Testemunhos da História – “Um testemunho, 50 anos depois”

A história já foi toda contada: a 30 de dezembro de 1972 um grupo de cristãos, pela voz de Maria da Conceição Moita, que infelizmente nos deixou há pouco tempo, comunicou à sua comunidade, no fim da missa das 19h30, que ficaria em vigília na capela por 48 horas, para discutirem a paz. Não era a primeira iniciativa de protesto deste tipo, já tinha acontecido na Igreja de S. Domingos, mas, desta vez, a ação envolveu muito mais gente e, ao longo dessa noite e do dia seguinte, centenas de pessoas passaram pela Capela.

Também já contei a minha parte: fui participar naquela iniciativa com o meu colega e amigo Miguel Teotónio Pereira, entusiasmados com a experiência de um lugar onde se poderia falar livremente e onde se respondia ao principal nó górdio da ditadura, a guerra colonial. O pai do Miguel, Nuno Teotónio Pereira, era um dos organizadores da iniciativa.

Apesar de não ser religioso – nasci numa família ateia e disso tenho o maior gosto – tinha participado, em janeiro desse ano, na distribuição de um apelo contra a guerra colonial em Fátima, organizada pelo Nuno, e colaborava regularmente com este grupo de generosos ativistas. Distribuímos uns panfletos na sequência da declaração, pelo Papa Paulo VI, do dia 1 de janeiro como Dia da Paz, o que era subversivo num país em guerra há quase 12 anos. Havia uma concentração grande de pessoas e, apesar da vigilância, a polícia não estava preparada para essa iniciativa e não reagiu.

Na vigília da Capela do Rato não tive nenhuma responsabilidade. Tal como os outros participantes, podia pedir a palavra ou apresentar uma proposta naquele espaço livre, onde as pessoas se alternavam para falar, e que funcionou como uma espécie de speakers corner da vida portuguesa. Os organizadores, dois dos quais já perdemos, o Nuno, um dos grandes arquitetos portugueses e uma figura maior da luta anti-fascista, o Luís Moita, que faleceu nas últimas semanas e que foi um dos construtores dos movimentos de solidariedade internacional, bem como da reflexão sobre a paz, e ainda Francisco Cordovil e outros do grupo dos católicos de esquerda, queriam levantar a voz da luta contra a guerra – esse seu contributo foi importante, no contexto de uma luta múltipla, de setores comunistas, socialistas, anarquistas e de correntes revolucionárias, para o isolamento da ditadura, para a confiança popular e para o 25 de Abril.

Os promotores da iniciativa publicavam clandestinamente o Boletim Anti-Colonial, animavam a Comissão de Socorro aos Presos Políticos e não paravam. Estimulados pela mudança de atitude do Vaticano em relação aos movimentos de libertação que combatiam pela independência nas colónias portuguesas, entenderam que era necessário ampliar o protesto contra a continuação da guerra. Tiveram a cooperação de militantes de outras correntes: os panfletos que divulgariam a ocupação entre a população foram impressos por José Manuel Boavida, António Gomes e Alfredo Frade, da LCI, na Associação da Faculdade de Medicina, e o PRP de Isabel do Carmo distribuiu-os. E o apoio de muitos jovens que sentiam a guerra como a expressão mais crua da ditadura. Lá estavam também muitas outras pessoas, o Manuel Coelho com muito destaque – foi ele quem escreveu a proposta de resolução que veio a ser aprovada na assembleia -, que veio a ser depois presidente de uma câmara municipal pela CDU.

Dois anos mais tarde, já deposto pela revolução e no seu exílio do Rio de Janeiro, Marcello Caetano contaria a sua versão dos acontecimentos: “na noite de 31 de Dezembro de 72 para 1 de Janeiro de 73, a pretexto da comemoração do dia da Paz universal, instalaram-se dentro dela [Capela do Rato] uns tantos senhores para protestar contra a ‘guerra colonial’. Durante horas seguidas, no meio de cartazes publicitários alusivos aos fins da reunião, os contestatários, entre os quais havia católicos militantes, antigos católicos e outros que não eram, que nunca tinham sido, nem faziam tenção de ser católicos, iam entremeando as missas e as rezas com discursos e objurgatórias contra a defesa do Ultramar e distribuíam panfletos nesse sentido. As autoridades eclesiásticas nada fizeram para pôr termo ao escândalo. A autoridade civil teve de intervir. Desde que o governo sustentava a defesa do Ultramar, e a essa política era forçado pela Constituição, a ela era incitado pelos eleitores, nela era apoiado pela opinião, claro que não podia consentir em actos de propaganda terrorista, como esses. A polícia entrou na capela e cordatamente convidou as pessoas presentes a sair. Foram identificadas e algumas, por motivos vários, ficaram detidas, aliás por pouco tempo. Verificando-se que entre os presentes havia uma dúzia de funcionários públicos, foi o assunto levado a Conselho de Ministros onde, depois de curta discussão, por unanimidade se deliberou aplicar-lhes a lei que permitia demitir os funcionários que não dessem garantias de cooperar nos fins superiores do Estado” (Depoimento, Rio de Janeiro: Record, pg. 84). Mas há muita fantasia nesta descrição. Na verdade, a ditadura hesitou quanto à forma da resposta e, quando ao fim da tarde de dia 31 de dezembro o capitão Maltês e a sua unidade policial cercou a Capela, entrou e deteve uma centena de pessoas, já o governo sofrera a derrota marcada por uma simbólica assembleia de protesto no centro da capital.

Os detidos foram levados para a esquadra e para o Governo Civil. Para Caxias, foi transferido um grupo de 15 pessoas, incluindo três estudantes liceais. Fomos metidos em celas isoladas e deixámos de ter contato uns com os outros. Os mais jovens, de 16 e 17 anos, não tinham cadastro, pode ser que tenhamos sido levados por sermos colegas do filho de um dos principais organizadores, o Nuno.

Sabe-se que estas prisões e a posterior expulsão da universidade de Pereira de Moura, o mais destacado economista português, também provocaram uma onda de protesto internacional. Vários Prémios Nobel intercederam por Pereira de Moura, ao ponto que o ministro dos Negócios Estrangeiros, António Patrício, terá mesmo sugerido aos seus colegas a libertação dos presos para evitar mais esta campanha contra a ditadura. Não foi ouvido e só os estudantes seriam libertados poucos dias depois, contra o pagamento de uma caução. Os outros foram sendo libertados depois e, uns meses mais tarde, no verão de 1973, os principais organizadores desta iniciativa voltaram a ser presos, só sendo libertados pela abertura dos portões de Caxias no dia 26 de abril de 1974, com a vitória da revolução.

Em todo o caso, o que a Capela do Rato mostrou foi que era tarde demais para a ditadura. Foi derrubada passado pouco mais de um ano, tendo sido abertas as negociações para a independência das colónias. Tínhamos vencido.