75 anos de Nakba

Dizia-se no Mediterrâneo oriental que os livros eram escritos no Cairo, impressos em Beirute, mas lidos em Jafa. Foi assim que o historiador Ilan Pappé se referiu à vida numa das cidades palestinianas antes da catástrofe palestiniana Nakba de 1948, durante a sua visita a Lisboa em maio último, momento em que se assinalaram 75 anos desde o dia em que a ocupação israelita anunciou a fundação do seu estado sobre a terra palestiniana.

No seu livro On Palestine (Sobre a Palestina), este mesmo historiador dialoga com o pensador Noam Chomsky através de um convite para criar uma nova discussão em torno da Palestina. Pappé propõe, neste livro, um novo dicionário palestiniano onde conceitos como “descolonização” e “mudança do regime” fazem o caminho para a resistência à continuação da catástrofe palestiniana nos dias de hoje. Segundo o historiador, a linguagem de “terra para dois povos”, o “processo de paz”, o “conflito israelo-palestiniano”, “a violência dos dois lados”, “negociação” ou a “solução de dois estados” tem tido um papel na ineficácia da diplomacia ocidental. Não poderia estar mais de acordo que, 75 anos depois, um novo léxico seria o primeiro passo para reescrever a narrativa palestiniana.

Na minha opinião, especialmente em Portugal, o primeiro passo no caminho para este novo dicionário será resgatar a palavra Nakba com todo o passado e o presente que este termo carrega. Palavra essa pouco utilizada nos média hegemónicos portugueses, permanecendo desconhecida, mesmo 75 anos após o seu acontecimento e mesmo estando ainda em curso. Nakba é a palavra palestiniana e o momento zero na vida deste povo. É indispensável resgatá-la das dobras e fazê-la substituir a palavra “guerra” quando se refere aos acontecimentos de 1948 ou a palavra “conflito” quando se refere ao colonialismo israelita de ocupação (settler colonialismo).

O significado desta palavra em árabe é “desastre” ou “catástrofe”, referindo-se assim à própria ocupação da Palestina. É associada à tristeza, perda, traição e tragédia. Em 1948, essa Nakba constitui-se na expulsão de mais de dois terços da população palestiniana e a destruição de cerca de 530 cidades, vilas e aldeias e a realização de mais de 30 massacres, utilizando sobretudo o plano militar Dalet para criar um estado exclusivamente judeu. As forças sionistas tomaram controlo de 78% da Palestina histórica através do denominado “plano de transferência”, eufemismo para o plano da limpeza étnica.

O paradigma de limpeza étnica também tem que substituir aquele de guerra em relação ao que aconteceu em 1948. A ausência deste é uma das razões pela qual a Nakba é negada e substituída pela narrativa que alega que o movimento sionista participou numa guerra trágica, mas inevitável.

É precisamente como resposta a esta narrativa que Pappé, no livro acima mencionado, lembra que descrever o que aconteceu em 1948 não apenas como “catástrofe”, mas também como “crime”, é essencial para retificar o passado e distinguir a vítima do agressor, permitindo um mecanismo de reconciliação. Este termo tem uma definição clara na lei internacional como sendo crime contra a humanidade. Falar de “limpeza étnica” é uma questão de justiça, que garante os direitos das vítimas, incluindo o direito de retorno do povo palestiniano do exilio.

O termo “Nakba” foi atribuído ao intelectual sírio Constantin Zureiq, que o mencionou no seu livro Ma’na Al-Nakba (O Significado do Desastre) em 1948, descrevendo os acontecimentos como um desastre que se abateu sobre o mundo árabe inteiro. Contudo, este termo já tinha sido utilizado muito antes que o povo palestiniano percebesse a sua essência. Foi referido nos folhetos de ameaça lançados pelas forças aéreas sionistas sobre as aldeias e vilas palestinianas nas vésperas dos ataques, convidando a população a render-se e a sair pacificamente para evitar uma Nakba. Por outras palavras, os ocupantes trouxeram o termo para a terra da Palestina e vêm mantendo a sua implementação até ao dia de hoje através das várias políticas de ocupação.

No seu livro Expulsion of the Palestinians: The Concept of “Transfer” in Zionist Political Thought, 1882-1948 (A expulsão dos palestinianos: o conceito de “transferência” no pensamento político sionista, 1882-1948), Nur Masalha mostra como a ideologia que resultou na Nakba, estava presente desde o princípio do movimento sionismo – criado no final de 1880 na Europa central como resultado da perseguição dos judeus –, que idealizou “transferir” o povo palestiniano para países árabes vizinhos para enfrentar o que foi na altura denominado por o “problema árabe”.

“A noiva é muito bonita, mas é casada com outro homem”. Foi precisamente esta a mensagem enviada por uma delegação que visitou a Palestina após o congresso sionista em 1897 para averiguar da possibilidade de colonizar a Palestina, criando um estado judeu naquela terra. Com esta frase, o movimento sionista apercebeu-se que aquela terra tem um povo e que para construir esse estado é preciso fazê-lo desaparecer. Desde então e até hoje que o povo palestiniano resiste às tentativas diárias de apagamento, tentativas essas que persistem através das políticas israelitas do presente e através da limpeza étnica sobretudo em Jerusalém, mas também no Neguev, Vale Jordão e Msafer Yatta. Continuam até nas palavras proferidas por ministros israelitas como Bezalel Smotrich, que apelou ao apagamento da vila palestiniana Huwara, enquanto, ao mesmo tempo, negava a existência de um povo palestiniano.

A Nakba é uma palavra-chave para a Palestina. A memória coletiva deste povo e a sua identidade nacional estão infelizmente ligados a esta palavra. A Nakba não é passado. O que aconteceu em 1948 ainda não terminou e as pessoas palestinianas vivem ainda as consequências da Nakba e experienciam a sua continuidade todos os dias, todos os dias.