IMAGENS PÓS-COLONIAIS. Livros de Fotografia, uma selecção (1974-1984)
No filme Comment ça va, Jean-Luc Godard e Anne-Marie Miéville, fazem um documentário em torno de uma fotografia do Verão quente de 1975 em Portugal, publicada no Libération, para reflectir sobre o modo como as imagens emergem nos interstícios da revolução e como se dilatam os seus mecanismos de manipulação. Para Godard e Miéville, trata-se de expor a ambiguidade das imagens mediáticas, a sua crescente apropriação e o modo como moldam a leitura da revolução. No filme, a fotografia mostra a revolução na sua dimensão cíclica, como movimento de transformação histórica e política que potencia o valor de verdade das imagens e as hierarquias de poder que nelas se movem.
Com o fim da censura e a abertura a textos e imagens anteriormente proibidos, assiste-se, na primeira década após 1974, a uma intensa produção, publicação e exposição de imagens que enfatizam a ruptura e tensão com o regime e o passado colonial.
Em especial os livros ilustrados fotograficamente marcam uma forte iconografia de resistência – onde se cruzam publicações anarco-satíricas como O livrinho vermelho do galo de Barcelos (1975), ensaios foto-literários como O Último Dia da Pide (1974) do Movimento Democrático do Porto, ou Uma Certa Maneira de Cantar (com fotografias de Costa Martins e textos de, entre outros, Ary dos Santos e José Gomes Ferreira) – que fixaram e difundiram o desejo de emancipação e celebraram o fim de um longo período de subordinação.
Também relevante foi a actividade editorial realizada pelos movimentos independentistas em Angola ou Moçambique a que se adicionou a perspectiva de fotojornalistas independentes que documentaram o processo de descolonização ao serviço das agências noticiosas internacionais. Livros como With Freedom in their Eyes-a photo essay in Angola (1976), do cineasta e fotógrafo Robert Kramer anterior ao seu filme Scenes from the Class Struggle in Portugal (1977) realizado no rescaldo da Revolução de Abril, Bilder aus Angola (1979) da fotógrafa Jochen Moll ou Landet är vårt, broder: en bok om Angola (1979) do fotógrafo Sven Åsberg, são testemunho não apenas dos processos de transição mas da atenção e influência que tiveram na conjuntura internacional.
É deste universo de publicações que se destaca uma selecção específica, para evidenciar através das imagens a coexistência de um espaço de contracultura em plena definição e revelar o modo como se inscreveu, de modo ímpar, este período.
Publicado pela Editorial O Século em Junho de 1974, Portugal Livre é um livro que nos dá uma visão caleidoscópica sobre o que se passou entre o 25 de Abril e o 1º de Maio de 1974, numa montagem gráfica e fotográfica onde se pode rever os movimentos das forças armadas, as celebrações e manifestações nas ruas, a libertação dos presos políticos, a chegada dos exilados políticos e a deposição dos símbolos do regime. Na sequência da exposição com o mesmo nome, reúne fotografias de vinte fotógrafos, incluindo Alfredo Cunha, Inácio Ludgero e Teresa Montserrat, que acentuam a urgência de intervenção política e social que se passou a exteriorizar. Como escreve Fernando Assis Pacheco, no texto de abertura, é um livro feito para que um dia, quando já não subsistir nenhum protagonista da aventura espantosa, muitos de nós todos, enfim, lerão nestas fotografias o relato verídico de como açaimámos 48 anos de miséria.[1]
Outra publicação que documenta visualmente o processo de revolução em curso é Da Resistência à Libertação (1977), da Mil Dias. Mostrando um panorama cronológico de imagens desde a implantação da República Portuguesa em 1910 ao 1.º de Maio de 1974, é, tal como em Portugal Livre, um documento do seu tempo que assume a forma de manifesto visual e que, como escreve Orlando Neves no texto de abertura, reclama a imagem como a linguagem mais compreensível da memória. Na sua montagem destaca-se a experimentação gráfica e a combinação de imagens de arquivo, recortes de imprensa, cartazes e excertos de discursos políticos, para criar uma gramática da revolução e revelar esse movimento cíclico que importou firmar de modo colectivo e plural.
Não procurando estabelecer um paralelo directo, encontram-se ligações com Resistência Popular Generalizada, publicado em 1977, pelo Ministério da Informação da República Popular de Angola. Trata-se de um livro de propaganda do MPLA que enaltece a influência política e militar do partido, incluindo as suas sub-organizações para o envolvimento da mulher e da criança na transformação política e social de Angola (como a Organização da Mulher de Angola ou a Organização dos Pioneiros de Angola) e que se inicia com imagens e textos sobre a rejeição dos símbolos da presença colonial e os vestígios da saída apressada das tropas portuguesas: Se o colonialismo surge e se desenvolve, no nosso país, como uma violentação das estruturas existentes ele provoca necessariamente um conjunto multiforme de reacções (…) o produto dialético deste choque de interesses é a história, ela mesma, da resistência popular, é a formação, na luta, da consciência nacional e das formas estruturais e organizativas que essa tomada de consciência implica.[2]
Ao propósito propagandístico, adiciona-se uma dimensão pedagógica de acessibilidade e massificação da informação, como é expresso nas páginas dedicadas aos artigos manuscritos de um jornal de parede que explicitam a tomada de consciência política do povo angolano ou a valorização das campanhas de alfabetização e formação política e ideológica realizadas pela Juventude do Movimento Popular de Libertação de Angola. Demonstrando a importância que as imagens assumem no processo de descolonização, Resistência Popular Generalizada apresenta um olhar duplamente instrumentalizado, quer pela evidência da ocupação colonial portuguesa, quer pela influência nas formas de pensar e formular a nova identidade de Angola.
As formas de democracia participativa ensaiadas durante o PREC, incluíram a apropriação das ruas de modo espontâneo e voluntário, como espaço de disseminação das palavras e imagens pós-revolucionárias, quer por iniciativa de movimentos e associações populares como por orientação do Movimento das Forças Armadas. Um pouco por todo o país estas acções colectivas protagonizaram o acesso à liberdade de expressão em diferentes escalas, desde slogans improvisados nas paredes até murais de maior complexidade, que se transformaram em instrumentos para dar visibilidade pública às aspirações e palavras de ordem da sociedade portuguesa após o fim da ditadura.
Pelo seu caracter efémero, foi através do cinema e da fotografia que se resgataram murais e muitas outras inscrições gráficas da revolução, garantindo a sua memória e prevalência no tempo. As Paredes na Revolução (1978), publicado por Sérgio Guimarães ou As paredes em Liberdade (1974) da Editorial Teorema, com fotografias de José Marques dos slogans, na sua maioria difundidos pelas diversas estruturas partidárias de direita e esquerda, inscritos em paredes e muros de Lisboa, são disso exemplo, mostrando estes suportes de imprensa clandestina como um reflexo vivo da consciência política, do inconformismo, da ânsia de liberdade em plena opressão.[3]
A importância da inscrição e publicação fotográfica deste património, é a de permitir rever uma cartografia de imagens que mostram o modo como se reclamou e usou o espaço público para a disseminação de mensagens de contestação e combate político. Como caracterizou Ernesto Melo e Castro em Pode-se escrever com isto, representam um invulgar surto de visualismo popular que ocupou e activou as ruas: A escrita nas paredes é um facto altamente revelador da liberdade de um povo e uma manifestação colectiva da força comunicativa da sua vontade. […] Assim Portugal se transformou num enorme poema visual.[4]
O diálogo é evidente com Images of a revolution, publicado pela Zimbabwe Publishing House que, neste caso, observa a explosão de arte pública em Moçambique e a evidência das novas imagens e palavras de ordem que iluminaram a cidade de Maputo. O activista Albie Sachs, em colaboração com o escritor e designer David King, realizam a seleção da documentação fotográfica dos murais realizados após a independência, intercalando vistas panorâmicas com planos pormenor, para criar uma imagem autoconsciente da revolução, produzida pela revolução, para servir a revolução.[5] Também aqui se percebe o carácter excepcional que a pintura mural assumiu, e o modo como a espontaneidade das palavras deu progressivamente lugar a um gesto de intervenção mais consequente na escala e na organização colectiva. Pintores como Malangatana, Mankeu ou João Craveirinha tiveram uma participação activa nos movimentos de libertação nacional e no processo de descolonização, apoiados por artistas exilados como a chilena Moira Toha, realizando diversos murais em edifícios públicos como o Hospital Central de Maputo, o Ministério da Agricultura ou os jardins do Museu de História Natural.
Ao contrário do imaginário triunfalista das representações coloniais, os murais revelam a história da resistência, a persistência das guerrilhas e os protagonistas da luta armada como Eduardo Mondlane e Samora Machel. A imagem escolhida para a capa, retirada do mural colectivo realizado no Novo Palácio Presidencial em 1977, permite invocar o grito pintado por Edward Munch, e a dimensão de angústia existencial que nele se expressa, difundindo uma experiência colectiva de redenção contra o não dito e o não visto.
Publicados em distintas geografias e contextos, estes livros, ampliam o universo das imagens pós-coloniais de encontro a um panorama que denuncia de forma explícita a recusa do regime e o modelo imperialista vigente em direcção a uma identidade visual própria. Se, como escreveu Foucault, as revoluções são história, mas, de certa forma, elas escapam-lhe[6], com estes livros é ainda possível intersectar um momento em que história, revolução e imagem avançaram juntas, inscrevendo o olhar de todos os que ousaram dizer: Já não obedeço.
Uma versão mais extensa deste artigo foi publicada em francês com o título «Images post-coloniales: de la révolution des OEillets aux processus d’indépendance. Ouvrages de propagande, de résistance et de liberté (1974- 1984)» em Éric de Chassey, et. al., PERSPECTIVE/2021 – 1 / Portugal et espaces lusophones. Paris, Institut National d’Histoire de l’Art (INHA), 2021, pp. 231-246.
Notas: [1] Fernando Assis Pacheco, “Grandola...”, in Portugal Livre, Lisboa, Editorial O Século, 1974, p. 5 [2] República Popular Generalizada, Luanda, Ministério da Informação da República Popular de Angola, 1977, p. 4-5. [3] José Marques, As paredes em liberdade, Lisboa, Editorial Teorema, 1974, p. 3. [4] Ernesto Melo e Castro, «Pode-se escrever com isto», in separata Colóquio Artes, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, n.º 32, Abril 1977, p. 49-50. [5] Albie Sachs, Images of a revolution - mural art in Mozambique. Harare, Zimbabwe Pub. House, 1983, p. 21. [6] Michel Foucault, “Inutile de se soulever?”, in Michel Foucault, Dits Ecrits, Tome III 1976-1979, Paris, Gallimard, 1994, p. 791.