Poesia – “Outrora”

Lembras?
Quando eras bicho do céu,
bicho da água, bicho da mata, bicho do âmago?
Lembras
a inteireza da nossa casa, do tempo antigo
onde aflorava vida?
Nossos corpos feitos de terra,
nossos gestos livres, coloridos, irrigados
com a saliva do torrão.
Gestos ainda por analisar, estruturar,
matematizar…
Junto dos teus, que são os nossos,
pulsando imersos,
fazendo mundo, criando cosmos?
Nós, os do começo.

 

Lembras?

 

No meu colo
mamaste
a seiva verde dos meus potes.
Sugaste
o tanto de caudal vivo transmutado nos casulos.
Farejaste
por entre as colinas
pujança dos campos floridos, matas adensadas.
Tateaste
os caminhos divinos abertos pelos rios neste vasto corpo.
Abriste
rachas, feridas,
ávido de mais, sempre mais,
criatura com fome.
Nem adeus te pude fazer.
Hoje chegas e matas-me.

 

Lembras?

Não lembras.
… e fui eu quem te pariu.

 

in Memórias, Aparições, Arritmias, Companhia das Letras, 2021