Um projecto transformado em processo. As operações SAAL: arquitectura e participação
Mas a luta continua
Quer eles queiram, quer não
O trabalhador tem direito
À sua habitação.[1]
O Serviço de Apoio Ambulatório Local (SAAL) foi um modelo de intervenção único, criado por iniciativa do Estado, logo após o 25 de Abril, para dar resposta às graves carências habitacionais das populações mais pobres da sociedade portuguesa. Apesar do contexto político irrepetível do Período Revolucionário Em Curso (PREC), a experiência do SAAL deixou-nos uma metodologia de trabalho e um saber construído na prática que nos parece essencial para pensar os modelos de participação de hoje.
O programa SAAL promovia a construção de um processo de participação dos moradores organizados, em Cooperativas de Habitação Económica (C.H.E.) ou em Associações de Moradores (A.M.), para a resolução do problema da habitação. Nesse sentido, quando nos referimos ao «Processo» falamos da disponibilização de um serviço de apoio do Estado e das autarquias para dar acesso a terrenos e a infraestruturas para a construção dos bairros; de um serviço de apoio técnico e jurídico aos moradores para a realização de projectos de arquitectura e especialidades mas também projectos sociais e culturais; e de um serviço de apoio financeiro, a fundo perdido e através de empréstimos, às Cooperativas e às Associações de Moradores.
O Processo
A análise cuidada dos diferentes bairros projectados no âmbito do SAAL revela que houve uma multiplicidade de modelos de participação e uma interpretação lata sobre o conceito, não só por parte dos técnicos, como também das populações envolvidas. Ao mesmo tempo, é possível verificar que as metodologias de intervenção nos bairros foram sendo afinadas no confronto com os desafios particulares de cada caso, que a teoria foi sendo feita à posteriori sobre a experiência prática, e que a sua unidade é feita, sobretudo, da diversidade dos modelos implementados.
Neste contexto, importa sublinhar que a construção do processo partia de um compromisso assumido entre os moradores organizados, as brigadas de técnicos, o Estado e as próprias autarquias. Nessa medida, as operações SAAL não propunham a realização pontual de um projecto de arquitectura ou um (simples) realojamento. Pelo contrário, foram um processo de negociação, construído por fases, com avanços e recuos, discussão de modelos e redefinição constante dos papéis de cada interveniente.
1. O Direito ao Lugar
Na primeira fase de construção do processo as Comissões de Moradores organizavam-se em CHE’s ou em AM’s estabelecendo um acordo formal entre moradores, com estatutos votados e posteriormente publicados em Diário da República, sobre a sua estrutura de organização em torno de um projecto comum para a construção de um novo bairro. Paralelamente, os moradores apresentavam um Pedido de Intervenção e a atribuição de uma Brigada de Apoio Local (BAL) que, ao ser aceite, passava a prestar-lhes apoio técnico.
Com a ajuda dos moradores de cada bairro, as BAL procuravam identificar a área de intervenção da operação (Unidade Operacional), efectuar inquéritos para recolher dados sobre a população dessa área e realizar levantamentos das carências habitacionais e infraestruturais. Do contacto directo entre moradores e técnicos surgiam as relações de confiança e os compromissos que permitiam depois uma maior abertura, partilha e mobilização para dar continuidade ao processo.
A definição das Unidades Operacionais e a escolha dos terrenos tinha por base a reivindicação dos moradores por permanecerem no mesmo sítio – Direito ao Lugar – preservando uma ideia de comunidade, uma identidade local e um sentido de pertença. Direito essencial reivindicado pelo SAAL e que, até à data, outros modelos de intervenção não relevavam e que a maioria dos bairros realizados nas décadas seguintes, no âmbito de outros modelos de realojamento, nomeadamente, o Programa Especial de Realojamento (PER) não tiveram como prioritário.
2. O Direito à Habitação
A segunda fase do processo está directamente relacionada com a participação dos moradores na discussão dos modelos e soluções arquitectónicas para os novos bairros, bem como na discussão das tipologias das casas. Apesar da diversidade encontrada entre as diferentes operações, também aqui podemos verificar a originalidade do programa face a outros modelos até então experimentados em Portugal. A outro nível, e naturalmente impulsionada pelo contexto político, podemos observar também uma rutura com o passado em relação aos direitos das mulheres que, assumiram no SAAL um papel determinante com a sua intervenção em manifestações e assembleias gerais, como também nas discussões sobre a organização interna das casas e da vida familiar.
No centro da luta dos moradores pobres dos bairros degradados e de barracas estava a reivindicação pelo Direito à Habitação, direito a uma casa com água, esgotos e luz eléctrica e a um bairro com saneamento, recolha de lixos, acessos e transportes. De acordo com os objectivos, a disponibilidade, os conhecimentos técnicos das populações envolvidas e os seus níveis de mobilização e de politização foram experimentados diferentes modelos de participação. Da parte das Brigadas, a sua formação política e disciplinar teve também um papel importante no modo como o processo era conduzido com os moradores, particularmente, na fase de discussão e apresentação dos projectos de arquitectura.
Ao observar os diversos modelos arquitectónicos construídos, é possível avançar com uma síntese sobre o modo como foram conciliadas as respostas dos arquitectos, em função da escala e do território em que estavam a intervir, com as expectativas dos moradores. Nesse sentido, podemos agrupar genericamente essas respostas em dois modelos distintos – um modelo de moradias unifamiliares em banda com rés do chão e primeiro andar e um modelo de blocos de habitação colectiva com quatro pisos – que foram sendo ajustados e transformados caso a caso. O contraste entre estas duas soluções resultou em grande medida da dinâmica e dos compromissos estabelecidos entre as Brigadas e os moradores de cada operação.
Em Lisboa foram construídos, sobretudo, blocos de habitação colectiva, não só porque essa era a ambição da maioria dos seus moradores, como também, porque esse era o modelo que permitia dar continuidade e ligar os territórios que tinham de ombrear com a escala da cidade consolidada.
No Porto, dada a posição das operações no centro da cidade, a disponibilidade limitada de terrenos livres e as características morfológicas das «ilhas», o modelo mais recorrente foi o da moradia em banda, estando também prevista em algumas operações a reconstrução ou a recuperação de edifícios existentes.
Este foi um campo de experimentação para os arquitectos, onde foram exploradas, entre outras, tipologias de habitação evolutiva que previam a ampliação da casa ao longo do tempo em função do crescimento do agregado; tipologias duplex para reduzir custos com acessos verticais comuns ou para conseguir aumentar a escala da volumetria dos edifícios; tipologias baseadas em métodos construtivos, nomeadamente, no «sistema túnel», permitindo uma sistematização e repetição da composição tipológica, através da adição ou subtracção de quartos, mantendo junto o núcleo de águas, para a cozinha e instalações sanitárias.
De acordo com as caraterísticas de cada comunidade, com as suas vivências e referências em relação aos modelos urbanos ou às memórias de modelos tradicionais trazidos do campo, a discussão dos modelos arquitectónicos dependia também da experiência dos arquitectos para construir um compromisso entre as soluções técnicas, a experimentação, a resposta disciplinar e a cedência perante os pedidos e anseios dos moradores. Este foi um processo muito rico e descrito por muitos dos seus intervenientes como o mais intenso e interessante de toda a experiência. Os critérios para avaliar o “sucesso” e os resultados da participação são múltiplos e não cabe aqui a sua discussão mas, há uma ideia clara para nós, o SAAL desenvolveu uma metodologia que ia para além da resolução dos problemas habitacionais das camadas mais pobres da sociedade conferindo-lhes acesso à (melhor) arquitectura e ao Direito (pleno) pela Habitação.
- O Direito à Cidade
A terceira fase do processo teve uma dimensão política e ideológica que nos parece essencial para pensar os níveis de participação para a resolução dos problemas da habitação. E ao mesmo tempo, nos ajuda a compreender o modo como o SAAL acabou por ser abruptamente interrompido, não pela falta de resultados alcançados mas, porque colocava em causa o rumo político que vinha a ser delineado desde o 25 de Novembro de 1975 e que afastava qualquer solução de democracia directa ou de organização do poder popular.
O alcance das reivindicações das populações que viviam nas duas principais cidades do país e a rejeição da proposta do Despacho de criação do SAAL, para a construção dos bairros através da sua autoconstrução, acabaria por limitar o número de casas construídas, sobretudo, na cidade do Porto. A solução da autoconstrução representava, do ponto de vista político, uma dupla exploração do povo, e por isso, foi desde logo afastada, em contraste com outras regiões do país, como o Algarve, que usaram a autoconstrução como forma de simplificação do processo e de acelerar o início da construção dos novos bairros.
As reivindicações dos moradores organizados do Porto e de Lisboa representavam uma luta clara pelo Direito à Cidade e rapidamente se alargaram para outros campos, na luta por melhores equipamentos, transportes e acessos, colocando em causa os planos das autarquias e a organização de alguns territórios. A construção de novos equipamentos como escolas, creches, jardins de infância, parques infantis, campos de jogos, cooperativas de consumo, balneários e chafariz representava uma efectiva melhoria das suas condições de vida, uma maior protecção para as crianças e idosos e a possibilidade de as mulheres puderem sair de casa para trabalhar, aumentando os rendimentos dos agregados. A sua ambição ultrapassava em grande medida os objectivos iniciais do programa SAAL como resposta habitacional, colocava em causa interesses imobiliários e o poder das autarquias na gestão dos seus terrenos. Esta ambição social, válida, acabaria por se revelar fatal.
No tempo da participação
Da experiência do SAAL fica a metodologia de trabalho de equipas multidisciplinares directamente envolvidas com as populações na definição conjunta de um compromisso sobre as melhores soluções para os problemas encontrados. Fica uma ideia de construção de um processo participado, organizado por fases, associado a lutas e à conquista de direitos concretos. Fica uma visão ampla sobre o conceito de Direito à Habitação, no qual participam necessariamente o direito ao lugar, o direito à arquitectura e o direito à cidade, como proposta de organização de uma sociedade mais livre e justa.[2]
Entre 31 de Julho de 1974 e 27 de Outubro de 1976 viveu-se, nas palavras de Fernando Távora, «um sonho (im)possível».
Notas: [1] Excerto do poema “Traição ao Povo trabalhador” de António Albino Machado. Poemas – antes morrer de pé do que toda a vida de joelhos. Viva o poder popular. Lisboa, Livraria Bertrand, Abril de 1976. [2] Ver Cidade Participada: Arquitectura e Democracia. Operações SAAL – Oeiras, Coordenação Ricardo Santos. Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2016, p.154.
Ricardo Santos
(1982)
Arquitecto doutorado pela FAUP e investigador do CEAU_FAUP
(Foto do autor com créditos fotográficos de Vera Marmelo)