Uma poetisa no desemprego

O surrealismo chegou tarde a Portugal e Natália Correia chegou mais tarde ainda ao surrealismo[1]. Mário Cesariny, que viria a arvorar a bandeira do movimento, tinha 26 anos quando se cruzou com a escritora pela primeira vez. Latente nos amores à marujada, mas sem um gosto particular por saias, ficou mesmerizado com o vulto que divisou entre veludos. “A primeira vez que vi a Natália Correia foi no São Carlos. Eu estava na galeria, ela no segundo balcão. Quando? Ui! Aí pelos anos 1950. Apesar de já não ter muito afeto a senhoras, ia caindo para o lado do espetáculo de beleza que ela apresentava. Era quase extra-humana, era muito mais linda que a mais bela estátua feminina do Miguel Ângelo. Era uma coisa impressionante.[2]

Teriam a mesma idade, mas Natália arrancara com asas nos pés para um voo ogival e Cesariny era ainda o talento rasteiro por detrás de um folheto obscuro. A amizade dos dois fortaleceu-se, principalmente a partir de meados da década de cinquenta, muito por intermédio de Luís Pacheco, que passou a ser editor de ambos, e à medida do reconhecimento paulatino da obra de Cesariny, apelidado pelo crítico Gaspar Simões em 1957 como um “caso de prestidigitação genial”. Também Isabel Meyrelles ajudou neste entrosamento. À época enamorada por Natália, emprestava o ateliê na vizinhança das Escola de Belas Artes aos encontros fortuitos de Cesariny arrimados do Alfeite.

Natália recolhia, até então, influência patronímica em moradas cuja idade e estatuto lhe mereciam uma vénia nunca velada. José de Amada Negreiros, a quem chamava mestre, vidente, visionário do passado e do futuro: “o artista integral”, “a parte que diz o todo e o todo que diz a parte”, “o homem entendido como microcosmos”[3]. As cartas/desenhos trocadas entre os dois, por altura do aniversário da escritora, remetidas dos locais mais variados, revelavam construções de palavras que simbolizavam representações pictóricas de estima mútua. Assíduo dos serões em casa da escritora, foi protagonista de algum do anedotário que perpassou por aquele salão.

Uma noite, o fundador do Comité Futurista de Lisboa bateu à porta de Natália e foi recebido pela empregada que, quando o viu, exclamou: “Arcaico!” Almada Negreiros terá ficado de tal forma impressionado com a clarividência daquela mulher humilde, que passou a relatar o episódio como um atestado de caráter. Mas a verdade habitava outras paragens: a dita empregada teria por hábito “escutar as conversas que se davam naquela casa como se bebesse um álcool intenso. Ébria delas, hipnotizada nelas (sic) e sedenta por elas, pediu “à senhora” que lhe ensinasse a dizer “palavras tão bonitas” como aquelas que ouvia nas conversas”. Natália ensinou-lhas: “platónico, sáfico, aristotélico, anacreôntico, bucólico, energúmeno, pederasta, existencialista, flibusteiro, arcaico. Então, quando tocavam à campainha daquele quinto andar do número 52 da Rua Rodrigues Sampaio, a empregada abria a porta e perguntava ao visitante: “Quer que o anuncie como aristotélico ou como pederasta?!” Ou então: “Hoje, o senhor é mais bucólico ou mais platónico?!” Às vezes, já não perguntava – gritava a uma senhora ilustre que entrava: “Sáfica!” Almada não conhecia as regras daquele jogo e viu no “arcaico” com que a criada o recebeu, triunfalmente, não uma palavra entregue pelo acaso, mas uma voz erguida pelo destino.[4]

Natália entendia a filiação desta geração que pateara a República como uma comenda que desflorava no peito do poema; mas recusou uma influência consciente daqueles que, equiparando-se em idade, lhe bebiam os vinhos caros e lhe manchavam a alcatifa. “Se existe qualquer relação entre a minha poesia e o surrealismo é francamente a posteriori, isto é, para os que quiserem vê-la. Quanto a procurarem-me antecedentes também temos por cá outros mais à mão que foram surrealistas sem pensar nisso: Gomes Leal e Sá Carneiro”[5].

Aqueles que testemunharam as transfusões de estilo tinham, naturalmente, uma opinião distinta. Para Urbano Tavares Rodrigues, Natália devia “muito à experiência surrealista e em particular a Mário Cesariny de Vasconcelos. Dele recebeu (e transformou) o desatino verbal de longos poemas anafóricos, recheados de surpreendentes metáforas, por vezes atingindo a violência e a beleza de alguns textos inspirados onde se abrem múltiplas pistas de sentido para representar o universo concentracionário do fascismo português, a mediocridade e a repressão, a pífia moral salazarista, a hipocrisia quase geral como no célebre poema Queixa das Almas Jovens Censuradas de um dos seus melhores livros, Dimensão Encontrada (1957). A infantilização do País, os homens transformados em autómatos, a imitação da felicidade para estrangeiro ver, tudo isso metaforizou Natália Correia nessas célebres quadras que José Mário Branco cantou em França para os emigrantes e exilados e levou a todos os lugares de Portugal depois de Abril[6]”:

Dão-nos a honra de manequim

Para dar corda à nossa ausência.

Dão-nos o prémio de ser assim

Sem pecado e sem inocência[7].

Também Luiz Pacheco chegou a escrever sobre essa promiscuidade poética que só beneficiou o leitor: Natália não era possível (poeticamente) sem um Cesariny, sem um Lorca. Tão-Pouco o Cesariny era possível sem o Álvaro de Campos, o Desnos, o Breton, o Torga, o Régio, o Cesário Verde, entre outros.

Aos que a rotulavam, a escritora respondia com humor: “Sei lá em que contexto poético deste século situar a minha obra. Sei, isso sim, que tenho lido sobre a minha poesia algumas aperaltadas sentenças que nada têm a ver com o sentir pensado ou o pensado sentido (isto lembra-me o Pessoa) com que a faço. Colocam-me uns no grémio surrealista. Outros dão-me emprego nas contorções do barroco. Até já me detetaram aflorações concretistas. Enfim, uma poesia no desemprego.[8]

O reflexo no espelho é sempre um exercício de estranheza e ninguém está acoberto da perplexidade de se sentir mais familiarizado com as feições alheias do que com os contornos pessoais. Mas, no caso de Natália, o esforço de desvinculação face ao movimento surrealista não se deu sem uma reflexão teórica prévia. Em Poesia de Arte e Realismo Poético, um dos dez volumes inclusos em A Antologia de 1958 editada por Cesariny, Natália provou ensaisticamente que poesia e surrealismo partilham a mesma artéria, o que torna qualquer poeta, em potência, um surrealista: “[Cada] homem que nasce é um ser que perdeu o mundo. [Será assim que] o poeta imaginando o mundo que desespera recuperar, traduz já como real o mundo realizado pela imaginação. A partir de aí, a recuperação do mundo perdido efetuada pelo poeta é temporal e concreta, pois a poesia é natureza, […] A tendência de eliminar marcos literários entre a poesia e a vida prenuncia-se com os alemães [durante o Romantismo]. Mas neles é ainda um anseio noturno que Breton chamará à vida, reivindicando para ela o sonho a que os românticos se abandonavam. Breton intenta [preencher o objetivo individual], visando a resolução futura das aparentes antinomias do sonho e da realidade numa realidade absoluta”.[9] O autor do manifesto surrealista só estaria, à razão dos argumentos da escritora, a recuperar um território para poesia que já era dela por direito.

Garrotear a imaginação, o sonho, o delírio, o inconsciente, mas também as vivências, seria arriscar um poema exangue. “Se o homem que é poeta, por uma questão de comodidade tem que aceitar a cisão, ao poeta que é supremo desocultador da natureza humana não é dado alienar uma camada mais recôndita da realidade, sob pena de desviar a poesia daquela via de conhecimento que lhe é própria.[10]” É neste pressuposto que Natália engloba entre os precursores do surrealismo em Portugal nomes que vão “desde Mendinho (jogral do ciclo trovadoresco), até Fernando Guedes (n. 1943), passando por Gil Vicente, Bernardim Ribeiro, Camões, Gregório de Matos, Correia Garção, Soares de Passos ou José Gomes Ferreira” [11], entre muitos outros. Uma enumeração considerada por alguns teóricos exagerada e arbitrária, mas que faz prova da tese da escritora: se vasculharmos bem, qualquer poeta que aceda a camadas menos corpóreas da realidade pode ser apelidado, inadvertidamente, de surrealista, estando apenas a criar poesia. Porque,

O poema não é o canto

Que do grilo para a rosa cresce.

O poema é o grilo

É a rosa

E é aquilo que cresce.

 

É o pensamento que exclui

uma determinação

na fonte donde ele flui

e naquilo que descreve.

O poema é o que no homem

Para lá do homem se atreve.

Natália Correia, Poemas (1955)

Por coerência não assinou qualquer manifesto do movimento, como aqui já foi escrito, mas devemos-lhe uma das mais singulares explicações da estética de Breton, que merecia tanto ter ficado para a História como o cachimbo de René Magritte. “Um galináceo com uma estrela no bico é um absurdo. Mas um anjo com uma estrela na fronte é uma fácil relação de coerência”, exemplifica Natália. “O que torna insólito o exemplo do galináceo é analisarmos cada um dos termos separadamente. Quanto ao anjo, nada mais natural do que figurá-lo com uma estrela na fronte em virtude dos dois objetos serem expressões de mundos afins. A conjugação de elementos do mesmo grau torna-se supérflua no sentido ativo de poesia, visto que nada mais implica além do reconhecimento dos sinais duma harmonia independente do poeta. Inversamente, a imagem contrapontística galináceo-estrela é a chave que o poeta encontrou, da soma de duas parcelas de operações diferentes, obter o número do ponto onde os contrários se harmonizam. Tratar pássaros como pássaros e rosas como rosas é, ao contrário do que parece, não chamar a atenção sobre pássaros e rosas.[12]

Os contemporâneos da autora encontraram na relutância em arvorar a bandeira do surrealismo um sintoma da ciumeira que contaminava o, por vezes hilariante, meio literário dos anos cinquenta em Portugal. “O Cesariny e a Natália Correia eram dois irmãos que se batiam. Estavam sempre a criticar-se, o que um gostava o outro não gostava, o que o outro queria, o outro não queria”[13], “os desencontros que havia com o Cesariny eram porque ela [Natália] gostaria de chamar o surrealismo mais a si e o Mário não deixava, claro. O Mário [Cesariny] agarrou o surrealismo com todas as mãos”[14].

Em contexto fraterno, Natália desempenharia o papel de irmã mais velha. A escritora abriu as portas do seu salão em 1955 para acolher a apresentação de Manual de Prestidigitação, obra vulcânica do poeta do surrealismo. Já a troca epistolar com Cesariny revela-se o confessionário do caçula que requer a proteção e a ajuda da primogénita. A partir de Paris, o autor de Pena Capital dirigia à escritora nos anos sessenta os mais inusitados pedidos: “Sabe da minha mãe? Como é costume entre poetas, maioritariamente entre poetas panascas, eu voto-lhe um amor doido. E ela pena imenso com as minhas ausências. Telefone-lhe um dia destes, sim?[15]

Notas:
[1] O Primeiro Manifesto do Surrealismo, assinado por André Breton, data de 1924. Em Portugal, o Surrealismo como movimento organizado só irá surgir em 1947, logo após a Segunda Guerra Mundial.
[2] Mário Cesariny entrevistado por Carlos Câmara Leme, “Natália Correia A mulher que cruzou todos os mares”, jornal Público, 16 de março de 2003, p. 41
[3] Correia, Natália, Texto manuscrito inédito: Obra Completa (ou incompleta) de José Almada Negreiros, espólio da autora à guarda da Biblioteca Pública Arquivo Regional de Ponta Delgada
[4] José Manuel dos Santos, A linha em subida, 18.12.2014, Jornal de Letras, https://visao.sapo.pt/jornaldeletras/2014-12-18-a-linha-em-subidaf804961/
[5] Entrevista a Natália Correia (feita em 1963 por Bruno da Ponte e publicada no Jornal de Letras e Artes), republicada em “Entrevistas a Natália Correia”, António de Sousa, Bruno da Ponte, Dórdio Guimarães, Edite Soeiro, Parceria A.M. Pereira, Lisboa, 2004, pág. 22
[6] Breve perfil de Natália em sua obra, Testemunho de Urbano Tavares Rodrigues, in Natália Correia, 10 anos depois, Cristina A. M. de Marinho, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Secção de Estudos Franceses do D.E.P.E.R, 2003, https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/7039/3/nobracompletanatalia000119637.pdf
[7] CORREIA, Natália, Dimensão Encontrada. Lisboa; Ed. do autor, 1957
[8] CORREIA, Natália, in A Phala, Um Século de Poesia, Ideia original e concepção de Manuel Hermínio Monteiro. org. de Fernando Pinto do Amaral, Gil de Carvalho, José Bento, Manuel Rosa, Assírio & Alvim, 1988, p. 183
[9] CORREIA, Natália, Poesia de Arte e Realismo Poético, coleção A Antologia em 1958, Lisboa, Contraponto, 1958, p. 5-8
[10] Entrevista a Natália Correia (feita em 63 por Bruno da Ponte e publicada no Jornal de Letras e Artes), republicada em “Entrevistas a Natália Correia”, António de Sousa, Bruno da Ponte, Dórdio Guimarães, Edite Soeiro, Parceria A.M. Pereira, Lisboa, 2004, pág. 22
[11] MARINHO, Maria de Fátima, 0 Surrealismo em Portugal e a Obra de Mário Cesariny de Vasconcelos, Dissertação de Doutoramento apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1986, Lisboa: INCM, p.113, https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/10888/2/N551TD01PFATIMAMARINHO000068877.pdf
[12] CORREIA, Natália, Poesia de Arte e Realismo Poético, coleção A Antologia em 1958, Lisboa, Contraponto, 1958, p. 16 e 17
[13] Entrevista concedida à autora por Manuel Cargaleiro
[14] Entrevista concedida à autora por Cruzeiro Seixas
[15] Excerto de carta de Mário Cesariny endereçada a Natália Correia, Arquivo Natália Correia à guarda da Biblioteca Pública Arquivo Regional de Ponta Delgada