Angola e Rússia: Análise de uma parceria estratégica

Do maqui à cidade Alta

Os anos 1960 foram um marco para Angola com o início da luta armada. O MPLA após se ter instalado no Congo Brazzaville, precisava de se estruturar, tendo como fim último o poder em Angola. Segundo José Eduardo dos Santos, “quando o Embaixador da União Soviética ofereceu bolsas de estudo para os jovens que tivessem bases para se formarem, partiram para a Rússia os primeiros bolseiros (SANTOS: Julho, 2020), dentre os quais: José Eduardo dos Santos, Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy”, Dino Matross e outros. Seguiu-se a formação, o treino militar e o envio de material de guerra para o MPLA no maqui. Isto num contexto de Guerra Fria em que de um lado o Leste Europeu e do outro os EUA e o Ocidente disputavam zonas de influência entre as quais África e em concreto Angola. A 25 de Abril de 1974 cai o Regime em Portugal.

A 11 de Novembro de 1975 é proclamada a independência. O MPLA assume o poder com a ajuda dos soviéticos e dos “internacionalistas“ cubanos. Segundo Sánchez “o MPLA, dirigido pelo líder marxista Agostinho Neto … é apoiado pelo bloco socialista…” (SÁNCHES, 2014, 200). O confronto dos interesses geopolíticos na região levam à guerra civil entre o MPLA e os dois movimentos que se viram excluídos da partilha do poder.

Na perspetiva de Milhazes, “Oficialmente, os militares e especialistas soviéticos iam para o continente africano, em especial Angola, para cumprir o seu dever internacionalista …. Talvez tivesse em vista a posterior cooperação económica … petróleo, diamantes, ferro e magnésio e recursos hídricos” (MILHAZES, 2009:62). Os militares soviéticos não participavam nas frentes de combate, eram conselheiros. Definiam as estratégias a implementar pelos militares angolanos e pelos «internacionalistas» cubanos. Os interesses aqui naturalmente implícitos pois, como se defende em Ciência Política, “entre os países há interesses e não amigos”.

Acontece que, dois anos após a independência, Agostinho Neto declara que «sob o olhar silencioso de Lenine, fundamos o Partido do Trabalho», Neto declara o marxismo como modelo de desenvolvimento político e económico visando uma sociedade socialista com uma economia centralizada e o marxismo-leninismo como ideologia oficial. O partido passou a designar-se MPLA-PT e o país República Popular de Angola. Várias são as designações dadas aos que assumem o marxismo como ideologia. Para Adriano Moreira, “As ideologias destinam-se a obter uma adesão emocional dos indivíduos” (MOREIRA, 2009: 285). Tal parece ter acontecido em Angola onde a palavra “camarada” entrou no léxico dos angolanos. Tratavam-se todos por “camarada”, desde o “Camarada Presidente” ao mais humilde varredor de rua. A 27 de Maio de 1977, acontece uma tentativa de golpe de estado liderada por Nito Alves, ministro do Interior e pró-soviético que deixaram consequências irreversíveis na sociedade angolana, mas não nas relações com a URSS.

Pouco tempo depois, a grande surpresa. Agostinho Neto morre numa clínica em Moscovo. Sucede-lhe José Eduardo dos Santos, um jovem cuja trajectória passou pela URSS. Por conseguinte, os filhos da nomenclatura angolana (e não só) ainda crianças, eram enviados para estudar na Rússia com o objectivo de se familiarizarem com o marxismo-leninismo. Contam-nos, os que por lá passaram, que começavam por aprender a língua em paralelo com os hábitos e costumes prosseguindo os estudos na expectativa de virem a ser futuros dirigentes[1]. É interessante observar que actualmente, decorridos alguns anos, face ao conflito Rússia-Ucrânia, esses ex-estudantes continuam fiéis a Moscovo.

A diplomacia das superpotências na região Austral

A nível interno a guerra civil prosseguia com a intervenção da África do Sul, pró apartheid, defendendo interesses geopolíticos na região Austral, que a justificava como forma de travar o avanço do comunismo na região a partir de Angola. Em causa estava a independência da Namíbia, a queda do apartheid, e consequentemente, a democratização da África do Sul e a libertação de Nelson Mandela, na prisão desde 1962.

É neste cenário que ocorre a batalha de Cuíto-Cuanavale, no sul de Angola, entre 15 de Novembro de 1987 e 23 Março de 1988, considerada por alguns “a mais longa de África”, protagonizada por tropas angolanas e cubanas de um lado e do outro, a UNITA que, entretanto, passou a beneficiar do apoio dos EUA e tropas sul africanas, pró apartheid. A guerra civil em Angola, dado os interesses geopolíticos em jogo, afecta também o processo de independência da Namíbia.

É neste contexto que a Administração Reagan introduz os conceitos de Constructive engagement e linkage. Ou seja, colaborar de forma construtiva e interligar os assuntos que afligiam a região. De certa forma, estes conceitos oficializavam, diplomaticamente, o engajamento dos EUA na resolução deste conflito, que culminou em 1988, com a assinatura dos Acordos de Nova Iorque e a implementação da Resolução 435/78 do Conselho de Segurança da ONU para a independência da Namíbia.

Os acordos visavam a saída das tropas estrangeiras (cubanas e sul-africanas) do território angolano e a Resolução sobre a independência da Namíbia. Segundo Miguel Jr., na altura, em Angola, havia 50.000 tropas cubanas (JÚNIOR, 2017: 95). Foram signatários: por Angola, os Ministros das Relações Exteriores, Afonso Van-Dúnem “M’Binda”, Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” e Venâncio de Moura, pela África do Sul, Pik Botha e pela República de Cuba, Isidoro Malmierca Peoli. A ONU mediou, sendo a URSS e os EUA observadores. Nesta altura Angola procurava uma aproximação aos EUA através da diplomacia económica com especial destaque para as petrolíferas americanas a operarem em Angola pretendendo assim demonstrar uma abertura ao Ocidente.

Instrumentos de influência institucional

Na década de 1980/90 abrem-se novas perspectivas para Angola. A queda do Muro de Berlim, em 1989, e o consequente colapso da União Soviética, levou a uma alteração na geopolítica do Leste Europeu. Gorbachev, o presidente reformador, com as suas medidas de caráter político e económico levou a que a Rússia se centrasse mais nas questões internas o que teve reflexos nas parcerias em África num momento de redefinição de políticas e estratégias num novo contexto.

É neste ambiente difuso que no início dos anos 1990 a geoestratégia do BM e do FMI se faz sentir em África com a implementação dos programas de Ajustamento Estrutural, levando os Estados a adotarem um sistema de economia descentralizada e o multipartidarismo. Assim, em 1986, Angola ao aderir ao grupo África Caraíbas e Pacífico – ACP, torna-se signatária da Convenção de Lomé e a partir de então passa a beneficiar do Fundo Europeu de Desenvolvimento – FED e da ajuda da Comunidade Europeia, para o desenvolvimento económico e social. Seguiram-se reformas internas tendo em vista a adesão ao FMI e ao BM. Em 1991, o MPLA-PT volta à sua forma original, MPLA, abandona a ideologia marxista-leninista, adere ao multipartidarismo e à economia de mercado e adopta um vasto programa de reformas ao abrigo do Saneamento Económico e Financeiro – SEF.

Num cenário de guerra civil, Angola reforça a sua cooperação estratégica com a Rússia. Como refere Gilberto Veríssimo, oficial das Forças Armadas Angolanas – FAA: “a grande maioria dos meios de combate empregues pelas Forças Armadas Angolanas são de origem Russa” (VERÍSSIMO, 2006: 50). A Rússia assim envolvida com os “internacionalistas” cubanos.

Com o fim da guerra deu-se a reestruturação das FAA e, ainda segundo Veríssimo, “actualmente estão a ser redesenhadas e modernizadas num ambiente doutrinal híbrido, em que conceitos operacionais e meios de combate desenhados para a Organização do Atlântico Norte – OTAN, convivem com os meios de combate russos” (VERÍSSIMO, 2006: 11). Atualmente, Angola tem alargado a sua cooperação militar a diferentes parceiros fora do Pacto de Varsóvia. De destacar, na área marítima, Portugal e Brasil, dada a sua experiência histórica.

Novas dinâmicas: O campeão da paz em África

Em Março de 2016 José Eduardo dos Santos, na direcção do partido e no poder desde 1979, anuncia a sua retirada da vida política. Sucede-lhe em 2017 João Lourenço, um pragmático reformista que se tem destacado pelas medidas que toma a nível interno e externo e que, demonstrou-o na parada em Setembro de 2022, por altura da tomada de posse após a sua reeleição, tem as Forças Armadas como potencial estratégico. Na 36ª Cimeira de Chefes de Estado e do Governo da União Africana, foi designado campeão da União Africana para a paz e reconciliação, fruto dos esforços que vem empreendendo no sentido de levar a paz ao Continente, em especial na região dos Grandes Lagos, zona de tensão e conflito e das mais ricas em recursos naturais, para onde convergem diferentes interesses quer de países europeus quer da China. Esta nomeação confere-lhe um potencial político na Região e a Angola um estatuto de país estratégico.

O conflito Rússia-Ucrânia

Sobre o conflito Rússia-Ucrânia, João Lourenço defende “uma solução negociável”. Na sua perspetiva, ”Angola tem uma longa experiência de guerra, conhece as suas consequências. Por isso, reitera um cessar-fogo entre Rússia e Ucrânia[2]. Face ao cenário de instabilidade no Leste Europeu, de 23 a 25 de Janeiro de 2023, esteve em Angola o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, com o propósito de “definir passos para intensificar a cooperação estratégica”. Trabalhou com o presidente João Lourenço e com o seu homólogo Tête António com o único propósito de reiterar e definir diferentes áreas de cooperação com Angola, incluindo a formação de quadros sendo abordadas áreas, entre outras, como: ”agroindústria, indústria transformadora” e ainda, o ANGOSAT 2 – Satélite angolano[1], construído em Baikonur, no Cazaquistão, em órbita em Angola desde Outubro passado, do qual se espera uma melhoria nas comunicações não só em Angola como noutros países Africanos interessados neste serviço. Perante a imprensa, relativamente ao encontro com o presidente João Lourenço, Lavrov foi contido nas palavras que dirigiu à imprensa, dizendo com precaução, ter tido um diálogo “muito prolongado e consistente” e que as boas relações entre os dois países não estão sujeitas a “peripécias geopolíticas”.

Sendo a questão militar matéria sensível, sobretudo numa altura em que Angola tende a diversificar as parcerias, pressupõe-se que o encontro tenha sido decisivo para delinear os eixos da política externa Angola-Rússia, sobretudo após a cimeira EUA-África e não perder o foco em zonas de influência quer do ponto de vista geopolítico, quer ideológico.

Por fim, o diplomata anuncia que a cimeira Rússia – África vai ter lugar em Julho próximo na cidade de S. Petersburg. É, nitidamente, a luta por zonas de influência.

Na sequência da Cimeira EUA-África, o presidente Biden, no início de Fevereiro, enviou Amos Hotchestein, coordenador para infraestruturas globais e segurança energética, para, “diplomaticamente”, dizer ao presidente angolano que deveria “recorrer a comunicações seguras e estáveis”. Na prática é dizer que os EUA pretendem exercer e alargar a sua influência numa área que tem sido predominantemente dominada pela Rússia.

Entretanto, no início do ano em curso, o embaixador russo em Angola, Vladimir Tararov anunciou os novos eixos da cooperação: indústria, agricultura, formação de quadros, ciência e tecnologia e referiu em aparte o facto de residirem em Angola cerca de mil russos e na Rússia pelo menos mil e quinhentos angolanos[3].

Observa-se que os dados sobre a cooperação são, na sua maioria, no sentido Rússia – Angola. Porém, tratando-se de cooperação bilateral, os eixos são pouco claros, de forma a referirmo-nos a uma cooperação win win.

Conclusão

A parceria Angola – Rússia é estratégica para ambos os Estados, uma vez que em causa estão interesses. As relações que remontam aos primórdios da criação do MPLA, não têm sido diretamente afetadas pelas dinâmicas conjunturais que se vêm observando ao longo dos tempos. Após a queda do Muro de Berlim, Angola abandona o marxismo-leninismo, abraça novos sistemas políticos e económicos, diversifica os seus parceiros sem, contudo, afetar a parceria estratégica que tem com a Rússia em áreas tão diversificadas como o fornecimento de armas, apoio militar, formação de quadros e outras.

A relevância de Angola destaca-se, igualmente, pelo papel que o seu presidente vem desempenhando na pacificação de conflitos em África, o que lhe mereceu o título de Campeão da paz. Em causa estão áreas de interesse vital como é o caso da RDC e outros países da região dos mais ricos em recursos naturais e para onde convergem diferentes interesses.

A Rússia, outrora um parceiro estratégico de quem dependia para suportar o seu poderio militar, perdeu o seu estatuto de exclusividade dado que, entretanto, as fontes de apoio se diversificaram.

No contexto actual, perante o conflito Rússia – Ucrânia, dada a experiência de um longo período de guerra, Angola apela, pela voz do seu Presidente, a um cessar-fogo definitivo entre as partes.

Em suma, a parceria é estratégica uma vez que estão em causa relações de interesse mútuo em áreas que contribuem para o desenvolvimento de Angola e, naturalmente, para os interesses da Rússia.

Notas:
[1] Testemunhos da autora, Maio 2022
[2] Jornal de Angola, 26 de Janeiro de 2023
[3] https://noticiasdeangola.co.ao/angola-e-russia-dinamizam-cooperacao-bilateral/