Herbert Spencer: ambiente, progresso e mudança social
Herbert Spencer (1820-1903) foi um pensador polímata, conquanto fosse referido como um filósofo na sua época, a era Vitoriana. A sua reputação de então deveu-se sobretudo à obra A System of Synthetic Philosophy, composta ao longo de vários anos e editada em vários volumes, que abrangeu todos os campos de conhecimento da altura – o que fez com que alguns admiradores contemporâneos o comparassem a Aristóteles ou Francis Bacon. Além da Inglaterra, também nos EUA o seu trabalho foi amplamente apreciado. A sua popularidade no outro lado do Atlântico deveu-se ao facto de as suas assunções e afirmações, no seu fundamental, respaldarem e motivarem a “american way of life”, especialmente as ideias de auto-confiança e auto-melhoramento individuais, tão caras a Emerson ou a Carnegie.
Um facto bastante menos conhecido do que a influência de Spencer na Política, Economia ou Ciências humanas e sociais, é o seu contributo decisivo para as Ciências Naturais, em particular a Biologia e a Ecologia. De facto, Spencer apresentava uma visão totalizante de tudo o que era humano, o que lhe permitia correlacionar de uma forma inovadora as suas interpretações do mundo natural com a sua perspectiva normativa sobre a sociedade, criando um paradigma revolucionário sobre a condição humana.
Se hoje a ideia de que um qualquer organismo vivo ou ser humano tem um ambiente que o rodeia é mundana e ubíqua, até ao fim da primeira metade do século XIX esta ideia era virtualmente desconhecida. A ideia de uma interacção organismo-ambiente, ou seja, entre duas entidades singulares e abstractas, deve-se a Spencer, que transformou radicalmente a abordagem filosófica à pluralidade de condições externas que constituem qualquer ambiente natural, conceptualizando-as como um ambiente singular e unificado. Spencer herdou de Cuvier, Buffon, Lamarck, Lyell e von Humboldt a ideia de que os organismos são constantemente afectados pelas suas circunstâncias externas. No entanto, estes autores referiam-se no plural a estas, falando de “meios ambientes”, “circunstâncias” ou “condições de existência”. Estudando Lamarck, Spencer compreenderá que é necessária uma continuidade material entre o organismo e aquilo que o rodeia, um conjunto de características físico-químicas apropriadas que permitisse a manutenção de uma certa organização vital. É a enfâse nesta dependência do organismo em relação ao ambiente que terá grande relevância no pensamento de Spencer. Com Lyell, Spencer tomará consciência de que não só os factores físicos são importantes na sobrevivência dos organismos vivos, mas também que as relações biológicas entre eles são cruciais – interacções como mutualismo, parasitismo, competição, etc. Pela primeira vez Spencer contacta com as noções de “guerra entre espécies” e “luta pela vida”. Quando encontra a obra de Auguste Comte, Spencer entende a importância de uma “correspondência” entre o organismo e o ambiente, a partir da qual posteriormente conceptualizará a interacção organismo-ambiente. Comte é o primeiro a usar uma expressão singular – meio, “milieu” em francês – para descrever as circunstâncias externas de um organismo vivo, chegando perto de uma concepção dialéctica das relações entre o organismo e o meio, este último conceito encapsulando, de forma abstracta, a variedade total das circunstâncias externas. Esta dialéctica assentava na continuidade material entre o organismo e o ambiente físico-químico, o que permitia a aplicação de leis da física à biologia, numa perspectiva mais positivista.
De acordo com Comte, o principal campo de estudo da Filosofia política devia ser o de estabelecer uma harmonia social baseada nas leis da Natureza. O objectivo, nesta perspectiva, seria o de ultrapassar o caos político, teórico e científico do período pós-revolucionário em França. Portanto, se a harmonia entre o organismo e o meio circundante é uma lei natural, a desordem social constituía uma clara violação desta lei. Por conseguinte, restaurar a harmonia entre a sociedade moderna e a sua envolvente em contínua mudança era uma tarefa urgente, que apenas uma ciência social devidamente aquilatada poderia orientar. Ou seja, se para Comte era possível garantir um certo grau de previsibilidade dos efeitos do “milieu” nos organismos vivos, as relações entre as sociedades e o seu meio poderiam, putativamente, tornar-se o objecto ponderado de uma nova ciência social – a Sociologia. Este conceito de meio, em Comte, estabelecido como o conjunto total de circunstâncias necessárias para a existência de um qualquer organismo vivo, é uma extensão que irá produzir um conceito unificado de ambiente, na Biologia e na Sociologia, e uma grande influência em Spencer.
Spencer ampliará esta noção, depois de reflectir sobre todas estas ideias, aceitando a perspectiva de que os organismos vivos se acomodam eles próprios à variação das circunstâncias externas. Acrescentará a estas últimas as circunstâncias sociais, defendendo que as circunstâncias operam da mesma forma nos organismos vivos, independentemente de serem físicas, biológicas ou sociais, determinando as suas características. Spencer conclui, aproximando-se do evolucionismo, que os organismos e as espécies deveriam ser compreendidos como entidades que se transformam ao longo do tempo, em resposta a condições que se alteram dinamicamente. Na sua obra Social Statics (1851), Spencer defende uma teoria de moralidade e progresso baseada na ideia de harmonia entre organismos e as suas circunstâncias. Esta análise de Spencer ao progresso biológico e social será muito influenciada pelas ideias de Coleridge concernentes a uma “tendência para a individuação”, que seria característica dos sistemas vivos. Para Spencer, esta individuação crescente era conspícua na ordenação do mundo vivo, e evidente no caso humano. As circunstâncias relevantes para os humanos modernos não seriam então apenas físicas ou biológicas, mas também sociais. O que era fundamental para Spencer era compreender como é que o homem selvagem, em puro estado de natureza, progrediu em direcção ao homem mais moderno, aperfeiçoado por um estado social mais avançado. Na mundividência Spenceriana, os conflitos sociais resultavam do choque entre a constituição selvagem, que persistia ainda em alguns humanos, e as “novas circunstâncias”, que a sociedade moderna apresentava. O progresso de todos os humanos ainda não teria acontecido porque estas novas circunstâncias tinham surgido muito rapidamente, pelo que, para Spencer, revoluções sociais e políticas estavam estreitamente relacionadas com revoluções nas circunstâncias sociais e políticas. É por isso que Spencer compara a sociedade a um organismo, comparando o homem no estado social perfeito à expressão máxima da tendência para a individuação. É neste contexto que Spencer dará ao termo ambiente a acepção moderna que conhecemos: o referido ambiente singular e unificado, necessário a uma dicotomia abstracta entre um organismo individual bem demarcado e um ambiente considerado de forma abstracta.
Ainda que Spencer defendesse que a sua visão sobre o referido organismo social era “democrática”, ou seja, que, em última análise, os interesses das partes deste organismo – os indivíduos –, coincidiam com os interesses do organismo no seu todo – a sociedade –, tal posição, ainda que contextualizada no século XIX, poderia levar (e levou) a interpretações mais radicais. Por um lado, Spencer defendia um processo extremo de individuação como essencial para o progresso, tanto no mundo natural como no mundo social, e tal posição pode ser lida como crucial para a posição do liberalismo ou do personalismo, que advogam um individualismo possessivo exacerbado e uma construção plena do indivíduo, como o caminho para o progresso social. De facto, Spencer chegou a condenar legislação que fosse demasiado assistencialista, argumentando que um Estado-providência demasiado presente conduziria a uma degeneração social que seria impeditiva do progresso, uma posição próxima do Darwinismo social. Por outro lado, a ideia de que o todo (organismo ou sociedade) é mais importante do que as partes (órgãos ou indivíduos) é uma perspectiva holística que pode ser interpretada como relevante em ideologias totalizantes, como alguns regimes totalitários que surgiram no século XX.
Devido à sua educação, e experiência familiar religiosa, Spencer era profundamente desconfiado da autoridade – ele suspeitava de qualquer programa de reforma social que não tivesse como primeiro objectivo a remoção de restrições à liberdade individual. Fiel ao espírito do laissez-faire, e próximo do anarquismo de Godwin, Spencer advogava leis de desenvolvimento social que conduziriam inexoravelmente a um sistema social onde cada indivíduo seria completamente livre, desde que não infringisse a liberdade alheia. A sua teoria social tinha como objectivo providenciar uma justificação científica e apodíctica de que a humanidade estava prestes a atingir o estado social perfeito – para Spencer, um estado de liberdade máxima. Para tal, as leis da sociedade, que eram idênticas às leis dos mundos físico e orgânico, deviam operar sem restrições, sem qualquer tipo de intervenção do Estado.
Contudo, a utopia de Spencer não era a de uma competição incessante, nem o caminho para aquela estava pejado dos restos mortais daqueles que tinham perecido na “luta pela existência”. O seu pensamento político preocupava-se antes em assegurar um processo de adaptação individual às necessidades de viver num dado estado social, processo formativo do desenvolvimento social, que deveria ocorrer sem entraves. Os mais fracos e desajustados não deveriam ser eliminados, num puro Darwinismo social, mas cada indivíduo deveria projectar um caminho árduo de trabalho, adquirindo novos hábitos necessários para as gerações seguintes progredirem. Spencer preferia a eficácia do auto-melhoramento individual, que ele observava no mundo orgânico, nomeadamente na correspondência entre organismo e ambiente, a uma qualquer acção colectiva que conduzisse a uma mudança social.