Professores: Alargar as possibilidades de futuro

A humana docência

Num tempo de grandes mudanças, muitos alimentam visões “fantásticas” de um futuro sem escolas e sem professores. Seria um futuro sem futuro, pois a educação implica a existência de um trabalho em comum num espaço público, implica uma relação humana marcada pelo imprevisto, pelas vivências e pelas emoções, implica um encontro entre professores e alunos mediado pelo conhecimento e pela cultura. Perder essa presença seria diminuir as possibilidades da educação.

Por isso é tão importante proteger, transformar e valorizar as escolas e os professores:

– Proteger… porque as escolas são lugares únicos de aprendizagem e de socialização, de encontro e de trabalho, de relação humana, e precisam de ser protegidas para que, nelas, os seres humanos se eduquem uns aos outros.

– Transformar… porque as escolas precisam de mudanças profundas, nos seus modelos de organização e de funcionamento, nos seus ambientes educativos, para que alunos e professores possam construir juntos processos de aprendizagem e de educação.

– Valorizar… porque as escolas são espaços imprescindíveis para a formação das novas gerações e nada substitui o trabalho de um bom professor, de uma boa professora, na capacidade de juntar o saber e o sentir, o conhecimento e as emoções, a cultura e as histórias pessoais.

Os efeitos devastadores da pandemia podem prolongar-se por muito tempo na nossa vida em comum, social, coletiva, partilhada. Por medo ou por precaução, podemos ter tendência para um “fechamento” em ambientes familiares, privados, isolados, separados dos outros.

Ora, a educação é o contrário da “separação”, é a “junção” de pessoas diferentes num mesmo espaço, é a capacidade de trabalharmos em conjunto. Não há educação fora da relação com os outros, por isso é tão importante preservar as escolas como lugares de educação.

As tecnologias fazem parte da nossa vida, do dia a dia das nossas crianças, mas a educação dá-se sempre num contexto de relação humana. A educação não é apenas um acto individual, é uma dinâmica de aprendizagem com os outros. Ninguém se educa sozinho. É impossível. A relação humana é tão importante que não consigo imaginar que a educação possa ser feita de forma totalmente virtual, à distância. Não há educação sem afecto, sem sentimento, sem relação humana profunda, de alunos com alunos, de alunos com professores. Não se pode conhecer sem sentir, não se pode aprender sem emoção, sem empatia. Não nos podemos educar sem os outros.

Uma das grandes filósofas norte-americanas, Maxine Greene (1982), feminista e pensadora das artes na educação, afirmou que não é possível encontrar nenhum propósito coerente para a educação se alguma coisa comum não acontecer num espaço público. É uma fórmula extraordinária para juntar o comum e o público, explicando que a educação depende de uma relação com os outros, sobretudo com os outros diferentes.

As tendências recentes de uma “domesticação” da escola, isto é, de um regresso da educação aos espaços “domésticos”, familiares, é um retrocesso imenso numa visão humanista que se destina a educar todos com todos. Retiradas da relação com os outros, as crianças ficam impedidas de desenvolver a arte do encontro e as sociedades ficam privadas de uma das poucas instituições onde ainda se pode tentar construir uma vida em comum.

Aprender e estudar em comum é a melhor forma de promover uma “sociedade convivial”, uma humanidade comum. Ainda vamos a tempo?

Nunca pensamos sozinhos. Hoje, no meio dessa tragédia pandémica, sabemos, melhor do que nunca, que isoladamente pouco ou nada podemos. Só “juntos” poderemos encontrar os caminhos do futuro para a educação.

Educar humanos por humanos para o bem da humanidade

Numa obra intitulada The transformative humanities – A manifesto, Mikhail Epstein explica que a educação é um dos momentos mais misteriosos e íntimos da vida, uma experiência verdadeiramente existencial. Nesse sentido, escreve que a universidade é uma instituição humanista, cujo propósito é “educar humanos por humanos para o bem da humanidade”.

Vale a pena trazer essa expressão para uma reflexão geral sobre a educação.

Educar humanos. Ninguém pode fazer a viagem por nós. Permitam-me uma afirmação evidente, mas para alguns inaceitável: a missão de um professor de Matemática não é ensinar Matemática, é formar um aluno por meio da Matemática. Estaria eu, por esta via, a diminuir a importância da Matemática e do seu ensino? De modo nenhum. Estou a afirmar precisamente o contrário, que não é possível educar um ser humano sem Matemática. Mas a educação é um processo pessoal de apropriação do conhecimento, pelo qual nos tornamos mais preparados e capazes. Achar que tudo termina com a aula do professor, por muito notável que ela seja, isso sim seria cair num preocupante “facilitismo”. A nossa palavra como educadores será inútil se não for capaz de despertar a palavra própria do educando.

Por humanos. Ninguém se educa sozinho, nem mesmo com o admirável mundo da inteligência artificial que bate às nossas portas. Precisamos de outros humanos, dos nossos professores e dos nossos colegas. Dos professores, esperamos uma expansão do nosso repertório, por meio da aquisição de linguagens que nos permitam ler o mundo e interpretar a avalanche diária de informação e desinformação. Se ficarmos só com as imagens rasas do dia a dia, não sairemos do lugar. Precisamos que os professores nos ajudem a chegar a Camões, a Einstein, a Picasso. Esperamos que eles se juntem e nos juntem numa aprendizagem cooperativa. A cooperação é a chave da educação na contemporaneidade.

Para o bem da humanidade. Voltemos a George Steiner e à pergunta que tem repetido ao longo da sua vida: por que é que alguns dos gestos mais bárbaros da história humana foram cometidos por pessoas cultas? Como é possível apreciar um concerto de Debussy enquanto ao longe se ouvem os gritos daqueles que são levados para o campo da morte de Dachau? Por que é que a cultura e o conhecimento não nos humanizam? A resposta está na incapacidade de pensar a educação como um bem comum. É o tema da cidadania, da participação na res publica, da importância da educação como projeto público.

Professores – Futuros a construir

Os professores vivem vários dilemas, num tempo marcado por transformações profundas na educação. Não são dilemas novos, mas tornaram-se mais nítidos nos últimos anos, em particular, durante a crise pandêmica (2020-2022).

Historicamente:

– a identidade profissional dos professores constituiu-se a partir de uma “separação” em relação às famílias e às comunidades locais; hoje, todos os discursos apontam para a necessidade de os professores refazerem uma ligação forte com os espaços sociais e familiares – eis um primeiro dilema;

– as escolas funcionaram historicamente segundo um mesmo modelo, uma mesma gramática, uma mesma forma de organização do espaço e do tempo; hoje, impõe-se uma maior diversidade, respostas diferentes, novos ambientes educativos – eis o segundo dilema;

– os professores nunca viram o seu conhecimento próprio devidamente reconhecido, mesmo quando se enalteceu a sua missão; hoje, temos a consciência clara de que nada será conseguido sem uma valorização do conhecimento profissional docente – eis o terceiro dilema.

A partir desses três dilemas, é possível identificar três “disposições” dos professores que são decisivas para o futuro.

A primeira é a capacidade de articulação, certamente no interior do espaço escolar, mas também num espaço público da educação mais amplo. O trabalho docente prolonga-se naturalmente para fora da escola, colaborando para a construção da “cidade educadora”, de uma capilaridade educativa que faz parte do programa da “sociedade convivial” tal como apresentado, há cinquenta anos, por Ivan Illich.

A segunda é a capacidade de construir novos ambientes educativos, muito diferentes do espaço tradicional da sala de aula. A realidade futura não deve ignorar as possibilidades que existem numa sala de aula, nomeadamente no encontro entre mestres e discípulos, mas tem de acolher também para uma diversidade de outros ambientes que permitam novas modalidades pedagógicas, sobretudo o trabalho em cooperação, em comum.

A terceira é a capacidade de elaborar, consolidar e difundir um conhecimento próprio da profissão, o que implica uma análise crítica sobre o trabalho docente, feita a partir de um exercício pessoal, mas também de processos colectivos de reflexão. O conhecimento profissional tem uma dimensão teórica, mas não é só teórico; tem uma dimensão prática, mas não é só prático; tem uma dimensão experiencial, mas não é só produto da experiência. A formalização desse conhecimento é muito importante para o reconhecimento profissional e público dos professores.

Estas três dimensões são essenciais para reforçar os professores e para permitir que desempenhem plenamente o seu papel na construção dos futuros da educação.

São muitas as crises globais que atingem a educação: a transição digital, as alterações climáticas, os retrocessos democráticos, as transformações do trabalho, as mudanças demográficas, as migrações e as mobilidades, etc. Para pensar e agir com lucidez em face dessas crises, os professores necessitam de condições excepcionais.

Não bastam declarações retóricas ou gestos simpáticos de reconhecimento do trabalho dos professores. É necessário valorizar as suas condições de trabalho e de remuneração, reduzir os enquadramentos burocráticos e dar-lhes mais autonomia pedagógica, criar os meios indispensáveis para um exercício colectivo da profissão, redesenhar a formação dos professores e a carreira docente, acolher e ajudar os jovens professores, apoiar a partilha de experiências e de iniciativas.

Para investir no futuro precisamos de investir nos professores. Dito de outro modo: se queremos que os professores sejam elementos centrais para “libertar o futuro”, precisamos de libertar o seu próprio futuro. Não podemos continuar a exigir-lhes quase tudo, e a dar-lhes quase nada.