O aumento das taxas de juro, famílias e Estado
A taxa de juro pode ser entendida por quem empresta (ou deposita) uma dada soma em dinheiro como sendo a remuneração compensadora do facto de decidir deixar de dispor no imediato daquela soma, que de outro modo poderia gastar em despesas que lhe permitiriam melhorar o seu bem-estar. O juro recebido compensa também o risco do devedor não reembolsar o capital em dívida e também um eventual crescimento dos preços que fará diminuir o valor do capital emprestado ou depositado.
Vamo-nos centrar nas relações das taxas de juro com o crescimento dos preços, uma vez que na situação actual da nossa economia essas relações são especialmente relevantes.
No centro destas questões está o conceito de taxa de juro real, que assume grande importância, principalmente quando se atravessa um período de inflação.
A taxa de juro real (sem a preocupação de excessivo rigor e para valores numéricos relativamente pequenos) pode definir-se, em termos anuais, como a diferença entre a taxa de juro em proporção do capital em dívida (que chamaremos taxa de juro nominal) e a taxa anual de crescimento de preços.
Assim, se a taxa de juro anual nominal num certo período temporal foi de 4% do montante em dívida ou do montante aplicado em depósito, e o crescimento de preços nesse período foi de 1%, então a taxa de juro real foi de 3%.
Se a taxa de juro real for positiva, então quem empresta ou deposita o dinheiro ganha com essa aplicação, uma vez que o montante do juro que recebe mais que compensa a erosão do capital emprestado ou depositado causada pelo aumento de preços. Se for negativa está a perder dinheiro com o empréstimo ou o depósito.
Este é o quadro muito simplificado (nomeadamente porque não mencionámos os impostos sobre os rendimentos de capitais) onde nos podemos situar para uma análise macroeconómica das relações entre aumento das taxas de juros e aumento de preços.
As famílias e os depositantes
Em relação a Portugal em que as famílias estão muito endividadas é útil considerar fundamentalmente os seguintes casos:
- a) O caso das famílias endividadas e em particular por empréstimos para compra de habitação
O montante do crédito à habitação atingia em Maio do corrente ano 98.741 milhões de euros, sendo de 2.089,2 milhares o número de devedores. Um acréscimo da taxa de juro de 1 ponto percentual pode, dependendo dos contratos, representar para muitos agregados familiares um aumento significativo da prestação mensal.
É certo que se o aumento da taxa de juro não se reflectir num aumento da taxa de juro real, ou seja, se o aumento da taxa de juro for resultado apenas do crescimento de preços (nomeadamente do preço da habitação) os valores dos imóveis dos devedores também aumentarão. Mas esta valorização não permite compensar o maior valor das prestações, uma vez que o devedor não tem processo de realizar a valorização do seu imóvel, a não ser vendendo-o, o que na maioria dos casos não é praticável, já que a habitação é um bem essencial e não é fácil de transaccionar. Dessa forma, um aumento da taxa de juro pode rapidamente transformar-se no aumento de uma ou duas centenas de euros mensais para muitos contratos.
A situação mais gravosa, evidentemente, é aquela em que o aumento da taxa de juro se combina com uma redução do rendimento das famílias e um aumento de desemprego, como foi o caso da recessão intencional provocada pelo programa da Troika a partir de 2011. Na situação actual, para já, o aumento da taxa de juro é acompanhado por um decréscimo significativo dos salários reais, embora não se faça sentir por enquanto um aumento no desemprego. Mas, a prazo, o aumento do desemprego é um cenário possível. Prevê-se uma desaceleração do crescimento da economia já no próximo ano e algumas previsões apontam mesmo para a possibilidade de uma recessão para a economia europeia. A ser assim, o desemprego aumentará e essa situação combinada com o aumento da taxa de juro e a queda dos salários reais, tornará muito difícil a situação dum bom número de famílias endividadas.
O mesmo tipo de efeito pode ser visto de outra forma no caso de um empréstimo que uma família contrai sem ser para a aquisição de um património que se possa valorizar. Vejamos com um exemplo numérico:
Suponhamos uma família que tem um rendimento anual de 14.000 euros e que contraiu um empréstimo de 30.000 euros, a vencer mais tarde, para financiar despesas que não aumentam o seu património em valor. Se a taxa de juro for de 3%, supondo que o aumento anual de preços é de 1% e que, portanto, a taxa de juro real é de 2%, a família paga 900 euros por ano de juro do empréstimo. Admitamos que no ano seguinte se verifica uma aceleração do crescimento de preços para 5% ao ano, que a taxa de juro real de 2% se mantém no mesmo valor e o rendimento da família é ajustado à inflação.
Então, o rendimento anual da família aumenta para 14.700 euros, a taxa de juro aumenta para 5%+2% = 7% e os juros pagos pela família aumentam para 2.100 euros. Ou seja, o rendimento da família aumentou 5% mas os juros pagos aumentam para mais do dobro, mesmo sem aumentar a taxa de juro real. É certo que o capital em dívida vale agora menos 5% devido à inflação e portanto, quando tiver de reembolsar o empréstimo, a família poderá ter um alívio, mas no imediato, tal como na habitação, a situação poderá piorar fortemente.
- b) O caso dos depositantes
Olhemos agora para outro tipo de agentes económicos, os que têm depósitos no banco como aplicação da sua poupança. Há evidentemente grandes depositantes, mas quanto às famílias de baixos rendimentos, que apesar de tudo ainda conseguem ter alguma poupança, essa em geral é aplicada em depósitos. Como é evidente, no que respeita à taxa de juro, os interesses dos depositantes são divergentes relativamente aos que contraem empréstimos.
Para uma remuneração razoável dessa poupança é necessário que a taxa de juro seja suficientemente positiva para que os juros recebidos pelos depósitos compensem não só o aumento geral de preços (que evidentemente faz reduzir o valor do dinheiro depositado) mas também o imposto pago pelos rendimentos do depósito, bem como as comissões que o depositante tem que pagar ao banco. Isto significa que, para ser compensador, um depósito bancário deve ser remunerado por uma taxa de juro real positiva bruta (antes de imposto, portanto) de pelo menos 2%. Se nos lembrarmos que no decorrer dos últimos meses as taxas de juro dos depósitos têm estado próximas de zero e que, os preços aumentam anualmente cerca de 7%, podemos concluir que a taxa de juro real que os depositantes auferem é absurdamente negativa e que enquanto durar esta situação existirá, permanentemente, uma enorme perda de riqueza dos depositantes, muito dos quais são pequenos aforradores.
A situação do Estado
Para além do impacte nas famílias endividadas, em particular no crédito à habitação a evolução da taxa de juro tem sempre um efeito muito pronunciado nas finanças públicas de um país, quando o respectivo Estado se encontra muito endividado. É o caso do Estado português, cuja dívida pública representa cerca de 120% do PIB.
Cria-se assim um problema de financiamento do Estado que, em última análise, é um efeito da adesão à moeda única. Com efeito, em consequência dessa adesão, qualquer estado da zona euro deixa de ter a faculdade de, em situações de crise, utilizar a emissão monetária para cobrir os seus défices. Assim sendo, fica nas mãos dos mercados financeiros e se estes restringirem o seu financiamento, ou aumentarem desmesuradamente a taxa de juro a que emprestam, o Estado poderá cair na bancarrota – cenário catastrófico facilmente imaginável dadas as missões que o Estado tem de prosseguir nas sociedades actuais.
A situação pode ter efeitos cumulativos como sucedeu no nosso caso em 2011. Quando a taxa de juro aumenta, seja devido à inflação seja devido a outra razão qualquer, as empresas de notação financeira podem descer o rating dos estados mais endividados que assim são obrigados a financiarem-se a taxas superiores, o que leva a novas descidas de rating e assim sucessivamente.
Convém lembrar que o valor presente da dívida pública em percentagem do PIB é actualmente superior ao valor de 2011 (114,4%) valor que, como sabemos, levou ao aperto do financiamento por parte dos mercados financeiros e ao programa da Troika.
Não há, pois, qualquer dúvida que a adesão à moeda única criou um cenário de permanente instabilidade no financiamento dos estados mais endividados e que essa instabilidade tem tendência a perpetuar-se, uma vez que a dívida pública em percentagem do PIB continua a aumentar. Um ciclo de aumento de taxas de juro pode originar de novo uma crise imediata de financiamento do Estado.
Por outro lado, não convém esquecer que uma taxa de juro elevada vai aumentar a factura de juros que o Orçamento de Estado tem que pagar. Se houver crescimento económico, o PIB aumentará e, portanto, o peso desta factura no PIB poderá diminuir, mesmo que a taxa de média de juro que o Estado tem de pagar aumente. No entanto, como desde a entrada na moeda única (e por causa dessa participação) o crescimento da nossa economia tem sido muito reduzido, se persistirem os baixos ritmos de crescimento que se têm verificado, não é necessário que o aumento da taxa de juro seja muito forte para levar a um aumento da despesa com juros da dívida pública em percentagem do PIB, o que condiciona ainda mais a prazo o nosso Orçamento de Estado.
Podemos concluir assim que a situação actual é profundamente instável e não é preciso ser vidente para esperar um aumento muito significativo das taxas de juro nominais. No entanto, provavelmente as taxas de juro reais dos depósitos continuarão a ser negativas por algum tempo, o que prejudicará os aforradores, mas não beneficiará as famílias endividadas por empréstimos que contraíram para compra de habitação, uma vez que, como vimos acima, são principalmente vulneráveis a aumentos das taxas de juro nominais. Neste domínio, uma maior bonificação dos juros pagos em sede de IRS poderá ser uma medida de alívio no curto prazo perfeitamente justificada.