Sal da Terra – “A vida é linda, a vida é bela!”
Teria uns três anitos. Pele clara e rosada, gestos vivos, sorridente, cabelos encaracolados loiro dourado. Ia atrás da mãe. Vinham das compras no Mercado grande da cidade. O Mercado do Livramento. Parou, olhou as pequenas florinhas que saíam de entre as ervas que cresciam junto à parede das casas. Estendeu a sua mãozinha rechonchuda de bebé, apertou o pezinho da flor, colheu-a. Contente, saltitando, corre, braço estendido, para a mãe que já ia lá à frente.
Era uma manhã de primavera, uma manhã de maio.
Na mesma rua, outra mãe, dois filhos pequenos, como a menina loira. Ares sérios, de poucos amigos, rezingavam. A mãe, também séria, nervosa, ignorava-os.
Na mesma rua, no mesmo momento, dois mundos! O paraíso? O inferno? Ou só mais um dia na vida deste nosso mundo feito de infinitos micromundos?
Entretanto, no carro, na rádio, a locutora, jovem, desembaraçada, viva, segura de si, assegura-nos: Amanhã vamos ter céu limpo, um pequeno aumento da temperatura máxima e da mínima. Bom tempo, apesar de algumas nuvens a norte. Aproveitem, gozem o bom tempo! Uma boa tarde e um ótimo fim de semana, gozem a vida. Eu sou a Graziela Silva, volto amanhã, ciao, ciao!
«Eu sou eu e a minha circunstância», disse-o Ortega y Gasset. Eu, as circunstâncias, nós, as circunstâncias. As inúmeras, infinitas circunstâncias que nos moldam e … amolgam! Somos o produto do meio.
Ainda no mesmo dia, à tarde, na matiné do cinema Charlot, onde passam filmes ditos não comerciais ou de autor, Eric Rohmer, contrariando o “clássico” pessimismo de certa classe ou corrente intelectual “esclarecida”¹, no final belíssimo de um dos seus belíssimos filmes da série «Contos das Quatro Estações», a Primavera, proclama: «a vida é linda!».
A vida é linda, a vida é bela! Mas …
Tantos escolhos, dores, angústias, tragédias, infortúnios…
Foi numa manhã de maio!
Uma criança! Uma criança de caracóis loiro dourados. Loiro dourados como o Sol, num gesto terno e puro, estende para a sua mãe a florinha por ela tão alegremente colhida.
Uma criança de caracóis loiro dourados, diz-nos, com o seu sorriso luminoso e feliz, a sua alegria viva e pura, ali, naquele momento, que, apesar de todas as coisas menos felizes com que naturalmente nos continuaremos a cruzar e com que teremos de conviver, a vida é linda, a vida é bela!
Episódio feliz de uma manhã de maio, junto ao Mercado do Livramento, ao pé do Sado.
E a fechar, não o Rohmer, mas o Alegre, o Manuel: «Mesmo na noite mais triste em tempo de servidão há sempre alguém que resiste há sempre alguém que diz não.» Mesmo na noite mais triste … a vida é linda, a vida é bela!
¹ (…) Uma pessoa não escreve quando está feliz, isso é certo, nem escreve sobre personagens felizes. (…) Pedro Almodôvar, Ípsilon de 1/7/2022