O Homem além do Gin: Mário-Henrique Leiria, vida e obra
Em 1973, portanto há cinquenta anos, Mário-Henrique Leiria publicou seu primeiro livro de contos em Portugal, os célebres Contos do Gin Tonic. Na contra-capa do livro, escreveu, em modo auto-biográfico, o que por muitos anos ecoou entre a crítica como mote para seu humor, bem como retrato de um estilo de vida libertário, se não mesmo de aventuras, o seguinte:
(…) nasceu em Lisboa em 1923. Frequentou a Escola de Belas Artes, donde saiu apressadamente. Entre 1949 e 1951 participou nas actividades da movimentação surrealista em Portugal. (…) Teve vários empregos, marinha mercante, caixeiro de praça, operário metalúrgico, construção civil (não, não era arquiteto, carregava tijolo) (…) Em 1958 meteram-se ideias na cabeça e foi até Inglaterra, para aprender coisas. Não aprendeu e voltou. (…) Em 1961 foi para a América Latina donde voltou nove anos depois. Por lá, conseguiu ser, entre outras actividades menos respeitáveis, planejador de stands para exposições, encenador de teatro e até director literário de uma editora. Fizera progressos. Agora está chateado, vive em Carcavelos e custa-lhe muito a andar.
Tem colaborado em várias revistas e jornais nacionais e não só. Está publicado em algumas antologias, tanto aqui como no estrangeiro.
Ao fazer um balanço de sua carreira, Leiria constrói uma persona – que, por conta da receção de seus leitores poder-se-ia chamar um heterónimo – que não foi capaz de suportar ao sistema escolar, que foi surrealista e marinheiro, pedreiro e metalúrgico e que, aos cinquenta anos, com o físico comprometido, publicou um livro de contos. Mais ainda, ao se referir aos nove anos que passou no Brasil – ainda que tenha se referido à América Latina, para de algum modo aumentar o escopo da experiência de imigrante que, em realidade, delimitou-se à cidade de São Paulo –, falou em “progressos” profissionais que o levaram à carreira no teatro, na publicação de livros, etc.
Este Leiria, que foi confundido com sua obra de modo a ser visto como herói (ou anti-herói) comunista que lutou contra as ditaduras em Portugal e no Brasil, ainda que jamais tenham sido encontrados indícios de filiação partidária e de luta senão por via da literatura e textos de jornais contra o sistema, omitiu, ou se referiu muito subtilmente, a sua atuação artística multifacetada e constante.
É verdade que trabalhou na marinha mercante em 1944 – como muitos de sua geração que viam na carreira a possibilidade de viajar pelo mundo com pouco dinheiro – e que tenha sido operário nas fábricas da Fundição e Construção Mecânicas de Oeiras depois de sair da Escola de Belas-Artes, em 1951, depois de trabalhar como “garçon de café em Lisboa em 1950” (Leiria, 2019: 21). Omitiu, por exemplo, que foi prolífero tradutor de obras que marcaram gerações e são hoje parte do cânone literário, como Fahreinheit 451 de Ray Bradbury, O Som e a Fúria, de William Faulkner, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, Um Homem de Talento, de Patricia Highsmith, e O Aleph, de Jorge Luis Borges, dentre muitos outros livros de gêneros diversos, desde a ficção científica até a teoria da arte. Além disso, foi crítico de arte na revista Europa, por exemplo.
A breve menção que faz a antologias tampouco detalhou que foi um dos Doze Jovens Poetas Portugueses, publicação de 1953 organizada por Alfredo Margarido e Carlos Eurico da Costa para ser divulgada no Brasil. A poesia de Leiria figura ao lado dos versos de Alberto de Lacerda, Alexandre Pinheiro Torres, António Maria Lisboa, Eugénio de Andrade, Mário Cesariny e outros, surrealistas e não só. Não obstante, em Portugal, é incluído na célebre edição de Vergílio Martinho e Ernesto Sampaio, Antologia do Humor Português (1969), onde a poesia de Leiria é ladeada pela de Mário de Sá-Carneiro, de Gil Vicente, de Nicolau Tolentino de Almeida, de modo que é reconhecido como um autor relevante à construção da noção de humor em Portugal, antes mesmo da publicação dos Contos do Gin Tonic.
Não surpreendentemente, também é incluído na edição d’O Surrealismo na Poesia Portuguesa, de Natália Correia, ainda hoje de interesse investigativo, cuja publicação foi contemporânea ao livro de contos de Leiria (1973).
Em sua antologia, Correia propõe uma linhagem do movimento, que intitula “Da permanência do Surrealismo”, tomando por base cronológica os versos de Camões.
Se em São Paulo Mário-Henrique trabalhou como encenador da peça de teatro O Auto da Compadecida, do brasileiro Ariano Suassuna, publicou dois volumes de Clássicos do Erotismo mundial, para além de uma antologia de contos modernos portugueses na editora Samambaia, contribuindo com a divulgação de autores clássicos e contemporâneos seus, portugueses, no Brasil, além de outras obras, como enciclopédias e livros de culinária (para os quais inventava receitas). Ainda que não tenha publicado trabalho próprio, não deixou de lado sua intervenção no campo das letras e das artes.
Desde muito jovem, Leiria começou a escrever e a desenhar, aprendeu inglês, francês e alemão, sobretudo por conta da artrite reumatóide que lhe obrigava a ficar mais quieto. A família chegou a mudar-se para a zona da praia, de modo que pudesse tomar o ar de iodo diariamente. Estimulado pela convivência com o pai, o pintor realista Mário Leiria, e rodeado por peças de antiguidade, uma vez que o avô era leiloeiro, o menino reproduzia em seus desenhos e versos cotidianos o universo familiar, livresco e, mais tarde, publicitário e cinematográfico. Daí não ser de todo curiosa sua produção multifacetada, que abrange contos, poemas, manifestos e crítica de arte – entendida no sentido das belas-artes, da música clássica e do jazz, bem como das letras – e o vasto material visual que fez questão de guardar, uma vez que é de conhecimento público a repreensão dos amigos quando decidia queimar muito de sua produção.
O que se verifica hoje, com os quatro volumes de sua obra completa publicados pela editora E-Primatur (2017, 2018, 2019, 2022), é um compêndio de seu universo imaginário e imaginado, em que o anti-herói, incrédulo com a realidade política e social de seu tempo, se confunde com a figura do próprio autor.
Numa entrevista que deu a Fernando Dil para a revista Vida Mundial, em 1974, em tempos do sucesso de vendas de seus dois livros de contos, o jornalista assumiu o papel de seus leitores quando afirmou, por exemplo, que Leiria expunha em seus livros o que sentia: “o que [é]…, tá lá todo um rufar de sentimentos, de solidão…, todo o teu sol, a tua limpidez…” (Dil, 1974: s/p) Ao questionar a afirmação do entrevistador (“Não sei se está, pá…”), o outro retorquiu, exigente: “Eu tou a dizer que está… eu sou o leitor…” Ainda que tentasse discordar de seu interlocutor, Mário chegou a incentivar a imaginação do outro ao descrever sua emigração para o Brasil como uma jornada intencional que o levou ao Chile, Cuba e México, resultando numa “intensa participação no processo histórico” desses países nos anos de 1960 (idem). É sabido, contudo, por via de testemunhos de familiares, que, uma vez no Brasil, Mário-Henrique teve dificuldades para encontrar trabalho que lhe desse independência financeira, o que, se por um lado lhe proporcionou grandes amigos que o ajudaram com comida e teto, por outro, proibiram-no de viajar. A dificuldade lhe provocou uma crise de alcoolismo que acabou por desencadear o agravamento de sua enfermidade. O retorno a Portugal foi logo depois de uma temporada que passou no hospital. Os amigos organizaram uma série de jantares para angariar dinheiro e comprar o bilhete de volta a seu país natal.
Ainda na entrevista a Dil, o jornalista, talvez incentivado pela breve autobiografia da contra-capa dos Contos do Gin Tonic, entendeu que “escrever, para ti não é uma profissão; ou melhor, poderia ser um sapateiro, mesmo a escrever como escreves…” Ao se deparar com a resposta de Leiria de que “poderia ser um óptimo sapateiro, porque eu tenho a mania de ser um bom profissional…”, o estudioso de sua obra imediatamente recupera de um texto seu, sobre a atividade do pintor, a noção de que o artista “é um homem como outro qualquer que pinta como o sapateiro faz sapatos, como o escritor escreve e como [o] varredor varre” (Martuscelli, 2016: 199). A questão do bom profissional é o que impera, de modo que, como segue Leiria em sua crítica de arte, “[t]em obrigação de ser tão humano como um presidente da República (…) ou como um homem do talho” (idem). O cuidado com a ideia de humanidade nos contos leirianos acabam por fazer confundir sua figura humana com a literária, ainda que jamais explore os recursos da auto-ficção, por exemplo. Mais ainda, como faz questão esclarecer em Novos Contos do Gin: “[o] autor repete preocupadamente a prevenção anteriormente já feita de que qualquer semelhança entre o que se segue e pessoas, coisas ou acontecimentos existentes na realidade é pura e absoluta coincidência”, ainda que certas coincidências tenham “causas matematicamente prováveis” (Leiria, 2017: 174), dá a entender que era comum tal confusão.
A constante provocação do autor que não negava, mas não confirmava sua identidade ou experiência da vida real nos textos, permitia a assunção do público de tomar como verdade seus depoimentos – sendo esses ficcionais, jornalísticos e até mesmo os epistolares.
O facto é que se Leiria foi ao Brasil atrás de sua ex-esposa, como afirmou Mário Cesariny em Verso de Autografia, esposa esta que havia se casado com um recifense, Mário não chegou a encontrá-la, nem mesmo a procurá-la. Segundo o testemunho de familiares, o multiartista já tinha programada a viagem ao Brasil, uma vez que prometera ao primo, Mário Seabra, de ir visitá-lo em dois anos. Tampouco tem relação direta o auto-exílio com sua prisão, cuja data se delimita a 11 de fevereiro a 18 de março de 1952 (cf. Leiria, 2022: 235) –, pois a viagem ao Brasil se deu em 1961. O que ocorre de relevante no ano de sua prisão é seu desligamento com o grupo surrealista, documentado em carta de 28 de janeiro de 1952 que é, contudo, anterior a sua apreensão.
Desse modo, ao recuperarmos a descrição de sua vida na contra-capa dos Contos do Gin Tonic, percebemos a ênfase à sua atuação profissional mais ligada ao proletariado do que propriamente à atuação artística. A visita à Inglaterra, por exemplo, se deu no mesmo ano em que atuou em Bruxelas como planeador do Pavilhão de Portugal na Exposição Mundial de 1958. Anos antes, havia feito cursos na École Supérieure de Publicité de Paris enquanto trabalhava como operário na construção civil em França.
O homem além do Gin, portanto, é uma figura que faz questão de não se colocar a um nível superior a seus pares – pares estes que podem ser sapateiros, presidentes da República ou multiartistas como ele –, de modo a manter-se marginalizado, fora do eixo da sociedade que fazia questão de criticar. Não obstante, o gin que criou com seus contos, bem como sua obra poética, estabelecem uma inovação no campo literário português e, por isso, os merecidos louros nos cem anos de seu nascimento.
Leiria foi responsável por expandir o campo da literatura de ficção científica, bem como o género dos micro-contos, das interartes que combinam texto em prosa ou verso e grafismo na mesma página, a literatura engajada, mas não delimitada às propostas do neo-realismo, o experimentalismo e paródia de cânones portugueses como Pessoa, Campos e Sá-Carneiro.
Mais ainda, como crítico de arte, frequentou vernissages de seus contemporâneos e criou um diálogo no âmbito da teoria da arte, cobrando desses artistas um papel inovador em Portugal. Além do gin, da construção civil, da marinha mercante, da emigração, da doença crónica, há que celebrar a dignidade humana que o poeta, o contista, o teatrólogo, o cineasta, o pintor, o desenhista, o publicista, o crítico e o teórico proclamou em sua vasta e multifacetada obra.
Bibliografia:
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CESARINY, Mário. Verso de Autografia. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007.
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CORREIA, Natália. O Surrealismo na Poesia Portuguesa. Lisboa: Europa-América, 1973.
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DIL, Fernando. “Entrevista com Mário-Henrique Leiria”, Vida Mundial, 1813, 8 de Março, 1974. s.n.p. In: http://arcagulharevistadecultura.blogspot.com/2019/09/fernando-dil-entrevista-com-mario.html (acedido em 24 de Fevereiro de 2023).
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LEIRIA, Mário-Henrique.
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Contos do Gin Tonic. Lisboa: Editorial Estampa, 1973.
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Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Ficção. (Ed. Tania Martuscelli). Silveira: E-Primatur, 2017.
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Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Poesia. (Ed. Tania Martuscelli). Silveira: E-Primatur, 2018.
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Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Manifestos, Textos Críticos e Afins. (Ed. Tania Martuscelli). Silveira: E-Primatur, 2019.
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Obras Completas de Mário-Henrique Leiria: Obra Gráfica. (Ed. Tania Martuscelli). Silveira: E-Primatur, 2022.
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MARGARIDO, Alfredo; Carlos Eurico da Costa (org.) Doze Jovens Poetas Portugueses. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação, Ministério da Educação e Saúde, 1953.
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MARTINHO, Vergílio; Ernesto Sampaio. Antologia do Humor Português. Lisboa: Afrodite, 1969.
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MARTUSCELLI, Tania. Mário-Henrique Leiria Inédito e a Linhagem do Surrealismo em Portugal. Lisboa: Colibri, 2016.
Tania Martuscelli
(1976)
Professora Associada de Estudos Luso-Brasileiros
Diretora de Pós-Graduação no Departamento de Espanhol e Português da Universidade do Colorado, Boulder, U.S.A.