria identidade, a nossa angolanidade, por via da utilização e infiltração de termos das línguas nacionais na – ainda – oficial língua portuguesa.
Neto é, por conseguinte, um mestre da nossa própria família de poetas, na esteira do pensamento crítico de Harold Bloom, que em seu livro intitulado A Angústia da Influência diz-nos citando outro autor: «O coração de qualquer jovem é um cemitério em que se inscrevem os nomes de mil artistas mortos mas cujos únicos residentes são uns poucos que pautamos poderosos. (…) o poeta é assombrado por uma voz com a qual as palavras se têm de harmonizar».
Neto, com a sua angolanidade, será para sempre o pai das futuras gerações literárias de Angola e não só. Ele é mesmo o mais alto expoente dos integrantes da nossa família de poetas. Refiro-me à nossa família ética e estético-literária.
Convêm finalmente realçar, para governo das futuras gerações de escribas entre nós, que tudo isso implica necessariamente um requintado autodidactismo, formação, trabalho, entrega e muita leitura pois, Neto tal como outros… assim o fizeram no seu tempo. Fizeram intensas e imensas leituras. Referenciado por Roberto de Almeida, Antero Abreu, advogado e então colega de Agostinho Neto, conta que liam dentre outros, os “Cadernos Verdes” das Editions Sociales, as “Noções Elementares de Filosofia” de Politzer, o “Le Marxisme” de Henri Leféve, o “Cogniet” e ainda livros de circunstâncias que deixaram marca indelével como “Estes dias Tumultosos” do jornalista belga Van Passen, “Os dez dias que Abalaram o Mundo” e também livros de ficção e poesia como “A Mãe” de Máximo Gorki, “O Don Tranquilo” de Cholokov, toda a obra de Jorge Amado publicada até então, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, da “Rosa do Povo”… De Espanha, Lorca e António Machado; de Portugal os neo-realistas como Soeiro Pereira Gomes, Alves Redol, Fernando Namora, José Gomes Ferreira, Carlos de Oliveira, Joaquim Namorado e Fernando Pessoa.
Como não podia deixar de acontecer, naquele contexto sócio-político e cultural leram igualmente os grandes poetas da negritude, Aimé Césaire, Leon Damas, Senghor, e dos poetas negros americanos, Langston Hugles e Count Cullen, dos brasileiros Jorge de Lima e Solano Trindade, dos franceses Éluard, Aragon, Jacques Prévert, do soviético Vladimir Maiakovsky, dos americanos John dos Passos, Steinbeck, Caldwell, Ernest Hemingway, dos latinos-americanos Nicolas Guilmen e Pablo Neruda.
Só assim podemos entender que Neto tenha dado uma dimensão ética, humanista e universal – consciente do seu papel -, a toda a arte literária. Uma vida e poesia para a liberdade e para a paz em África e no mundo. Eis o caminho!
Bibliografia consultada - Sagrada Esperança/ Renúncia Impossível/ Amanhecer em Poesia – Agostinho Neto. UEA - A Voz Igual – Ensaios sobre A. Neto - Nem tudo é Poesia – Ensaios, David Mestre. UEA - Apuros de Vigília – Ensaios, Luís Kandjinbo. UEA - Angola 11 de Novembro – Documentos sobre a independência. Minfo - A vida e obra de A. Neto – Roberto de Almeida, palestra - A. Neto – Conferência, Embaixada de Angola na Rússia