Juntos, sairemos da armadilha da exploração
Não assumir os seus erros é aumentá-los.
Leon Tolstói
Escrevo após as eleições presidenciais brasileiras terem consagrado a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 30 de outubro do corrente ano.
Entretanto, também redijo sob os influxos da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP 27), que se realiza em Sharm El Sheikh, Egito, de 6 a 18 de novembro do corrente.
Pretendo usar essas duas linhas de análise acima citadas para trançar o cordão que buscará unir-nos a vós, novamente, ainda que breve e sutilmente.
Em primeiro lugar, quero deixar claro que a coalizão que elegeu Lula é efetivamente de esquerda.
Embora haja componentes de centro, a hegemonia daquela frente está com a esquerda.
Qual esquerda? Aquela possível em um dos países mais desiguais do mundo, que já fora a galinha dos ovos de ouro de Portugal, da Inglaterra (a qual, graças ao ouro brasileiro, realizou sua revolução industrial) e dos Estados Unidos da América (EUA), dentre outras potências coloniais e neo-coloniais, predadoras todas.
Vale notar que na América Latina e no Caribe os governos progressistas estão voltados mais à promoção socioeconômica dos empobrecidos do que à difícil busca da equidade entre ricos e pobres.
Nesse sentido, políticas que visem a mudanças estruturais, como as de reforma agrária, por exemplo, são levadas a cabo apenas em terras comprovadamente improdutivas, com ressarcimento financeiro aos proprietários.
De resto, em que continente estão sendo implementadas políticas públicas com finalidade de justiça social?
A própria Organização das Nações Unidas (ONU), conduzida de forma exemplar pelo português António Guterres, abandonara o tema fundamental da reforma agrária, entre 2000 e 2006, só retomando-o por insistência brasileira em 2006, quando realizamos em Porto Alegre a Conferência Internacional de Reforma Agrária e Desenvolvimento Rural (CIRAD), sob a égide da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO). Para se ter uma ideia do comprometimento da comunidade internacional, o Brasil teve de assumir 97% dos custos daquele encontro…
Na COP, assim como na CIRAD, o desconhecimento entre Norte e Sul é abissal, não sendo estranho que tenhamos chegado ao ponto de destruição do meio ambiente em que estamos.
Para essa constatação, basta assistir a um dos telejornais das televisões estadunidenses, inglesas ou francesas, em que se debocha abertamente do “alarmismo” do SG da ONU, o qual muito corretamente alerta para a estrada suicida em que se encontra a humanidade.
Ao lado disso, jornalistas e público manifestam seu patente desconforto com que caiba aos poluidores reparar o mal-feito. O fato de a Europa ser o continente mais aquecido é notícia que se dá sem relacionar às causas desse aquecimento excepcional, verdadeira febre da mãe Terra (uma analogia bastante óbvia) mas como bem dissera o cronista Nelson Rodrigues, nosso Freud suburbano, o óbvio tem muitos inimigos – e eu acrescentaria que esses podem falar muitas línguas…
Para mim, o desastre ecológico que vivemos apenas confirma o que o maior filósofo político do século XX, Antonio Gramsci, afirmara: que no centro da compreensão e do fazer político está a cultura.
Como podemos salvar alguém ou algo sem o conhecer? Evidentemente, isso não é possível.
No entanto, cabe perguntar por que o nível de desconhecimento do Norte com relação ao Sul é tão alto?
Na era das comunicações rapidíssimas, da portabilidade das mesmas, uma vez que nossos telefones celulares permitem acesso em tempo real a qualquer lugar do mundo e a bancos de dados completíssimos, como interpretar tanto desconhecimento entre poluidores e poluídos?
Claro está que não se trata de algo natural, mas de algo instrumental, fruto de vontade, política.
Vale observar que não se pode justificar a injustiça se não houver desconhecimento, real ou induzido, do sujeito explorado.
Para isso, outrora e atualmente é instrumentalizada a religião, as diferenças raciais, socioeconômicas, culturais e até de sotaques (no caso dos ingleses entre eles e as ex-colônias ou dos portugueses com relação aos demais lusófonos).
Nesse sentido, na medida em que a diversidade tem de ser manipulada para fins de exploração de uns pelos outros, não se pode pensar em respeito às diferenças, pois são justamente essas que servirão para justificar aquela.
Porém, não há mal que sempre dure, nem bem que nunca acabe, como dizia minha avó.
Ou passamos a nos conhecer de verdade – se possível, tolerando, suportando e até gostando uns dos outros, no limite – ou esta aventura da vida humana sobre a Terra terá fim próximo e dramático.
Mas como convencer os que estão nos botes salva-vidas de que não devem pisar nos dedos daqueles imigrantes que tentam chegar à Europa, uma nave que, por sua vez, se afunda nas mudanças climáticas?
Para nós, brasileiros e brasileiras, derrotar a extrema-direita e aqueles que, no exterior, patrocinaram o golpe de estado de 2016 representou mais do que vencer um projeto de morte, de necropolítica, nacional. Para os que neste país defendem a vida – e vida em plenitude – derrotar o projeto homicida da extrema-direita representava garantir a sobrevivência da espécie não apenas no Brasil, mas em todo o mundo.
De fato, o desgoverno da extrema-direita levaria, em mais quatro anos, à irreversibilidade da extinção humana e da vida animal e vegetal sobre a Terra.
Essa conclusão cabalística decorre da velocidade e da ferocidade com que a extrema-direita se lançou sobre a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal e a Mata Atlântica, a ponto dos desastres ambientais poderem ser medidos a olhos vistos, por qualquer cidadão e cidadã minimamente consciente. Isso, no país mais biomegadiverso do mundo, ou o segundo, após a Colômbia, de acordo com outros pesquisadores.
A própria liberação de agrotóxicos foi feita com uma velocidade tal e sem qualquer controle, que praticamente foi autorizada uma a cada quatro dias, sendo que muitas das drogas liberadas eram consideradas letais pela União Europeia (UE) ou por órgãos de controle estadunidenses, podendo causar a morte ou doenças tão graves quanto o câncer, o Mal de Alzheimer ou de Parkinson.
Convém notar que o Brasil é o segundo maior exportador agrícola do planeta, atrás apenas dos EUA, e que, portanto, os efeitos dessa aplicação indiscriminada de venenos não ficou dentro de nossas fronteiras, trazendo danos irreversíveis aos consumidores finais.
Ao lado disso, sendo o país detentor de aproximadamente 12% da água doce do mundo poluímos e colocamos em risco todo esse imenso manancial de vida, levando a morte a indígenas, ribeirinhos e pescadores artesanais, entre outros, quer pelo autoconsumo de água e pescados infectados, quer por dizimar sua principal fonte de renda.
Demais, o país vem em processo de brutal desindustrialização, voltando a ser mero exportador de produtos primários, o que representa ônus ainda maior para nós, que, em razão da deterioração dos termos de troca, literalmente estamos correndo atrás do prejuízo, como fizera Portugal por dois séculos, após a imposição do tratado de Methuen, de 1703, pelo qual se obrigava a importar produtos ingleses elaborados, em troca de exportações primárias, cujos valores decresciam em relação àqueles. O pacto reduziria Portugal à condição de colônia, de fato, por mais de duas centenas de anos, como é sabido.
Neste ponto crucial da humanidade, em que exploradores e explorados estão na mesma canoa, rumo ao precipício, caberia refletir sobre as últimas palavras do cineasta, poeta e cronista italiano Pier Paolo Pasolini, as quais se tornariam título da última entrevista que concedera, horas antes de ser assassinado: “Estamos todos em perigo”. E o poeta esclareceu: estão em perigo os oprimidos, por sua própria condição, mas também os opressores, uma vez que a situação de dominação é insustentável no tempo, socioeconômica, cultural e ambientalmente falando, podemos hoje aduzir.
Pior, aos sermos reduzidos à condição de meros exportadores de produtos primários, estamos causando dano ingente ao planeta, pelo transporte de água por distâncias enormes, como são as exportações de soja “in natura”, por exemplo, do Brasil à China.
Internamente, essas contradições também estão presentes, pelo fato do agronegócio, que não produz alimentos, mas “commodities”, deslocar espacialmente cultivos de alimentos, menos rentáveis. Por exemplo, no Brasil, a cultura do arroz está concentrada na Região Sul, principalmente no estado mais ao sul, o Rio Grande do Sul. De lá, provém aproximadamente 70% do arroz consumido em todo o país, fazendo com que o produto, o de maior consumo pelos brasileiros, tenha de viajar, por terra principalmente, centenas ou milhares de quilômetros até os consumidores finais, em muito contribuindo, dessa forma, para o aquecimento global.
Ainda mais grave, essa complicada logística acarreta custos elevados aos produtos da cesta básica, gerando inflação para toda a cadeia alimentar e erodindo os salários depauperados dos trabalhadores e trabalhadoras, sobre os quais recaem os maiores ônus da inflação.
Convém notar que no Brasil e na maioria dos países, mesmo grandes produtores de alimentos, o centro da inflação são os preços dos alimentos, cuja distribuição, no caso do Brasil, está em mãos de verdadeiro oligopólio, tal a concentração nas mãos de poucas cadeias de supermercados.
Para agravar essa situação, o desgoverno de Jair Bolsonaro privatizou a central de abastecimento de Belo Horizonte, uma das maiores da nação, prejudicando principalmente os comerciantes de feiras livres e de comércio local.
Passado o terror que o Brasil atravessou nos últimos seis anos, olhemos em frente e ajudemos o mundo nesta jornada rumo a um mundo novo, uma terra sem males, como fora a República Guarani, que sobreviveu por século e meio, do início do XVII à metade do XVIII, sendo necessária a junção de forças das duas maiores potências da época, Portugal e Espanha, para seu ocaso.
Recordemos com Rosa Luxemburgo em sua magistral “Introdução à Economia Política” que aquela foi a mais completa e bela experiência sociopolítica jamais empreendida na Terra.
Desta vez, unamo-nos ao invés de separarmo-nos. Porque queremos e precisamos uns dos outros, com nossas diferenças, que são, na verdade, nossa riqueza e humanidade.
Brasil e Portugal podem e devem conduzir a nave Terra neste mar revolto, porque mais conhece o valor da liberdade, os que suportamos a escravidão; mais o valor da vida, os que a morte sempre espreitou; mais o valor do amor, os que o experimentaram infinito, além da distância até a que mais dói, a da separação e da ausência, mas que não tem nunca a última palavra, pois essa só o amor a detém.