Sal da Terra – “DA ESPERANÇA”

«Vivemos tempos sombrios em que as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança», Hannah Arendt

Venho das penumbras de um tempo estranho. De silêncios brumosos e perplexidades redutoras. Bagagem elementar: palavras, sons, imagens, caminhar pela vida.

Venho de uma Lisboa de conversas sussurradas, de tertúlias, de soletrar paixões em assaltos circulares às mesas dos cafés. Itinerário de afectos e subversões mansas, que iam da fauna renovadora da poesia 61, das penumbras médio-burguesas dos cafés, ao neorrealismo remoçado pela estética do nouveau roman, até às delirantes incursões surrealistas.

A minha geração viveu cercada de bufos e de medos das sombras, mas sonhávamos dias fecundos e soltos, com o sol na algibeira. Renascíamos a cada madrugada com uma bagagem de esperança nos alforges e aguentávamos as estocadas de um País medíocre e cabisbaixo.

Venho de frágeis bagagens teóricas, de ficções aprendidas no cinema de bairro, vivificadas na mitologia das imagens em eastmancolor e cinemascope. Uma paixão púbere, irracional e sensitiva pelas imagens animadas, até à serena descoberta dos autores que ficariam para sempre e moldariam a minha forma de entender o cinema: Renoir, Truffaut, Godard, Ford, Visconti, De Sicca, Bergman, Kazan, Pasollini. Os filmes em que a memória grave da 2ª. Guerra habitava de mãos dadas com a esperança a renascer num mundo a lamber as feridas do horror.

As palavras, as que mais se demoraram no meu cofre de descobertas para a vida, aprendi-as primeiro, e vorazmente, nos textos de Teatro: Casona, Júlio Dantas, Valle Inclan, Gil Vicente, Beckett, Steinbeck, José Cardoso Pires, O’Neill, Brecht, Santareno, Tennessee Williams. Até hoje. A literatura. Sempre. Com conta-corrente na tabacaria Barata, muito antes de ser a que agora existe, imponente e não muito longe da tabacaria do senhor Barata, que resguardava de olhares censórios, inquisitoriais e austeros, os livros interditos. A nossa esperança também se alimentava dos códigos cifrados que germinavam revoltas, nesses livros.

Alma e sentidos abertos ao novo, às ideias que fervilhavam na Europa a sair do terror da 2ª. Guerra – a esperança a crescer, apesar dos cercos.

A escrita. O primeiro poema publicado no Juvenil do Diário de Lisboa, a primeira novela rasurada à socapa nas aulas de Organização Corporativa da Nação. A esperança de um dia vir a publicar algo que merecesse justificar os meus passos na Terra.

A guerra colonial. O primeiro encontro com os medos, com os subterrâneos rumores da morte, os sobressaltos maiores do desencanto. A esperança de regressar vivo, eu e os meus camaradas, ao porto de partida para o absurdo.

A escrita. Os jornais, o teatro, as rádios: um itinerário de errâncias.

Escrevo esperança ainda, aos 75 anos, a partir desse espólio, dessa vivência de anos, de estupor, de angústias e de sonhos; a partir da argúcia de uma (ainda) impressiva memória em permanente reconstrução de signos. Com alguns referentes, sinais ténues da minha geração.

Como Egito Gonçalves escreveu, num dos seus memoráveis poemas, a humanidade terá sempre força para se reinventar, enfrentar escolhos e tempos aziagos. Mudar de rumo:

«Mas diz-lhes que se mantém indevassável

o segredo das torres que nos erguem,

e suspensa delas uma flor em lume

grita o seu nome incandescente e puro.

[…] e a esperança reproduz-se.»