PROPRIEDADE
Adotando a definição do conceito de Propriedade avançada pelo historiador italiano Giuliano Martignetti, chama-se Propriedade “à relação que se estabelece entre o sujeito «A» e o objeto «X», quando A dispõe livremente de X e esta faculdade de A em relação a X é socialmente reconhecida como uma prerrogativa exclusiva, cujo limite teórico é «sem vínculos» e onde «dispor de X» significa ter o direito de decidir com respeito a X, quer se possua ou não em estrito sentido material.”[i] Sem se especificar quem ou que coisa sejam A ou X (entendidos enquanto unidades ou grupos), e tomando como referência a formulação jurídica de “dispor de alguma coisa de modo pleno, sem limites” (o ius utendi, fruendi et abutendi do direito romano), esta definição revela o aspeto essencial da posse; como o adjetivo latino proprius indica – e do qual derivou o respetivo substantivo – a propriedade estabelece uma relação de exclusividade entre quem possui objetos específicos e todos os outros indivíduos (e objetos), daí decorrendo que propriedade é algo que pertence a alguém de modo exclusivo. É esta relação de exclusividade face aos demais que aqui nos importa realçar.
Se tomarmos o sistema social no seu todo, constituído por outros sujeitos e objetos para além de A e X que apresentamos como referência, a relação de posse implica sempre uma limitação, quer de sujeitos possuidores, quer de objetos possuídos, e o estabelecimento de processos mais ou menos alargados de exclusão. Radica nesta relação de posse a problemática da desigualdade e da justiça social. E ainda que nas nossas sociedades demoliberais, o “direito de propriedade” seja entendido como universal, é fácil constatar que se A é proprietário de X, ficam automaticamente excluídos dessa possibilidade os indivíduos ou grupos B, C, D, etc. Segundo o filósofo alemão Anselm Jappe, “é a privatização dos recursos que cria a escassez: o acesso privilegiado de alguns aos recursos significa necessariamente que os outros não podem aceder a eles.”[ii] A limitação dos recursos disponíveis agrava ainda mais as possibilidades aquisitivas, transformando o desígnio proprietarista em mera capacitação formal.
Numa altura em que as desigualdades sociais atingiram níveis nunca antes vistos na história da humanidade, e em que o rendimento de alguns indivíduos ultrapassa a riqueza de nações inteiras, a posse dos meios de produção é o exemplo mais acabado da relação que necessariamente se estabelece entre os que têm e os que não têm.
Há mais de 150 anos que Karl Marx escalpelizou o sistema que engendrou esta situação. Como revelou o pensador alemão, o capitalismo caracteriza-se pela busca exclusiva do lucro, entendido no seu sentido lato de vantagem, de ganho, que advém da apropriação da mais-valia, isto é, da parte do valor não pago do trabalho incorporado no produto. A quantidade de mais-valia realizada é o resultado da diferença entre o valor que o trabalhador produz e o custo da sua força de trabalho. Para que esta exploração se concretize há que garantir a separação dos produtores dos respetivos meios de produção, fazendo com que àqueles apenas reste vender a sua força de trabalho, a fim de assegurar a sobrevivência, aos detentores destes últimos. A extração do sobrevalor do trabalho assalariado no próprio processo de produção capitalista tem como resultado a condição existencial que Karl Marx qualificou, com amarga ironia, de dupla liberdade do trabalhador: a liberdade de vender a sua força de trabalho ou a liberdade de morrer de fome. Passados quase dois séculos, e por mais que as formas de propriedade, as dinâmicas produtivas e a própria estrutura social tenham sofrido alterações consideráveis, a matriz da exploração capitalista mantem-se. Com efeito, o funcionamento estrutural do capitalismo tem na exploração do trabalho e na busca incessante do lucro o seu modus operandi.
Na lógica capitalista neoliberal, exacerba-se o efeito do “exército de reserva”, isto é, do agudizar do desemprego como garantia do esmagamento dos salários e da precarização das condições laborais, fazendo alastrar o trabalho sem direitos. Impõe-se a ideia, sumamente perversa, das populações “dispensáveis”. Como sublinha, a este propósito, o economista Manuel Couret Branco, “a economia não tem por objetivo a criação, ou sequer a manutenção, de empregos, mas sim a mais eficaz afetação possível dos fatores de produção, por outras palavras criar um máximo de riqueza desejavelmente com um mínimo de recursos.”[iii]
O trabalho é encarado apenas como um custo e nem o que o desemprego significa em termos de sofrimento humano e desagregação do tecido social, leva o funcionamento do capitalismo a hesitar na sua eliminação.
Reduzir os recursos humanos significa mais lucros. A única preocupação que os proprietários dos meios de produção têm é a de produzir riqueza… para si próprios. A eficácia do sistema traduz-se na maximização dos lucros e na diminuição dos encargos com os fatores de produção, custe o que custar; e não são eles que pagam!
É por isso que afirmações como a de Vítor Bento, presidente da Associação Portuguesa de Bancos, a propósito dos lucros excessivos na banca, para quem “o uso e abuso da expressão «lucros excessivos» na nossa comunicação […] reflete uma hostilidade cultural ao capital e à sua acumulação”[iv], não podem deixar de nos fazer sorrir. Pela ingenuidade? Não, pela desfaçatez. Quando os resultados do primeiro semestre de 2022 demonstram que os 5 maiores bancos portugueses – CGD, BCP, BPI, Santander e Novo Banco – obtiveram lucros de 1,3 mil milhões de euros, 80% acima dos valores reportados em período homólogo, e que num contexto de forte crise económica e social, por via de uma inflação galopante que, em julho, atingiu os 9,1%, as comissões bancárias aumentaram cerca de 12% face ao ano transato (só a CGD, o maior banco nacional, obteve, por esta via, rendas de 300 milhões de euros), apenas a generosa remuneração dos acionistas está plenamente assegurada, falhando quer o crédito adequado a empresas e famílias, quer a qualidade do serviço público prestado aos cidadãos. Como refere a economista Eugénia Pires, “Já o saudoso Francisco Pereira de Moura alertava para o sistema de cadinhos que é a economia. Para quaisquer lucros excessivos existe sempre um contraparte empobrecido.”[v]
Quando, a esta acumulação de capital, acresce a recusa, por parte do governo de António Costa, da tributação efetiva dos lucros excessivos, aquilo a que assistimos é a uma gigantesca transferência de rendimentos do trabalho para o capital. Quem perde? A generalidade da população. Não esqueçamos que, para além das situações de desemprego, 11,6% dos portugueses que trabalham, não conseguem auferir um rendimento suficiente para os tirar da situação de pobreza. Ora, nas avisadas palavras de Sandra Monteiro, diretora da edição portuguesa do Le Monde Diplomatique, “Abandonada uma perspetiva socialista, e quando o social-liberalismo é impossível de distinguir do neoliberalismo puro e duro, não é contra as empresas-abutre que a raiva e o protesto tendem a exprimir-se: é contra a política, os políticos, o Estado, o governo, a democracia”[vi]. Estende-se, por esta via, a passadeira ao extremismo populista.
Notas: [i]Giuliano Martignetti, “Propriedade” (pp. 1021-1035), in Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino (coord.), Dicionário de Política, vol. II, Brasília, UNB/Dinalivro, 2004, p. 1021. [ii] Anselm Jappe, As aventuras da mercadoria. Para uma nova crítica do valor, Lisboa, Antígona, 2006, p. 239. [iii] Manuel Couret Branco, Economia política dos direitos humanos, Lisboa, Sílabo, 2012, p. 51. [iv] Expresso, 2/8/2022. [v] Eugénia Pires, “Lucros nada inesperados”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, setembro de 2022. [vi] Sandra Monteiro, “Dos lucros dos oligarcas aos vistos dos pobres”, Le Monde Diplomatique, ed. portuguesa, agosto de 2022.
Hugo Fernandez
(1961)
Investigador do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade de Évora