Aveiro em Abril, à beira do fim

Assim entrámos em Aveiro, o meu pai, eu e um amigo, na manhã daquele domingo de começo de primavera: a pé, como exigiam as forças da ordem que, com a cidade cercada, retinham automóveis e autocarros, além de comboios da CP, e provocavam os passageiros, dificultando a sua participação no Congresso da Oposição Democrática. Sem sucesso, claro, como lhes mostraram os milhares que encheram o Cine-Teatro Aveirense, a rebentar pelas costuras, e que na campa de Mário Sacramento homenagearam a memória do grande dinamizador destas jornadas de unidade e resistência antifascista.

Em Abril de 1973 – já o ditador de Santa Comba voltara definitivamente à terra – o país suportava há uma dúzia de anos uma guerra nas colónias, sem sentido e sem fim à vista, da qual, aliás, acabaria por livrar-se de um modo assaz inédito.

Portugal era então aquele sítio rançoso e atabafado que a Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos retratava, à la minuta, na sua circular informativa de 9 de Maio de 1973: “Neste momento em que o Governo demonstra ter dado plena liberdade às suas polícias para, sem olhar a meios, destruir todas as formas da vida política a si contrárias, nomeadamente no campo estudantil e no da oposição à guerra em Angola, Moçambique e Guiné, neste momento em que um evidente e cego espírito de desforra levam à prisão o padre Mário de Oliveira, o cantor José Afonso, trabalhadores rurais de Mértola, operários de Alcobaça e de muitos outros pontos do País, centenas de estudantes no Porto e em Lisboa, vários e indiscriminados cidadãos chegados do estrangeiro e dezenas de trabalhadores Cabo-Verdianos em Lisboa, e se não hesita em repetir as agressões a tiro que levaram à morte o jovem Ribeiro Santos (…), torna-se imperioso chamar a atenção de todos os portugueses para a necessidade de fortalecer e revigorar o apoio indispensável a dar a todo e qualquer cidadão, vítima de repressão política, independentemente de quaisquer considerações de índole partidária“ (ed. Iniciativas Editoriais, Fevereiro de 1975, e Assembleia da República, Divisão de Edições, Maio de 2011).

Daí que na declaração final do Congresso se sintetizassem os objectivos políticos para uma saída do beco em que estávamos metidos: fim da guerra colonial, luta contra o poder absoluto do capital monopolista e reconquista das liberdades democráticas. Prioridade absoluta, portanto, à questão colonial, transversal a toda a população, que assim dominou as preocupações do Congresso, uma vez que era do Povo que, por força do serviço militar obrigatório, saia o contingente das Forças Armadas que suportava os custos humanos (e não só) das guerras em Angola, Moçambique e Guiné. A independência desses povos africanos impunha-se em cada dia que passava, por exigência da opinião pública nacional e internacional, e essa inevitabilidade, que levara já à extinção dos regimes coloniais europeus na Ásia, na África e no Médio Oriente, fazia do regime colonial português uma excrescência política contrária aos Ventos da História que sopravam com intensidade.

Ante um poder político abstruso, parado no tempo das caravelas, não foi fácil nem rápido o processo de consciencialização dos quadros permanentes das Forças Armadas, que demoraram a perceber que aquela não era a nossa guerra. Mas quando o interiorizaram (os Capitães do quadro intermédio mais próximos, nas matas e nas bolanhas, dos soldados e dos milicianos universitários), o nó górdio desfez-se: explodiu o processo de desobediência colectiva, com uma insubordinação militar (o MFA), rastilho da imediata insurreição popular – e acabou-se o sufoco do fascismo e da guerra. Foi isso, o 25 de Abril.