O homem que me ensinou a LER
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Peço a quem me lê alguma transigência na evidente dificuldade do que quero expressar: o som das teclas da máquina de escrever, os compassos de espera na escrita, o aviso de fim de linha, o empurrar da alavanca para fazer mover o rolo do papel, o continuar da escrita.
Mas estes são os sons que mais presentes tenho do tempo em que vivi com os meus pais. Ela, porque foi até certa altura dactilógrafa e às vezes trazia trabalho para acabar (mas não é dela que quero falar agora), ele, porque passava a maior parte do tempo que estava em casa a trabalhar no seu escritório.
Houve sempre um escritório para o pai, em cada uma das três casas em que sucessivamente morámos. Numa ponta da casa, afastado dos locais de maior barulho como a cozinha, lembro-me perfeitamente de cada um, em Lisboa e na Parede, para onde fomos viver por volta dos meus 8 anos de idade.
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era sinal que havia que não fazer barulho nem entrar sem um toque na porta, porque o pai estava a trabalhar. E fazia-o até tarde, noite dentro depois do jantar. Cresci a ouvir estes sons, a ver livros espalhados pelo chão, pelas cadeiras, em cima da secretária. Fui percebendo que eram precisos porque fazia traduções, sempre do francês, e aprendi muito mais tarde, em conversa com ele, como é tão difícil traduzir e como exige um imenso conhecimento da língua original, da língua para que se quer fazer a tradução e, não menos importante, do assunto, do tema, da matéria, que se vai trabalhar. O meu pai traduziu uns sessenta livros, muitos romances, mas não apenas romances. “A mulher infiel”, de Jules Roy, “O fim de Chéri”, de Colette ou “Civilização Grega – Da Ilíada ao Pártenon”, de André Bonnard, são alguns dos que continuam ao fim destes anos todos numa estante da minha casa, ao lado de “A sibila”, de Pär Lagerkvist, livro que foi motivo da primeira grande conversa com o meu pai sobre escrever, ler, pensar – eu teria uns 15 anos e garanto que não foi fácil, nem simples. E se aqui chamo esta ‘arte de traduzir’, é porque entendo o quanto contribuiu para a solidez da sua imensa cultura, do seu saber e do seu pensamento, o quanto foi determinante para a sua formação e que é por aqui que passa, também, o seu crescimento para o escritor que haveria de ser. Só a título de exemplo “Ana Karenina”, de Léon Tolstoi, sai em 1959, o que quer dizer que foi traduzida por um jovem homem de 36-37 anos. Convenhamos que não seria muito vulgar, pelo menos à época.
Não posso falar da escrita de “Terra do pecado” nem de “Claraboia”. O primeiro foi publicado no ano em que nasci e quando acabou o segundo eu teria uns 6-7 anos. É claro que não há memórias. Mas há outras. Mais tardias e mais ricas.
Há a memória de ao jantar – a única refeição que tínhamos em conjunto em casa – se falar do que cada um fazia. E assim fui crescendo a aprender as dificuldades de uma gravadora em construção e as de um escritor em progressão, através dos poemas que por vezes lia e da crónica que tinha acabado de escrever. Foi-me ensinando, persistente, dando espaço, mas foi-me ensinando a ler e a interpretar. Teria, eu, uns 13 ou 14 anos quando me deu “A maravilhosa viagem de Nils Holgersson através da Suécia”, de Selma Lagerlöf, e disse Toma, já é altura de começares a ler. Na altura não percebi bem, mas o tempo foi-me ensinando o significado do que quis dizer-me.
Há também a memória de um homem muito disciplinado no seu trabalho e um leitor sem descanso. Sempre o recordo com livros debaixo do braço que lia (até de pé se o comboio ia cheio) nas viagens entre a Parede e o Cais do Sodré, em Lisboa. Quando chegava a casa depois do trabalho, normalmente sentava-se na sala, a ler, e depois do jantar enfiava-se no escritório a trabalhar. Mas a rotina no escritório não era sempre igual. Com o tempo, fui acabando por perceber o que é que ele estava a fazer. Quando traduzia, uma parafernália de livros tomava conta do espaço ambiente, mas a escrita de poemas ou de crónicas obedecia a rituais diferentes. Quando estava a escrever uma crónica para A Capital ou uma crítica literária para a Seara Nova sentava-se à secretária a escrever, depois olhava atentamente para o papel, a seguir mexia as mãos como quem procura alguma coisa e voltava a escrever. Já a escrita dos poemas era diferente, completamente diferente, escrevia, a certa altura levantava-se, passeava de um lado para o outro no escritório, voltava a sentar-se para escrever mais e, depois, tudo se repetia.
Poderão, com legitimidade, perguntar como sei isto tudo se a porta do escritório estava fechada. É simples, os dois painéis superiores da porta eram em vidro martelado (que se não permite ver com nitidez, permite detectar sombras) e havia o buraquinho da fechadura – posto de observação de excelência já que a secretária ficava mesmo em frente à porta. Não sei se, concentrado no seu trabalho, alguma vez deu por mim. Ou se, simplesmente, achou natural a minha curiosidade. Estamos a falar da segunda metade dos anos sessenta e eu já tinha idade para compreender estas diferenças de comportamento.
Caberá, aqui, um parêntesis sobre a Seara Nova, que já conhecia por a ver em casa e para a qual o meu pai começa uma colaboração regular a partir de 1967, o que coincide com a minha entrada na Universidade e, também, com o período conhecido como primavera marcelista – são dois anos de aparente abertura do regime, que depressa volta a endurecer depois da fraude das eleições de 1969. É altura do Maio de 68 de França e da grande influência e discussão que teve em Portugal, da forte contestação à guerra colonial, nas academias, nos sectores do trabalho, nos sindicatos, com greves e manifestações.
De tudo isto se falava em nossa casa, sobre tudo isto cada um tinha os seus pontos de vista, opções, ideais. É também a altura em que fico a conhecer melhor a importância desta revista que se afirmará como um símbolo de resistência democrática contra a ditadura. A Seara, que todos sabíamos não ser bem vista pelo regime, era lida em casa ou andava escondida no meio dos nossos livros e apontamentos e havia até quem a forrasse para não ser identificada. Por experiência sei o que se passou quando em 1972, já depois de casada, a PIDE arrombou a porta da minha casa à procura do meu marido: entre os muitos livros que nos roubaram, foram também todos os exemplares da Seara, de que ele era assinante.
Fechado o parêntesis, que o meu pai se sentia bem e em casa entre livros, disso não tenho a menor dúvida. Das várias vezes que, nos anos 60, fui ter com ele à Editorial Estúdios Cor, de que foi director literário, sempre me pareceu que, à medida que íamos andando pelas salas, os livros lhe diziam Olá José. É exagero? Não, não é exagero, mas talvez seja a adequada metáfora para um certo ambiente que não sei explicar de outro modo.
Um destes dias, num encontro, perguntaram-me qual foi o primeiro livro do meu pai que li. Respondi “A história do cerco de Lisboa”. Começou a ler tarde? Não, comecei a ler cedo, mas foi com esse livro que percebi que mais que ler, era preciso saber ler!
Porquê este livro? Poderia arranjar várias explicações, até poderia dizer que não sabia bem, mas na verdade, sei. Era muito frequente o meu pai dar-me os seus livros dedicados, mas “A história do cerco de Lisboa”, de 1989, tem uma dedicatória que diz tudo – Para a Violante com todo o amor do Pai. Chegada ao fim da leitura do livro, estranhamente ficaram a cruzar-se duas palavras, amor (do pai) e não (os cruzados não ajudaram o rei). Duas palavras aparentemente antagónicas – por princípio, um não não é a primeira palavra em que pensamos quando falamos de amor, mas foi como se o pai dissesse Eu, que te amo tanto, aviso-te que nunca esqueças de que é preciso saber dizer não. Voltei a ler e comecei a perceber o quanto me tinha escapado, o quanto não tinha lido. Regressei a livros já lidos e os que se seguiram também não tiveram uma única leitura. Habituei-me a tomar notas, a fazer chamadas de atenção, por vezes a sublinhar.
Durante a pandemia fui aos livros da biblioteca dos meus pais que tenho comigo e, de repente, encontro uma possível resposta para uma pergunta que já me fiz tantas vezes. Quando eu nasci, eles tinham 25 anos. Teriam, se tanto e para a época, uma formação académica média, ela, dactilógrafa, ele, serralheiro. Como puderam, como tinham sabido, dar-me uma educação que muito mais tarde reconheci ser de excepção!? Entre esses livros, há talvez uma dúzia de Cadernos Culturais da Editorial Inquérito e chamou-me a atenção “O método Montessori”, de Agostinho da Silva. Qual o significado desta descoberta? O livro sai em 1939 e em 1938 tinha sido editada a “Lição de Salazar”, um manual da trilogia da educação da Ditadura Nacional. Está visto que o meu pai decidiu escolher outro caminho e para que dúvidas não houvesse teve o cuidado de assinalar que era seu aquele exemplar, com a primeira assinatura que lhe conheci – José de Sousa Saramago.
Reli alguns dos seus livros, mas tenho dedicado uma mais cuidada atenção aos de crónicas. E percebi, melhor, como aqueles pequenos escritos dos anos 60 e 70 são tão importantes, como já ali são visíveis a intensidade, a profundidade, a qualidade de uma escrita, a que o havia de levar à Academia de Estocolmo em 1998.
Um escritor não nasce feito, tem que aprender, crescer. Será este o único caminho para se chegar a ser um grande escritor? Não, há oportunidades, pessoas, circunstâncias, muitos factores envolvidos que podem não depender de quem escreve. A inspiração, é sabido, também não cai no colo ou nas mãos de quem não sabe o que fazer e que, só por isso, consegue fazer um grande livro.
Ser escritor, um grande escritor obriga a ter, além de todo o resto, três características – exigência, disciplina e trabalho, muito trabalho.
Nunca o vi falhar em qualquer uma.