Violência Doméstica
“O tamanho do sorriso dela não precisa de autorização
A liberdade é um barco à vela e o amor não é uma prisão”¹
A violência contra as mulheres na família persiste como uma realidade de dimensão profundamente inquietante.
Na véspera do Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres, celebrado a 25 de novembro, a ONU libertou um novo estudo que revela à sociedade quão longe estamos de atingir o objetivo de erradicar a violência da vida das mulheres e das meninas em todo o mundo. Segundo o documento, em 2021, a cada hora mais de cinco mulheres ou meninas foram assassinadas, a maioria (56%) dentro de casa pelas mãos de parceiros íntimos ou familiares.
Para a ONU Mulheres “o número mostra que a casa deixou de ser um lugar seguro”.² Sendo verdade, importa lembrar que a casa é um espelho de tudo “o ordenamento social, tanto no âmbito institucional – político, económico, cultural, educacional, policial e étnico-racial – quanto nas relações interpessoais – familiar, doméstica, física, sexual, psicológica, moral, simbólica, entre outras”.³
Por tal, tratar a violência doméstica como um problema estritamente individual e familiar, responsabilizando a sua persistência pela incapacidade das vítimas de se libertarem ou dos agressores de controlarem o seu comportamento, exigindo, simultaneamente, que as vítimas ponham fim a um processo, em si mesmo extremamente complexo e de impacto intenso e doloroso, é uma espécie de psicologia reversa do velho “entre marido e mulher não se mete a colher”, porém com o mesmo resultado.
O combate à multiplicidade de violências sobre as Mulheres e à violência doméstica é sobretudo uma questão política, social e económica, uma questão que a todos diz respeito e a que os governos têm obrigação de responder com políticas públicas transversais, concertadas e permanentes que permitam às vítimas a construção de planos de saída das situações de violência e a projectos de vida vivida em liberdade, segurança, integridade e dignidade.
No nosso país só a partir da década de oitenta do século passado é que a violência doméstica foi assumida como um problema social. Essa assumpção tardou a ser plasmada na legislação não obstante ser do conhecimento geral os tradicionais maus tratos sofridos pelas mulheres na família. A alteração do Código Penal (1982) marca um significativo avanço ao introduzir o artigo 152º (Maus tratos e infracção das regras de segurança) que veio punir com pena de prisão de 1 a 5 anos quem infligisse maus tratos a pessoa menor ou indefesa em virtude de idade, deficiência, doença ou gravidez; e a quem infligisse maus tratos físicos ou psíquicos ao cônjuge ou pessoa que viva com o agressor em condições análogas às dos cônjuges.
Foi necessário esperar quase mais uma década para o surgimento das primeiras Casas de Abrigo e pelo primeiro Decreto-Lei que procurava garantir uma maior proteção às vítimas. Em 2000 o crime de violência doméstica assumiu a natureza de crime público e foi preciso esperar por 2009 para, finalmente, ver estabelecido o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e à assistência das suas vítimas.
Não obstante esta evolução legal – que não previa apenas a punição dos agressores, mas a obrigação do Estado a prevenir, proteger e reparar as vítimas de violência doméstica – a verdade é que nos mantemos perante um gravíssimo problema e continua a crescer na sociedade em geral, e nas mulheres em particular, o sentimento de que a lei falha em proteger e apoia-las.
De acordo com os dados mais recentes divulgados pela Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG), entre 2019 e 2022, ocorreram 116 homicídios em contexto de violência doméstica que ceifaram a vida a 93 mulheres, 16 homens e 7 crianças. Recolhidos os dados do presente ano, e apenas no que se refere ao primeiro semestre, regista-se já o homicídio de 10 mulheres, uma criança e um homem.
Alguma imprensa parece regozijar com o relato de cada caída, explorando à exaustão pormenores escabrosos, justificando veladamente o acto cometido com o ciúme ou algo do género ou transmitindo os aplausos da população ao assassino-fugitivo Palito à sua chegada ao tribunal. Raramente assistimos a peças jornalísticas que reforcem a confiança das pessoas em situação de violência doméstica e ainda mais raramente vimos anunciados contactos de linhas de apoio ou outra informação relevante que contribua para combater este fenómeno.
Os sucessivos governos vão promovendo campanhas publicitárias, mostrando mulheres batidas reforçando a ideia que violência é só quando se sangra ou a nódoa fica bem negra, e dizendo às vítimas que se devem libertar e que está nas suas mãos fazê-lo. Deixam um número de contacto – não vá a vítima finalmente ganhar coragem – mas esquecem-se de informar que do outro lado da linha a ajuda pode tardar ou nunca chegar já que o funcionamento das estruturas que comportam a Rede Nacional de Apoio a Vítimas de Violência Doméstica depende de financiamento de projectos cofinanciados pelo Fundo Social Europeu ou pelos Jogos da Santa Casa. É este o grau de compromisso com o combate à violência doméstica no nosso país.
O que se exige é uma política de verdadeiro enfrentamento!
É urgente reconhecer que as consequências da violência doméstica são absolutamente devastadoras para as vítimas, esmagadoramente mulheres de todas as idades e crianças, e afectam todas as dimensões das suas vidas – quotidiano, saúde, habitação, trabalho, escola, todas as relações de sociabilidade. Os traumas sofridos – psicológicos, físicos, entre outros – têm repercussões a curto, médio e longo prazo que têm de ser seriamente considerados.
Mas a violência doméstica não tem consequências apenas para as vítimas. Afecta-nos a todos e a todos diz respeito.
Desde logo porque a violência doméstica assenta amarras profundas e amplas na opressão, desigualdade e discriminação das mulheres, tanto na esfera privada como pública. É estrutural, mas não basta afirmá-lo e desenhar políticas públicas dirigidas à sua forma mais visível – a violência interpessoal – assente nas relações de poder do homem sobre a mulher na família e na sociedade. É preciso assumir que se a violência é estrutural é porque ela é sustentada directamente por sistemas – económicos, políticos, legais, religiosos, culturais –, geradores dos contextos de iniquidade e desigualdade de onde brota a multiplicidade de violências que flagelam a vida das mulheres.
Não se pode falar de violência contra as mulheres, nem de violência doméstica, sem falar da pobreza, da miséria e da fome; do desemprego, da precariedade dos baixos salários e pensões; do aumento do custo de vida que impede a emancipação das mulheres e das suas famílias; das discriminações e desigualdades em função do sexo e da classe social; da raça e etnia, da orientação sexual; sem falar das mulheres com deficiência; sem falar dos fluxos migratórios e dos refugiados; sem falar da globalização, do neocolonialismo, do neoliberalismo; sem falar da guerra.
Não se pode falar de violência contra as mulheres, nem de violência doméstica, sem falar da manutenção, criação e normalização de estereótipos depreciativos das mulheres que as subalterniza, submete e invisibiliza as suas questões gerais e específicas.
Tal como não se pode falar de combate à violência doméstica e ao mesmo tempo sacudir a água do capote quanto às responsabilidades directas do governo na definição e implementação de políticas públicas que garantam a prevenção – que não se esgota na sensibilização – , que avaliem correctamente as situações de risco e criem e dotem serviços públicos, sociais, jurídicos, de saúde, em todo o território nacional, com recursos humanos suficientes e com formação adequada para assistir e apoiar as vítimas.
O Movimento Democrático de Mulheres (MDM) divulgou recentemente o produto de um levantamento exaustivo, realizado ao longo de 2021, do número e valências dos serviços de apoio às vítimas de violência doméstica disponíveis em todo o território nacional, acompanhado de um inquérito de opinião sobre as respostas fornecidas pelos serviços a nível nacional e local e, também, das expectativas e preocupações da opinião pública em torno da violência doméstica.
O resultado desse trabalho, que importa conhecer, confirma a elevada prevalência da violência doméstica e a persistência de desigualdades no território em matéria de estruturas de apoio às vítimas caracterizadas por assimetrias no financiamento, na cobertura e valências de apoio disponíveis.
Os diminutos recursos afetos à prevenção, à proteção e ao apoio às vítimas, somados à degradação das funções sociais do Estado e à degradação das condições de vida e de trabalho das mulheres, impede de facto a construção de planos de saída das situações de violência e contribui para generalizar o sentimento de desconfiança no sistema nacional de enfrentamento a este flagelo.
É por tudo isto que é urgente, muito urgente, combater as assimetrias regionais no acesso a serviços de apoio à vítima, só possível através da responsabilização do estado traduzida na criação de uma rede pública de estruturas de apoio à vítima na reversão da municipalização. É preciso combater a instabilidade das estruturas de apoio à vítima, nomeadamente do seu financiamento, que não só coloca constantemente em causa a continuidade dos serviços prestados, mas também atira para a precariedade os profissionais que nelas trabalham.
Impõe-se a criação de condições de melhoria dos mecanismos de articulação e coordenação entre as várias estruturas com intervenção nesta matéria garantindo não só uma melhor protecção e apoio à vítima, mas também eficácia e celeridade nos processos, tal como um sério investimento na formação e capacitação dos profissionais que trabalham directamente com violência doméstica.
Quanto às campanhas elas são necessárias, mas é fundamental desenhá-las para que permitam sensibilizar e informar para um melhor conhecimento sobre o crime, os direitos da vítima e o acesso aos apoios, mas também para uma alteração de mentalidades e atitudes, combatendo estereótipos, preconceitos e a normalização da justificação da violência.
E por último é preciso cumprir a legislação em matéria de violência doméstica, reforçando o investimento público para uma adequada protecção das vítimas, criando mecanismos que garantam o acesso a apoio social, psicológico e jurídico, independentemente da apresentação prévia de queixa ou denúncia.
Cabe-nos a todos, não apenas às mulheres, exigir um ponto final nestas histórias que a todos agride e envergonha, até que não se levante nenhuma mão a não ser que seja para lutar.
Contactos Úteis: SMS 3600 ou Telefone 800202148 ou 112
Referências: ¹ “Mulher Batida”, A Garota Não - disponível em https://www.youtube.com/watch?v=zrGQvdULlas ² ONU Mulher, 2022. “Mais de cinco meninas ou mulheres são mortas a cada hora, em média, em 2021” disponível em https://news.un.org/pt/story/2022/11/1805817 ³ O estigma da violência sofrida por mulheres na relação com seus parceiros íntimos (2011). https://doi.org/10.1590/S0102-71822011000200021