Contra os senhores da guerra, sejamos “protagonistas da paz”
1. Não vou falar da ‘guerra na Ucrânia’. Direi apenas que não defendo Putin nem o bando de gente corrupta que, com ele, dirige os destinos da Rússia, depois de pilharem a riqueza acumulada por gerações de trabalhadores da Rússia e da URSS. Não defendo a oligarquia igualmente corrupta e criminosa que, desde a independência, tomou conta da Ucrânia, pilhando de tal forma os recursos do país que, em poucos anos, cerca de 20 milhões de pessoas (o maior fluxo de emigração registado na Europa) foram ‘empurradas’ para a emigração, em busca de uma vida melhor. Não defendo a guerra. Estou solidário com todos os que sofrem os seus horrores e acredito que a solução não vai sair da guerra mas de negociações que lhe ponham termo. E também não defendo a tresloucada corrida ao armamento dos países da NATO.
Não nego as responsabilidades da Rússia no desencadear da guerra. Mas não posso ignorar as responsabilidades dos EUA (e da NATO, o que é a mesma coisa), as responsabilidades da ‘Europa’ e as responsabilidades do governo de Zelensky.
Os EUA foram ‘provocando’ a Rússia até um ponto em que, como bem sabiam, a guerra era de esperar. Esta é uma guerra dos EUA contra a Rússia, para enfraquecer a Rússia, para que “a Rússia enfraquecida seja incapaz de reconstruir o seu exército” (declaração do Secretário de Defesa dos EUA, de visita a Kiev, 25.4.2022), para derrubar Putin (confessou Biden na Polónia). Tudo claro: os EUA querem uma guerra prolongada, tendo dito, desde o início (honra lhes seja feita) que não estariam disponíveis para combater ao lado da Ucrânia. Trata-se de uma guerra por procuração, até ao último ucraniano, arriscando destruir a Ucrânia e colocar o mundo à beira de uma guerra terminal.
O governo de Zelensky (recheado de nazi-fascistas influentes politicamente e militarmente organizados) cumpriu o papel que lhe foi atribuído na ‘provocação’ à Rússia. Durante oito anos, recusou-se a cumprir os Acordos de Minsk, aprovou legislação racista que reduziu a cidadãos de segunda as minorias da Ucrânia (em especial a minoria russa, os pretos da neve), moveu uma guerra terrorista contra as populações russo-falantes do Donbass (cerca de 15 mil pessoas mortas por não serem ucranianas originárias). Para além de terem ajudado a criar as condições que conduziram à guerra, Zelensky e o seu governo aceitaram sacrificar o seu povo numa guerra, não para defender os direitos e os interesses legítimos do povo ucraniano, mas para servir os objectivos imperiais de uma potência estrangeira.
Esta é também uma guerra contra a Europa, para enfraquecer a Europa. Eu creio que os dirigentes europeus têm consciência disto, e, inicialmente, talvez não quisessem esta guerra. Mas acabaram por se envolver nela, habituados a ser escravos obedientes dos EUA.
Quando preparam uma guerra maior contra a China (o actual inimigo estratégico), é essencial para os EUA manter a Europa sob o seu controlo. É obvio que cooperação Europa-Rússia poderia potenciar o desenvolvimento de um espaço económico-político concorrente com os EUA. E não falta quem defenda que uma das causas próximas desta guerra contra a Rússia terá sido mesmo o propósito (que os governantes de serviço na Casa Branca nunca esconderam) de fazer abortar a construção do gasoduto Nord Stream 2, destinado a transportar maiores quantidades de gás russo barato para a Europa. E todos vimos na TV o modo arrogante como Biden, comportando-se como dono do mundo e dono da Europa, humilhou o Chanceler da Alemanha (de visita oficial a Washington), dizendo na sua cara, perante a comunicação social de todo o mundo, sem o mínimo respeito (nem sequer salvaguardando o decoro diplomático), que, se a Europa não pusesse fim ao projecto do gasoduto (que foi uma iniciativa da Alemanha, financiadora de uma boa parte dos seus custos), os EUA acabariam com ele, impedindo o seu funcionamento. Este é o tipo de relação entre ‘aliados’ no seio da NATO. O episódio representa uma humilhação para a Europa, especialmente para a Alemanha, tratada como um país de soberania limitada.
2. Vou tentar alinhar algumas ideias a propósito das sanções aplicadas à Rússia. Em primeiro lugar, não acredito que as sanções façam parar a guerra: elas são uma arma de guerra contra a Rússia, que não foi utilizada para livrar o povo ucraniano dos horrores da guerra. Os sancionadores dizem que elas se destinam a enfraquecer a Rússia. Talvez ainda seja cedo para se fazer um balanço credível do resultado das sanções em termos de prejuízo para a Rússia. Mas o resultado é duvidoso.
As autoridades russas dizem que elas não atingiram os objectivos que se propunham. Estão no seu papel. O rublo caiu drasticamente depois do início da guerra. Mas, em menos de um mês, o governo russo terá conseguido estabilizar a sua moeda, através de medidas várias, entre as quais a de obrigar os países que apoiam as sanções decretadas contra a Rússia a pagar em rublos depositados em bancos russos o petróleo e o gás que lhe compram. Acresce que a Rússia está a vender muito mais petróleo à China, à Índia e a outros países. E, perante a subida do preço do petróleo nos mercados internacionais, a Rússia poderá exportar menos quantidade de petróleo mas receber mais dinheiro do que até aqui.
Vistas as coisas de outro ângulo, a Europa está já a sofrer as consequências do esforço de guerra imposto pelo ‘patrão’ da NATO. Graças à guerra, Biden conseguiu o que Trump almejava: que a ‘Europa’ pagasse mais dinheiro para a NATO, para que os EUA possam fazer as suas guerras com dinheiro ‘confiscado’ aos trabalhadores europeus. A ‘Europa’ consentiu de novo em embarcar na corrida aos armamentos, anunciando o aumento das despesas militares (“senti-me envergonhado – desabafou o Papa Francisco – quando li que um grupo de países se comprometeu a gastar 2% do PIB com a compra de armas”). A Europa da guerra vai matar a Europa social. Passados 77 anos sobre a derrota do nazi-fascismo, o Velho Continente continua a ser ocupado militarmente pelos EUA (que devem ter aqui uns 200 mil soldados, espalhados por várias bases militares, que albergam armas de todo o tipo) e os povos da Europa vão ter de conviver de novo com a Grande Alemanha transformada em potência militar. Preocupante é vermos a ‘Europa’ a deixar-se enredar em práticas que dificilmente conseguem disfarçar a sua matriz fascista, como a decisão da UE de exercer a censura, condicionando os jornais, as estações de rádio e de televisão que podemos ler, ouvir e ler. Nem sequer vivemos em situação de guerra declarada e não me parece que a Comissão Europeia tenha poderes para exercer a censura. Triste sinal dos tempos…
A Europa já está a sofrer as consequências das sanções impostas à Rússia. Já aí está a inflação (com o empobrecimento dos mais pobres e o agravamento das desigualdades). Já aí está o aumento dos custos da energia e o aumento das dificuldades das empresas europeias na concorrência com as de outros países que não alinharam com os EUA na aplicação de sanções à Rússia. Os EUA ‘empurraram’ a ‘Europa’ para incluir nas sanções o embargo das importações de petróleo e de gás russos. Entretanto, segundo os jornais, os EUA têm aumentado significativamente as importações de petróleo russo. Talvez para depois o venderem à Europa a um preço superior, tal como o gás (que os americanos nos querem vender a todo o custo), muito mais caro do que o vindo da Rússia. Ao fim e ao cabo, é bem possível que as sanções aplicadas à Rússia acabem por afectar mais duramente a economia e o poder de compra dos cidadãos dos países da UE do que a própria Rússia. Ao serviço do seu ‘senhor’, a Europa auto-flagela-se, até sangrar: a Europa vai ficar mais dependente dos EUA nos planos militar, político, energético e alimentar.
3. Na ONU, a grande maioria dos países da África e do chamado Terceiro Mundo e estados tão importantes como a China, a Índia, o Brasil, a África do Sul e o México (que representam uma percentagem muito importante da riqueza produzida em todo o mundo e, de longe, a maior fatia da população mundial, quando o ‘ocidente’ representa apenas 15%) recusaram-se a apoiar as sanções dos EUA e da UE à Rússia. Alguns condenam abertamente a atitude da Rússia e todos são solidários com o povo ucraniano, mas não embarcaram na ‘guerra santa’ contra a Rússia. É particularmente significativo que a Arábia Saudita e os principados do Golfo tenham adoptado a mesma atitude, depois de recusarem o apelo de Washington no sentido de aumentar a produção de petróleo, para compensar a diminuição da exportação de petróleo russo e evitar a subida dos preços nos mercados internacionais.
Os EUA já tinham congelado, há anos, as reservas do Banco Central da Venezuela. Mais recentemente, os EUA aproveitaram para congelar as reservas do Afeganistão, num momento em que milhões de pessoas passam fome neste país destruído pela acção dos talibãs ‘fabricados’ pelos EUA e pela acção dos EUA que, ao longo de vinte anos, ocuparam o País para combater os talibãs, com os quais acabaram por negociar a sua retirada.
Em 26.2.2022 o ‘Ocidente’ passou à fase da guerra financeira total, com o confisco das reservas cambiais da Rússia: as reservas soberanas russas em euros, dólares e papéis do Tesouro dos EUA deixam de poder ser utilizadas para pagar dívidas russas a credores estrangeiros. Tudo isto para enfraquecer a Rússia.
O que é certo é que a Rússia é um país que ocupa um papel central nos mercados mundiais de produtos energéticos e de várias matérias-primas essenciais à actividade económica global. É muito provável, por isso, que o mundo acabe por ver-se confrontado com engarrafamentos em sectores importantes da actividade produtiva e com uma inflação de grandes dimensões, gravemente perturbadora do crescimento económico e do bem-estar de muitos milhões de pessoas, com o empobrecimento generalizado e o agravamento brutal das desigualdades. Basta ver as ameaças de fome que pesam já sobre milhões de pessoas, especialmente dos países mais pobres, que dependem em grande medida do trigo e do milho provenientes da Rússia e da Ucrânia. O mundo inteiro corre sérios riscos de uma grave crise alimentar, energética, económica e social.
Creio que, para além de outras razões (variáveis de país para país), os estados que recusaram aplicar as ‘sanções americanas’ contra a Rússia tinham consciência disto mesmo e procuraram reduzir os riscos de uma catástrofe planetária (que não está afastada).
4. As sanções contra a Rússia vieram mostrar a todo o mundo que não se pode confiar nas potências do ‘ocidente’ e no seu sistema financeiro: mesmo um importante estado integrante do G20, como a Rússia, pode ver congeladas as suas reservas cambiais, por decisão unilateral dos EUA (logo seguida pelos seus satélites). Os ‘beatos’ defensores de uma ordem gerida por regras violaram, mais uma vez, as regras que eles próprios definiram para o sistema financeiro internacional, transformado (bem como o próprio dólar) em arma de guerra.
Ironicamente, a Administração Biden veio dizer que os Títulos do Tesouro dos EUA deixaram de ser um activo seguro, o que vai dificultar o financiamento pelos EUA dos seus défices orçamentais e da balança comercial mediante a emissão de dívida, para captar, por exemplo, a poupança da China. Muitos estados concluirão que têm de rever profunda e rapidamente a composição da sua carteira de activos financeiros externos, nomeadamente reduzindo (ou anulando) os activos denominados em dólares, sobretudo os Títulos do Tesouro dos EUA. Outros devem já estar a pensar em retirar as suas reservas para fora da jurisdição dos EUA. Os países que têm poupanças disponíveis preferirão comprar ouro e guardá-lo bem guardado, longe dos EUA.
Um dos países que certamente está a pensar a sério nestas questões é a China, que os EUA consideram o seu principal inimigo estratégico, que tem reservas em montante muito superior ao exigido segundo todos os critérios e que é o primeiro ou segundo credor dos EUA.
5. Creio que as sanções contra a Rússia estão a facilitar o reforço da cooperação entre a Rússia e a China, países interessados na concretização de um mecanismo de pagamentos entre ambos que dispense o dólar (e o euro), o que aproximará a Rússia dos chamados BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, 40% da população mundial e cerca de um terço do PIB mundial).
Há tempos que os BRICS vinham trabalhando no sentido de se livrarem do dólar como moeda de referência nos pagamentos internacionais, o único ponto forte dos EUA, para além da sua força militar. Em 2012 anunciaram o propósito de acelerar a concretização de um projecto que visa a utilização das suas próprias divisas no comércio entre elas, dando um passo importante no sentido de pôr de pé mecanismos de pagamentos internacionais que deixam o dólar de fora, o que, a concretizar-se, implicaria uma viragem na correlação de forças à escala mundial. E em Março/2013, os BRICS criaram um banco de desenvolvimento comum em bases equitativas (alternativo ao Banco Mundial) e um fundo de reserva de cem mil milhões de dólares para apoiar os países subdesenvolvidos, em alternativa ao FMI.
O processo iniciado com a aplicação de sanções à Rússia parece ter provocado o relançamento da actividade dos BRICS. Já depois do início da guerra na Ucrânia, reuniram os Ministros dos Negócios Estrangeiros dos BRICS, tendo participado na reunião, para além dos cinco países fundadores, representantes da Argentina e da Indonésia (próximos da adesão à organização), bem como do Cazaquistão, Egipto, Nigéria, Senegal, Emiratos Árabes Unidos e Tailândia. Em Junho de 2022 terá lugar na China uma Cimeira dos BRICS, para a qual foi convidada a Argentina.
Vamos a ver que novidades sairão desta reunião. Muitos especialistas entendem que podemos estar à beira de uma mudança radical no sistema financeiro à escala mundial, com a criação de um novo sistema monetário internacional à margem do dólar, certamente em sentido contrário aos interesses dos EUA e da Europa do euro.
António Avelãs Nunes
(1939)
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito de Coimbra