Há sempre alguém que sonha em qualquer parte

«Depois dos dias do Quinhentismo, o que se chama espírito moderno nunca mais vigorou na nossa terra (…). Para Ribeiro Sanches, no século XVIII, Portugal é o “Reino Cadaveroso”; e um satírico inteligente chama-nos “O Reino da Estupidez”.

E agora? Agora, no século XX? Agora, estamos na mesma. Relativamente no mesmo estado. (…) A cultura autêntica, a cultura crítica, não impera ainda em Portugal. Somos o “Reino Cadaveroso”; somos o “Reino da Estupidez”.

Não digo isto para desanimar, bem ao contrário, pois nesta mesma cidade [Coimbra] em que estou falando e nos próprios campos onde aloura o trigo, se pressente já um arrebol. Portugal, por enquanto, é ainda o Reino da Estupidez, mas espero para breve (e para muito breve) a aurora do dia em que o não será.»

Assim falava António Sérgio em 1926, há quase 100 anos. E hoje, em vésperas de comemorar os 50 anos da revolução de Abril, teremos já chegado ao dia em que Portugal o não será?

A aurora que António Sérgio esperava, mas não viu romper, aconteceu em 25 de Abril de 1974. Assim parecia. Sophia escreveu-a. Zeca, Adriano, Zé Mário e tantos outros cantaram-na.

Os cantos livres, as campanhas de alfabetização, o ensino das artes, o acesso do povo às letras, à música, ao teatro, ao cinema, às artes plásticas. Era democratização da cultura e da educação, dois dos grandes pilares da democracia que nascia, fundamentais à sua consolidação.

Quase 50 anos depois, que passaram num ápice, o que sobrou dessa energia transformadora de Abril? Do sonho por que tantos lutaram e que tantos acreditaram que seria realidade?

Que ganhou o povo, nomeadamente os trabalhadores, com as políticas culturais (ou a falta delas) entretanto implementadas pelos governos que se têm sucedido ao longo destes 50 anos?

Continua a não chegar ao 1 por cento a fatia do Orçamento de Estado dedicada à cultura. Falta de investimento, excessiva burocratização, distribuição injusta e desigual, trabalho na corda bamba, sem rede, a prazo, ao projeto. Ausência de uma política cultural digna desse nome. Teatros vazios, de público e de companhias que podiam ocupá-los e dinamizá-los.

Se olharmos e virmos, se virmos e repararmos, como aconselhava José Saramago, a realidade mostra-nos um país desigual no que respeita ao acesso à cultura e uma produção cultural muito aquém, em termos de quantidade, qualidade e diversidade, do que a disponibilidade de recursos humanos e criativos nas diversas áreas culturais poderiam oferecer.

A opção de investir na cultura não é um investimento nos artistas, é um investimento no povo, no pensamento crítico, na educação, na democracia.

Ainda assim, para responder à pergunta do início, 50 anos depois da madrugada por que esperámos, e apesar do desinvestimento de sucessivos governos, uns atrás dos outros, não, já não somos o Reino da Estupidez. A madrugada deixou sementes e continua a haver quem resista, quem insista, quem persista.

Vontade artística e criativa não falta, falta vontade política.

Talvez seja tempo de dar ouvidos às sementes de Abril.

Podem decretar o fim da arte
É como decretar o fim da chuva
Há sempre alguém que sonha em qualquer parte
E a nossa voz nunca será viúva

Podem decretar o fim do pão
Espalhar pela seara uma alcateia
Mas quem nasce a fazer a divisão
Pode morrer pela última ceia

Podem dizer pra estarmos calados
E assim seremos o que deus quiser
Para que a gente não vire soldados
Podem decretar um deus qualquer

Podem decretar mandar calar-te
Dizer que nossa voz é um enguiço
Podem decretar o fim da arte
E a gente faz uma canção sobre isso

[Canção sem final, A Garota Não]